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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.41 n.2 São Paulo jun. 2007

 

DIÁLOGO

 

Se você insiste em classificar meu comportamento de antimusical...: comentário à entrevista de Almeida Prado

 

If you insist my music goes against the rules…: comment to Almeida Prado’s interview

 

Si tu insistes en clasifi car mi comportamiento de antimusical…: comentario a la entrevista de Almeida Prado

 

 

Luiz Fernando Guedes Gallego Soares1

Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor comenta trechos da entrevista de Almeida Prado em que são abordadas questões desenvolvidas por Heinz Kohut em trabalhos pioneiros sobre música no campo da chamada “psicanálise aplicada”, aberto por Freud na esfera da literatura e artes plásticas, mas não no terreno musical nem no cinema. Sintetiza algumas idéias de Kohut sobre a relação da música com o psiquismo que explicam a dificuldade dos ouvintes com a música atonal, um aspecto destacado na entrevista.

Palavras-chave: Freud; Psicanálise aplicada; Música; Cinema; Psicologia do ego; Psicologia do self; Kohut; Ritmo; Música atonal; Alain Resnais; Intersubjetividade.


ABSTRACT

In the present article the author discusses various themes obtained from an interview with composer Almeida Prado. The author points out that even though Freud had worked with applied psychoanalysis he restricted his contribution to the field of literature and plastic arts. Items related to “applied psychoanalysis”, developed by Heinz Kohut in his pioneer work about music, are here summarized, together with Kohut’s ideas about the relationship between music and psychic phenomena, especially in relation to the difficulties with atonal music, extensively dealt in this interview.

Keywords: Freud; Applied psychoanalysis; Music; Cinema; Ego psychology; Self psychology; Kohut; Rhythm; Atonal music; Alain Resnais; Intersubjectivity.


RESUMEN

El autor comenta trechos de la entrevista de Almeida Prado en que son abordadas cuestiones que desarrolladas por Heinz Kohut en trabajos pioneros sobre música en el campo de la llamada “psicoanalisis aplicada”, iniciada por Freud en la esfera de la literatura y artes plásticas, pero no en el terreno musical ni en el del cine. Sintetiza algunas ideas de Kohut sobre la relación de la música con el psiquismo que explican la dificultad de los oyentes con la música atonal, un aspecto destacado en la entrevista.

Palabras clave: Freud; Psicoanálisis aplicada; Música; Cine; Psicología del ego; Psicología del self; Kohut; Ritmo; Música atonal; Alain Resnais; Intersubjetividad.


 

 

Dificuldades de Freud: música e cinema

A psicanálise sempre interagiu com as intuições dos grandes artistas: insights ainda sem a categorização científica que Freud desenvolveu, sendo emblemática a apropriação do mito de Édipo na versão de Sófocles para descrever o desenvolvimento do ser humano (Amendoeira & Gallego Soares, 2003/2004). É curioso observar como a ausência de trabalhos sobre música na obra de Freud pode ter feito com que especulações de seus seguidores nesse terreno permanecessem excluídas do mainstream psicanalítico durante toda a primeira metade do século XX.

Esse silencioso tabu só teria sido desfeito quando, em 1950, Heinz Kohut publicou um trabalho intitulado O prazer de ouvir música, escrito em parceria com um musicólogo. Em 1953, Kohut lamentava que o autor de um livro que resenhou desconhecesse o texto de Ferenczi (1921) “Prolongamentos da ‘técnica ativa’”, no qual há menção à utilização da música como fundamental para a condução de uma análise. Kohut voltaria ao tema em “Observations on the psychological functions of music” (1957/1978).2

Freud admitia dificuldades com uma linguagem em que a palavra não tinha o mesmo privilégio que recebe na literatura e considerava que o cinema (ainda mudo) não podia dar conta de “traduzir em imagens” os processos psíquicos que ele havia descrito. Com tal alegação, recusou o convite para colaborar com G. W. Pabst no primeiro “filme psicanalítico”, Geheimmisse einer seele (Segredos de uma alma), e aborreceu-se com H. Sachs e K. Abraham quando aceitaram a consultoria do filme (Lacoste, 1990/1992). A alegação de Freud para não trabalhar com a arte cinematográfica é um paradoxo questionável. Por mais que se concorde que “o edifício da psicanálise [tenha sido] construído sobre as ruínas do templo da imagem” (Pontalis, 1990) e que a representação visual dos sonhos seja um “pensamento regressivo” que demanda a palavra que o interpreta, Freud não deixou de trabalhar com imagens quando estudou a composição da pintura de Leonardo e a postura do Moisés de Michelangelo.

Pode-se especular irreverentemente sobre o desagrado do jovem Freud com a música a partir de sua irritação com o piano de uma irmã. Mas, ainda que tivesse uma suposta “amusia psicológica” (na amusia neurológica, chega-se a experimentar os sons musicais como desordenados e até desagradáveis), ele não ficaria imune ao ambiente musical de Viena: gostava das óperas de Mozart e cita a ária “Si vuol ballare”, de As bodas de Fígaro, na introdução ao “sonho do conde Thun”. Surpreende que, ao elogiar Don Giovanni, tenha demonstrado menosprezo pelo enredo de A flauta mágica, sem atentar para as dificuldades edípicas entre a princesa Pamina e a Rainha da Noite (Jones, 1953/1989).

Kohut deixa em plano secundário as palavras dos libretos e as referências literárias da “música programática”, estabelecendo conexões entre a linguagem musical e as funções psíquicas descritas pela psicanálise. É a partir dessa referência que vou comentar a entrevista do autor das Cartas celestes e dos Pequenos funerais cantantes, José Antonio de Almeida Prado. Ao contrário de Freud, ele já disse o quanto ficava motivado pelo som do piano tocado por sua irmã.

 

Comunicabilidade e incomunicabilidade

Kohut dizia que a arte “auxilia o indivíduo na solução substitutiva de conflitos estruturais, substituição que não é uma regressão”, antecipando reflexões de Ricoeur (1969/1978) sobre as investigações freudianas no campo da estética: “O sonho olha para trás, para a infância, para o passado; a obra de arte está adiante do próprio artista como símbolo prospectivo de síntese pessoal e do futuro do homem – sendo assim, muito mais do que um sintoma ‘regressivo’ de conflitos irresolvidos”. Para Kohut, essa regressão temporária e controlada é bem propiciada pela natureza extraverbal da música, uma transição sutil para modalidades pré-verbais de funcionamento mental. Para ele, a música é uma experiência emocional que permite catarse de impulsos primitivos; é uma forma de jogo cuja atividade proporciona um exercício de controle egóico substitutivo; e ainda, uma experiência estética a que a pessoa se submete, assim como às suas regras.

Nos anos 1950 o criador da “psicologia do self” está ligado a uma abordagem prioritariamente econômica, tal como privilegiado pela psicologia do ego, e estuda as funções do ato de escutar música com significados próprios para o ego, o id e o superego. Em relação ao id, estuda particularmente o aspecto rítmico, lembrando as experiências arcaicas que Freud incluiu em estudos da sexualidade infantil. Menciona o movimento de balançar-se das crianças e alude aos rituais de êxtase de tribos primitivas. Estabelece uma ponte com o que representa o ritmo na sexualidade adulta, mas questiona a obviedade “sexual” do ritmo repetitivo do Bolero de Ravel, propondo que se obtém significativo alívio emocional de tensões através de meios musicais mais sutis: o ritmo mal percebido de uma melodia suave e o ritmo contido nas abstrações estéticas de uma fuga de Bach propiciariam catarse de tensões sexuais de modo disfarçado, pois nossa atenção consciente estaria voltada para a melodia ou para a variação da fuga – estaríamos como que “distraídos” do ritmo algo dissimulado.

Ou seja, Kohut aplica à música as idéias de Freud desenvolvidas em Os chistes e suas relações com o inconsciente, sobre o prêmio de prazer preliminar estético que atenua nossas resistências e, assim, possibilita a liberação de um prazer ainda maior, proveniente de fontes de prazer pulsional mais profundo (Wright, 1984).

Em um dos trechos da entrevista, Almeida Prado comenta a incomunicabilidade da música atonal como forma de expressão que se afasta do que já é conhecido e assimilado pelo público e lembra suas composições de determinado período: Não tinha mais tônica, era um discurso contínuo [...] Você podia ir aonde quisesse, o caminhar era que fazia o rumo, não precisava mais voltar para casa”. Kohut também abordou a questão da tonalidade musical dizendo que a composição caminha para a solução de uma tensão anteriormente criada, algo correspondente à brincadeira do “foi embora”, usada pelo neto de Freud para controlar a experiência angustiante da ausência da mãe, transformada em jogo para tentar sair da situação passiva de estar dominado pela frustração. Ao recriar a vivência como brincadeira, passava a desempenhar um papel diverso, ativo. Um domínio ativo semelhante seria atingido pelo movimento da música em direção à dissonância, mas daí retornando à consonância. Enquanto Almeida Prado descreve a música atonal como um caminhar em que não se precisa voltar para casa, Kohut comenta a expectativa do ouvinte em relação ao desenvolvimento tradicional de idéias musicais a partir de uma tônica:

O compositor estabelece a tônica em relação à qual todos os tons subseqüentes são consoantes ou dissonantes. Dentro de cada tonalidade, uma nota especial é escolhida como um sinal, como uma estrutura de referência, e é a partir desta referência que todos os outros tons podem ser compreendidos: é um ponto fixo a partir do qual medimos todos os outros tons – e que determina o caráter consoante ou dissonante de todos os outros. [...] A necessidade de resolução das dissonâncias conduz a música em direção à desejada resolução. Essa resolução é simplesmente o retorno à consonância tonal do inicio.

Se o caminho esperado for da consonância para a dissonância e de volta à consonância, é porque isso atende à necessidade do público de ter a ilusão de que “domina” o material musical. O ouvinte deseja se sentir capaz de “resolver” a tarefa, como se ele mesmo estivesse “compondo” ativamente, à medida que vai ouvindo o desenvolvimento musical, em vez de ser apenas um ouvinte passivo. Pode chegar a “experimentar os sons como sendo produzidos por si próprio – ou até mesmo como ele próprio sendo a música, já que emocionalmente tudo o que ele sente são esses sons, havendo uma ruptura dos limites do ego, alcançando-se o ‘sentimento oceânico’ de ser um só com o mundo – forma culturalmente aceitável de onipotência mágica”.

Quando a originalidade do compositor confronta o ouvinte com uma tarefa incomum, a composição é inicialmente recebida com violenta resistência. Kohut cita acordes criados por Beethoven que hoje não mais soam estranhos aos nossos ouvidos. E lembra quando Wagner evita estabelecer uma tonalidade nítida no início de Tristão e Isolda. Ambos foram criticados por seus contemporâneos como “caóticos”, “indisciplinados” e “indecentes”. Empaticamente, Kohut entende que as platéias de então se sentiram indefesas, mas ao mesmo tempo reconhece que os compositores sempre apresentam para si mesmos novos problemas artísticos que irão resolver, cada um ao seu modo:

O músico verdadeiramente criativo é capaz de ampliar o domínio do Belo além dos limites que eram reconhecidos antes dele. É claro que parte deste processo de modificação e desenvolvimento nas formas musicais pode também ser motivada por uma rebelião contra as regras estéticas pré-existentes, isto é, uma rebelião contra um superego mal integrado.

É como se antecipasse as teorias de Harold Bloom sobre a “angústia de influência”, mas supõe que o resultado poderia ser a formação de compromisso entre rebelião e submissão com exemplos de teses de outros autores: a música do protestante Bach poderia ser compreendida como uma mudança e, ao mesmo tempo, como continuação da tradição artística católica; Schumann teria adiado a eclosão de sua psicose pelo estudo intensivo das obras de Bach, como tentativa de apaziguar um superego paterno devastador. Kohut acha que a experiência subjetiva de desintegração das funções do ego (ou “ameaça de perda de coesão do self”) pode levar a um desesperado esforço de cura de si mesmo por meio do contato musical (identificação) com figuras onipotentes (o “objeto parental idealizado” ou a expectativa pelo self-objeto idealizado).

A questão que mais interessa se refere às situações em que o ouvinte se sente frustrado na tentativa de obter prazer no jogo de tensão-resolução que espera da música: “Um grande número de ouvintes é incapaz de lidar com as sonoridades da música atonal; sentem-se apanhados de surpresa na sala de concerto e experimentam um aumento gradual de tensão ansiosa diante dos sons incomuns que não conseguem dominar”. Nos primeiros tempos de Schoenberg, havia debandadas em massa, e com protestos. Kohut compreende tais reações como tentativas de aliviar a tensão; a produção de contra-ruídos por parte da platéia (assoviar, vaiar) é vista como uma defesa: os ouvintes perplexos tinham algum controle sobre os sons produzidos por eles mesmos e abafavam a música que lhes parecia incontrolável e ininteligível.

Almeida Prado também se refere ao criador da música dodecafônica e sua incompreensão pela platéia, mas remete a Debussy, que já transmitia “a impressão de uma música não inteira, já começando a abstrair o grande arco: o começo e o fim – e ficou atonal. Atonal não se memoriza: ninguém sai de um concerto atonal assobiando Schoenberg”. A tese kohutiana é de que a atividade musical se oferece ao ego como um jogo que envolve transferências (no sentido mais antigo que Freud empregou) e deslocamentos, uma forma agradável de controle, tal como se fosse uma divertida superação de ameaças ligadas às ansiedades de estados traumáticos: um deslocamento que atende à realização do desejo de evitar angústias primitivas da infância precoce, ligadas a ameaças de desintegração e perda do sentimento de si mesmo coeso.

Kohut descreve o adulto como, em princípio, estando “mais à vontade no mundo das palavras, dos conceitos e até mesmo das imagens”, sendo capaz de compreender a regularidade de forma nas composições musicais, sabendo que a composição tem um começo e um fim, que a música é constituída de um sistema organizado de tons e tem um ritmo que pode ser reconhecido. Pela familiaridade com a forma e com o estilo das composições, a música auxilia o ego na necessidade de controlar, repetindo de modo agradável vivências inconscientes de antigas ameaças:

Um pequeno aumento de tensão é criado pelo movimento musical em direção à dissonância e é seguido por um agradável alívio dessa tensão, à medida que a música volta à consonância. Assim, o agradável domínio da ameaça de ser subjugado pelos sons se torna uma divertida atividade do ego que contribui para o prazer total da música. Se, por causa da supercomplexidade da tarefa musical, o conteúdo musical não pode ser dominado, então a exposição à música se torna desagradável.

Mas Almeida Prado também nos lembra que não são as formas mais tradicionais que tornam um compositor nem sua produção melhores: “O minimalismo, como também o tonalismo, não faz ninguém genial”. E destaca compositores imaginativos na parte rítmica, dizendo que “a grande sacada foi quando Messiaen começou a praticar um som contínuo, [...] criando uma aura mística, a coisa de levitar, de sair da pulsação. [...] É macrotempo. Eu entro no tempo eterno”.

Kohut menciona, em um de seus trabalhos referidos, um paciente em que “somente a psicoterapia, que ‘durava a vida inteira’, parecia capaz de acalmar sua tensão”; o conteúdo das interpretações era inicialmente rejeitado e o que importava era o tom da voz do analista, o ritmo das frases e palavras: uma vivência atemporal. Jorge Luis Borges já chamou a música de “misteriosa forma de tempo”.

 

Repetição e reformulação

Almeida Prado questiona se existiria “literatura mininalista” como na música, mas coloca Ano passado em Marienbad como um filme “minimalista”: “Foi a primeira vez que um cineasta repetiu várias vezes a mesma cena, e eu não entendia isso. Agora, se você for ver, ele está atual”.

Na obra-prima de Alain Resnais, as mesmas cenas reapareciam com discretas modificações em relação ao que havia sido visto antes; e o que “reaparecia” realizava descrições anteriormente apenas faladas na trilha sonora quando contradiziam em detalhes pontuais o que havia sido visto. Isso exigia do espectador uma participação similar ao acompanhamento das consonâncias e dissonâncias musicais. O próprio Resnais disse que seu filme não se passava na tela nem na percepção do espectador, mas entre a tela e a cabeça do espectador, o que lembra o espaço transicional winnicottiano e a concepção do self-objeto kohutiano (Gallego Soares, 2004).

O filme também foi rejeitado pelas platéias quando do lançamento (1961), mas suas inúmeras inovações na sintaxe cinematográfica foram absorvidas por filmes mais “comerciais” posteriores, como o “pisca-pisca” de brevíssimas cenas, de duração suficiente apenas para serem percebidas pela retina, e que se “intrometem” numa cena mais longa e tida como “real” na diegese do filme: flashes da memória ou da imaginação dos personagens, recursos visuais análogos à associação livre.

 

O que tinha de ser

Retomando a entrevista de Almeida Prado em trecho ligado ao tema da comunicação da arte com o público, é comovente o que ele recorda sobre a escritora Hilda Hilst e seu esforço de fazer pornografia como tentativa de ser lida por uma parcela maior do público: o pensamento sofisticado de Hilda fez com que sua pornografia se transformasse em tese universitária. Prado comenta que também tentou compor de maneira “mais popular” e não conseguiu. Relembra a ambição do hermético Brahms, querendo compor algo como a ópera Carmen, de Bizet, capaz de alcançar um público maior. Mas conclui dizendo: “Eu acho que não depende do compositor ter esse dom do simples, popular. Não adianta você querer ser isso. Você tem de ser. [...] Eu desisti, porque eu queria ser banal e não conseguia”.

É a mesma constatação do pensamento de Kohut sobre a importância do projeto nuclear do self’, categoria que pode ser compreendida como análoga ao que seria o self verdadeiro em oposição ao desenvolvimento do falso self, de Winnicott. Um belo exemplo da importância de usarmos nossos talentos inatos e habilidades desenvolvidas é encontrado em uma carta de 8 de novembro de 1777, escrita por Mozart a seu pai:

Eu não posso escrever versos – eu não sou poeta; não consigo distribuir frases de modo suficientemente artístico para fazê-las produzir luzes e sombras – eu não sou pintor; muito menos posso exprimir meus sentimentos e pensamentos por sinais ou pantomima – não sou dançarino; mas posso expressá-los por sons: eu sou músico.

 

Música é pensamento

Na primeira transcrição da entrevista, um dos entrevistadores, Leopold Nosek, diz que “não faz sentido apresentar o mundo novo de um modo velho [...] a boa música propõe que você raciocine sobre que mundo afinal é esse que em vivemos. A música é uma linguagem, a música é um pensamento”. Mas, de certa forma, em oposição à boa expectativa de Nosek e com uma tonalidade algo pessimista, Almeida Prado informa que, ao contrário do que se poderia imaginar, não são gravados muitos CDs de música contemporânea que reflitam o mundo novo de um modo que não seja antiquado. Conta que há discussões pela internet sobre o porquê das Cartas celestes, com absurdos sobre viagens extraterrestres do compositor:

É uma instalação de palavras, eu nem sei de onde vem isso, e eles se divertem [...] Não lêem. [...] Agora, ler Paulo Coelho, melhor não ler, porque é um escândalo aquela bobajada toda, e ele é lido no mundo inteiro, é traduzido... O que é isso? [...] Auto-ajuda: “Seja feliz em três dias” [...] Como é que seria psicanálise em uma semana? E você fica curado? Não sei também do quê! Mas esse é o nosso tempo. Como é que se pode mudar tudo isso, eu não sei.

Será que os psicanalistas sabem se e como pode ser questionado o futuro da ilusão da busca de auto-ajuda? Será que ainda há algum atrativo na proposta freudiana de substituir a infelicidade neurótica pela infelicidade comum? Kohut trazia uma pretensão mais otimista, ao dizer que entre as transformações do narcisismo arcaico em narcisismo maduro poderia estar o humor, a joie de vivre. No entanto, os psicanalistas têm falado, e muito – e ainda com perplexidade –, numa clínica do “vazio” (termo que já fazia parte do discurso de pacientes de Kohut). Seria o caso de nos perguntarmos se e como estamos (ou não estamos) nos comunicando. Nossa linguagem e nossas propostas estão soando como música atonal para a “cultura do espetáculo”, “da celebridade” e “do narcisismo”?

Como último ponto a destacar na entrevista, a questão sobre a resistência dos alunos do compositor de escreverem à mão:

A caligrafia é como a caligrafia de uma carta, você analisa uma pessoa: a letra que cai, que sobe, que treme. Hoje é tudo perfeito [quando não se escreve à mão], é uma máscara, você se esconde ali e então nunca vê os seus buracos. Eu vejo os meus quando escrevo à mão; um jovem não vê os dele.

O compositor traduz a perda da espontaneidade, dos lapsos, dos deslizamentos que revelam o humano além das aparências manifestas. E mesmo quando se escreve à mão, o leitor nunca sabe “o que o outro está omitindo: toda correspondência é crivada de perfurações invisíveis, pequenos buracos deixados pelo que não foi escrito, mas foi pensado”.3 O que “não foi escrito”, o “não-dito”, também nos remete à questão da “pausa”, do silêncio para a respiração na obra musical, para a pausa que estabelece os ritmos de um diálogo (analítico ou não), necessidade que também é mencionada por Almeida Prado num lembrete não só aos psicanalistas: “Acho que tem que pensar no silêncio, na raiva, nas emoções”.

 

Referências

Amendoeira, W.; Gallego Soares, L. F. (2004). Existe uma influência da psicanálise sobre a cultura no Brasil?: Do “chá de Freud” ao “Freud de Cascadura”. In L. Cavalcanti (org.), Tudo é Brasil. São Paulo: Itaú Cultural; Rio de Janeiro: Paço Imperial. (Trabalho original publicado em 2003.)        [ Links ]

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Gallego Soares, L. F. (2004). Cinema e verdade, sonho e realidade psíquica. Trieb, 3 (1-2): 9-13.        [ Links ]

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Pontalis, J.-B. (1990). La force d’attraction: La librairie du XXeme siècle. Paris: Seuil.        [ Links ]

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Endereço para correspondência
Luiz Fernando Guedes Gallego Soares
Rua Xavier da Silveira, 45/603 – Copacabana
20061-010 Rio de Janeiro – RJ
E-mail: luizgallego@gmail.com

 

 

1 Membro efetivo e analista didata da SBPRJ.
2 A tradução de trechos dos trabalhos de H. Kohut contou com o auxílio inestimável do psicanalista Pedro Henrique Rondon, da SPCRJ, organizador e tradutor de uma coleção de outros artigos de Kohut, publicados sob o título Self e narcisismo (Zahar, 1984).

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