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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.41 n.2 São Paulo jun. 2007

 

PRÊMIOS DO XXI CONGRESSO DE PSICANÁLISE

 

Acting, enactment e a realidade psíquica “em cena” no tratamento analítico das estruturas borderline1

 

Acting, enactment and “in scene”psychic reality in the analytical treatment of borderline structures

 

Acting, enactment y la realidad psíquica “en escena” en el tratamiento analítico de las estructuras borderline

 

 

Mauro Gus2

Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor apresenta um apanhado metapsicológico e conceitual do acting e do enactment, ilustrando com um caso clínico a aplicabilidade técnica e os recursos que a clínica atual exige do psicanalista, tendo em conta a necessidade de pluralismo teórico e a disponibilidade contratransferencial no atendimento de pacientes de mais difícil acesso, em especial, portadores de estruturas com predomínio narcisístico e patologias limítrofes.

Palavras-chave: Transferência; Contratransferência; Acting; Enactment; Realidade psíquica; Fantasia inconsciente; Representação; Figurabilidade; Campo analítico; Intersubjetividade; Identificação projetiva e introjetiva.


ABSTRACT

The author presents a meta psychological and conceptual recollection of acting and enactment using a clinical case with technical applicability and resources demanded from the analyst by the clinic nowadays, taking into consideration the need for theoretical pluralism and counter transference availability directed to the most difficult access patients, particularly the ones with structures of predominantly narcissistic nature and borderline pathologies.

Keywods: Transference; Counter transference; Acting; Enactment; Psychic reality; Unconscious fantasy; Representation; Figurability; Analytical field; Intersubjectivity; Projective and introjective identification.


RESUMEN

El autor presenta un resumen meta psicológico y conceptual del acting y del enactment, ilustrando con un caso clínico la aplicabilidad técnica y los recursos que la clínica actual exigen del analista, teniendo en cuenta la necesidad del pluralismo teórico y la disponibilidad contra transferencial dirigida a los pacientes de más difícil acceso, especialmente, los portadores de estructuras con predominio narcisístico y patologías limítrofes.

Palabras clave: Transferencia; Contra transferencia; Acting; Enactment; Realidad psíquica; Fantasía inconsciente; Representación; Figurabilidad; Campo analítico; Intersubjetividad; Identificación proyectiva e introyectiva.


 

 

Introdução e desenvolvimento conceitual

Freud (1912/1980), referindo-se ao fenômeno do acting, definiu-o em língua alemã como agieren, consagrando e definindo o fenômeno clínico como “passagem ao ato”. Conceitualmente, enactment se liga à interface entre o que é expresso e o que não é expresso, entre o que é esquecido e aquilo que pressiona no campo para ser revivido, entre realidade e fantasia e entre o psiquismo de uma pessoa e o psiquismo de duas – da dupla terapeuta-paciente (Boesky, 2000; Cassorla, 2001, 2003; Steiner, 2000; Tucket, 2000). É unânime na literatura psicanalítica que ambos os fenômenos reproduzem sensações e sentimentos pré-verbais, anteriores à aquisição da palavra, no que tange ao desenvolvimento primitivo.

Destaco, neste trabalho, a relação existente entre os dois conceitos, acting e enactment, que, segundo Boesky (2000), refere-se a fenômenos clínicos que facilitam a integração dos conceitos de fantasia inconsciente, identificação projetiva e contratransferência, colocando em cena vivências emocionais primitivas, comunicando afetos perigosos e repudiados presentes na dupla analista-analisando.

Nas etapas precoces do desenvolvimento psíquico não existe ainda uma linguagem verbal articulada, e, muitas vezes, não vamos encontrar palavras que dêem conta, suficientemente, das sensações e sentimentos para compor uma interpretação transferencial. A palavra se mostra, pois, insuficiente, sendo o ato a única maneira de expressão possível ao paciente em determinado momento do processo e de acordo, também, com o momento em que se encontra a dupla ou a interação dos dois psiquismos. Sendo assim, o acting fica definido como uma ação feita no lugar da tarefa que se tem de realizar, ou seja, alcançar o insight.

Segundo os autores, o acting é um movimento regressivo que vai do pensamento ao ato – agieren–, do verbo ao não-pensamento, sendo de natureza onipotente e inconsciente e servindo ao narcisismo e não à relação de objeto, ou seja, dá volta para trás em vez de buscar o crescimento ou o desenvolvimento. É uma expressão da transferência, confunde o passado com o presente e opera de acordo com o processo primário (Chasseguet-Smirgel, 1990, Etchegoyen, 1987/1991, Tuckett, 2000, Cassorla, 2001, 2003).

Seguindo Etchegoyen (1987/1991), trata-se de um conceito básico da teoria psicanalítica e deve ser mantido, para o que “é necessário redefini-lo em termos metapsicológicos e não simplesmente de conduta”, completa o autor.

Tal como entendo, então, tanto o acting quanto o enactment são integrantes fundamentais e inevitáveis do processo analítico e auxiliam positivamente o andamento do tratamento de pacientes portadores de patologia borderline, apesar de, muitas vezes, serem de difícil compreensão e, aparentemente, negativos para o processo. Portanto, os fenômenos que poderiam ser entendidos como prejudiciais ao tratamento, dependendo do encaminhamento técnico são positivos e úteis para o desenvolvimento das terapias de referencial psicanalítico (Sandler, 1987; Limentani, 1969, 1981; Britton, 1999; Steiner, 2000).

A seguir, por constituir tema relevante para nossa prática e pela estreita relação com os conceitos de acting e enactment, apresento algumas noções de realidade psíquica e suas repercussões na técnica e na prática clínica com tais pacientes.

Segundo Laplanche e Pontalis (1974), a realidade psíquica contém a idéia que vem ligada à hipótese freudiana referente a processos inconscientes que não somente levam em conta a realidade exterior, mas a substituem por uma realidade interna(Freud, 1912/1980). Dessa forma, a realidade psíquica é tida como uma das versões da realidade, geralmente construída a partir da interação das percepções que se originam do mundo externo e das fantasias que se originam do mundo interno. A integração resultante constitui o mundo experiencial subjetivo do indivíduo, ou seja, asua realidade psíquica.

Concordamos todos que no acting o sujeito passa de uma representação, de uma tendência, ao ato propriamente dito ou à dramatização e encenação de conflitos primitivos dos quais não se lembra e que, para não lembrar, atua ou recria as questões primitivas dolorosas, estando elas tecnicamente referidas à transferência.

Assim, as realidades psíquicas encenadas no acting e no enactment estão intimamente relacionadas, numa tessitura que é inconsciente e ainda indizível por ser de natureza pré-verbal. A palavra, portanto, mostra-se insuficiente e não alcança conter sensações e percepções dolorosas, estas precisando ser expressas através de atuações e recriações no setting analítico.

Tais expressões são veiculadas fortemente pela identificação projetiva em pacientes cuja capacidade ainda está limitada por ansiedades persecutórias primitivas ou, mais gravemente, por aqueles instalados no que John Steiner (2000) conceitua como organizações patológicas em estruturas limítrofes.

Logo, em sua acepção mais estrita, a expressão “realidade psíquica” designa o desejo inconsciente e a fantasia que está ligada a ele, sublinhando-se que constitui uma forma particular de existência que é norteada e determinada pela fantasia inconsciente ou ainda pelas chamadas protofantasias, sensações e representações ainda anteriores à simbolização.

Nesse cenário pré-verbal e verbal, recriam-se as questões primitivas e as dores psíquicas que deverão ser revividas e sentidas pela dupla para que ocorra tratamento, sendo as fantasias inconscientes, conceito tradicional de Susan Isaacs (1949), os elementos nucleares da realidade psíquica que constituem o cerne das noções de acting e, mais recentemente, de enactment.

Retomando, então, a partir dos anos 80, surge o conceito de enactment ou recriação ou realidade psíquica em cena, entendido como um suceder de vivências não suficientemente contidas pela palavra, ora confusionantes, ora ainda inconscientes, da dupla paciente-terapeuta (Boesky, 2000; Cassorla, 2001; Steiner, 2000; Tuckett, 2000).

Anteriormente, Bion (1959) já enfatizara que o afastamento da realidade é uma ilusão, não um fato, e emerge da identificação projetiva, sendo de tal maneira predominante no funcionamento psíquico dos pacientes, que parece não ser fantasia, mas fato. Sendo assim, sublinha o autor, o paciente age – atua – como se seu aparelho perceptor pudesse ser fragmentado em diminutas partículas e projetado nos objetos externos, sendo cada partícula sentida pelo paciente como consistindo num objeto real.

A natureza dessa partícula dependerá também do objeto real, analista, e de como este reage ao que é projetado pelo paciente, bem como do caráter particular dessa partícula, conferido pela intensidade do sadismo original, ainda não transformado pelo indivíduo, ou, em outras palavras, pela intensidade do instinto de morte.

Alguns autores de fonte kleiniana aprofundaram os questionamentos com aportes indispensáveis à técnica demandada pela clínica atual, ou seja, com contribuições mais constatáveis em pacientes de difícil acesso, embora também presentes em pacientes neuróticos, dado o princípio de que toda dupla é complexa e difícil.

Penso ser consenso que cada terapeuta compõe uma síntese teórica implícita a sua prática clínica. As teorias subjacentes à compreensão do material acrescentam sobremaneira recursos teórico-técnicos. No entanto, nem sempre colaboram com a necessidade específica daquele paciente em dado momento do processo, podendo ser responsáveis por linguagens paralelas do analista e do paciente. Refiro-me à necessidade contratransferencial perturbadora de enquadrar os pacientes em determinada(s) teoria(s), o que aliena o analista da dimensão implicitamente pluralista que devemos ter em relação às demandas da clínica atual, dirigida ao atendimento das citadas “patologias do vazio” – ou seja, dos chamados “pacientes pós-modernos”, cuja queixa principal destaca sensações internas de vazio e profundas dificuldades em perceber sentimentos e distinguir o que é seu do que não é seu. Menciono aqui a necessidade de trabalharmos no que hoje é chamado de “fronteiras da psicanálise”, isto é, de introduzirmos parâmetros advindos da psiquiatria e ciências afins.

Dentre os autores de minha síntese pessoal, destacaria ainda André Green (1982, 1995), que sublinha a conexão direta do afeto com a dimensão histórica do sujeito – uma vez que o que permanece irredutivelmente infantil no psiquismo é o afeto –, abrindo-nos um referencial valioso para abordar pacientes mais difíceis.

Sugiro, então, que as atuações e recriações no campo analítico com o paciente borderline se devam à emergência e representação das partículas de afetos mais primitivos e projetados no analista. Tais afetos permaneceriam sem ligação com os objetos internalizados ou com uma falsa ligação, cabendo ao terapeuta, como intérprete, a tarefa de detecção e de busca, por meio de recursos técnicos, do(s) significado(s) afetivo(s) da(s) fantasia(s) inconsciente(s), no contexto do enquadre analítico e da história daquele tratamento e daquela dupla em particular.

As fantasias, carregadas de afetos primitivos, os quais incidem com maior ou menor intensidade sobre os sentimentos transferenciais e contratransferenciais vigentes na sessão, permitem ao analista dar figurabilidade aos afetos e representação às construções de sensações pré-verbais, que na mente do indivíduo ainda se encontram num estado denominado irrepresentável por César Botella (1997). Assim, a compreensão das atuações e recriações possibilita o andamento de análises e terapias em que predominam o pré-verbal e a desorganização psíquica, expressas através de sensações de caos, vazio e confusão mental, especialmente presentes em tais casos de difícil acesso – ou seja, em portadores de estrutura ou funcionamento borderline –, embora também observáveis em patologias menos regressivas.

Tais situações, em sua maior parte inconscientes ou pré-conscientes, determinam variados níveis de desorganização do ego, decorrentes da falência dos mecanismos de defesa em conter a invasão pulsional. Refiro-me à intensidade dos aspectos destrutivos do investimento libidinal nas relações objetais mais primitivas, decorrente de um aumento quantitativo da pulsão, o que provoca uma transformação qualitativa e ameaça o frágil equilíbrio, já que os mecanismos de defesa fracassam em conter aquela invasão pulsional (Green, 1982, 1995; Botella, 1997, 1999; Levin de Said, 2001; Gus, 2002).

Por outro lado, ao estudar as questões da destrutividade, Cassorla (2001) acentua que o conceito e a descrição de enactment passam a aparecer na literatura a partir dos anos 80, mais precisamente com Ogden (1982). Complementaria dizendo que a sistematização mais recente aparece nos trabalhos de Britton (1999), Steiner (2000) e Tuckett (2000), autores de inspiração kleiniana, em função da necessidade de teorizar e aprofundar os problemas de teoria da técnica na abordagem de pacientes com sofrimento mais primitivo.

De acordo com Cassorla (2001), fantasias inconscientes muito destrutivas e situações traumáticas arcaicas inibem a percepção do analista, especialmente em situações agudas de enactment. A compreensão permite dissolver o conluio, bem como fortalecer os mecanismos mentais do paciente e sua confiança no trabalho analítico, diz o autor, enfatizando que tais enactments deverão fazer parte da história natural do processo analítico e que sua função é propiciar as experiências arcaicas no setting por ambos os componentes da dupla.

Estamos, pois, frente a um campo que vai mais além do somatório de duas mentes; constitui-se numa área de trabalho analítico permeada por mecanismos e sentimentos pré-verbais, ou seja, que colocam em cena dores psíquicas arcaicas, através da interação das mentes da dupla. Por mais que incida de modo inconsciente e negativo – pela intensidade das pulsões destrutivas –, precisa ser compreendido como positivo para o processo. Não havendo a transformação do negativo em positividade, não ocorreria processo analítico (Green, 1995).

A não compreensão da realidade psíquica encenada no campo analítico levaria a desvios do tratamento, conluios inconscientes de natureza narcísica – os chamados “pontos cegos” –, levando as análises ou terapias inevitavelmente a iatrogenias, falsos resultados, pioras do quadro clínico, interrupções e/ou impasses.

O acting e o enactment serão, portanto, inevitáveis cada vez que a realidade psíquica da dupla – o novo campo criado pela interação – não for suficientemente vivida e analisada pela dupla ou for insuficientemente tolerada, por evocar situações conflitivas inconscientes dos dois ou de cada um, reeditadas através de sensações pré-verbais, ainda não representadas pela palavra ou ainda sem figurabilidade na mente do analista (Ogden, 1994, 1995; Botella, 1997, 1999; Steiner, 2000; Tuckett, 2000).

Como exposto até o momento, a ação evidencia a realidade psíquica “em cena”, aquilo que a palavra ainda não conseguiu nomear. O ato, ainda para não lembrar, encena para a dupla e dispara a percepção e a palavra para ambos. Com base no fenômeno da compulsão à repetição, o paciente ou a dupla repete ou age para não sentir ou não lembrar. Insuficiente por vezes, volta sempre para o setting analítico, sob a mesma ou outra feição.

Assim, enfocado o acting e o enactment, são alcançados pela técnica e podem por vezes ser acionados pela interpretação transferencial, dependendo do momento pelo qual está passando o paciente e/ou o analista. Quando o setting não é continente e não são percebidos os enactments, estes servem como disparo dos actings. Não se trata, porém, de conceitos superponíveis. Entendo-os como complementares e expressões de uma análise em andamento. Uma visão diferente, do meu ponto de vista, induz rechaço e rejeição a tais fenômenos, tornando a técnica empobrecida e com insuficiente instrumental para abordagem das vivências mais primitivas.

A seguir, apresento uma vinheta clínica que visa ilustrar como sinto, percebo e abordo os fenômenos acima descritos em uma paciente portadora de patologia predominantemente borderline.

 

Ilustração clínica

C., 27 anos, sexo feminino, profissional da área de saúde, procura tratamento analítico por sentir-se confusa, sem critérios para escolha de companhias masculinas, relatando isolamento da família, extrema intolerância à presença da mãe, labilidade afetiva e choro fácil. Expõe-se à noite pelas ruas sem se cuidar, com sensações de oco e vazio, sem nada sentir, como um autômato ou robô, freqüentando bares em zonas de meretrício, com riscos quanto à segurança pessoal. Descreve mal-estar e desconforto por ter de ouvir a si mesma relatar seu sofrimento e por precisar de tratamento. Gostaria de não precisar de ninguém, muito menos de um analista, detesta combinar horários e ter limites. Diz estar decidida a não abrir mão de uma relação com um homem alcoolista que a expõe a riscos, sendo acordada durante a noite e precisando ir buscá-lo em bares. Aprecia demais “situações atípicas”, sendo esse traço conhecido por todos que com ela convivem, e, segundo costuma ouvir dos familiares, é sempre e a princípio “do contra”.

Suas sessões são extremamente difíceis e trabalhosas. Tem longos silêncios, presença pesada e negativista. Desafiadora, falta, atrasa-se, argumenta que tinha anunciado ser “do contra”, mantendo as atuações autodestrutivas e, mesmo assim, vindo às sessões. Ataca os vínculos permanentemente, reeditando com o analista sua relação mais primitiva com os objetos internos, sadicamente atacados. A capacidade do analista de tolerar tais ataques sem ocupar o papel de objeto atacado, de entender e interpretar representa a essência da ação terapêutica, tal como entendo e procedi nesse caso. Vive em “estado de atuação”, tendo tanto no acting como no enactment o caminho de melhor compreensão e analisabililidade do seu sofrimento.

A abordagem possível com essa paciente, a meu ver, estaria na dependência de tornar interno o que é externo, ou seja, de inserir no setting e na relação com o terapeuta, na transferência e contratransferência, sua dor psíquica, pouco falada e muito atuada. Mesmo com riscos para o patrimônio físico e moral, as atuações, ou seja, o ataque ao vínculo analítico, acompanhadas de sensações de oco e vazio, sem discriminar o que sente, causam-lhe ira ao perceber que depende de mim e são intensificadas, comunicando assim aquilo que a palavra não alcança. Opõe-se assim, através dos riscos, à percepção de sua profunda dor psíquica e ao vazio causado pelo esfacelamento e ataque aos objetos primários internalizados.

Reiteradamente analisadas, tais atuações, com a aparente negatividade, são positivas para o processo e explicam, pela identificação projetiva e introjetiva, a relação sadomasoquista com seus objetos internalizados e com o analista. As angústias contratransferenciais levavam-me a sentir com intensidade o que C. não conseguia ainda sentir, os riscos que corria, e essa percepção era transmitida a ela tal como se passava comigo em minha mente. Surpreendo-me então, com alguma freqüência, recomendando cuidados e alertando para os riscos – enactment. Em muitos momentos da análise, sinto-me mobilizado pela paciente em função de precisar atendê-la tal como se atende a um bebê, efetivamente na função materna/paterna, explicitando o quanto ela buscava preocupar-me, levando-me a desempenhar, por enactment, os papéis das figuras primitivas internalizadas e ainda protetoras.

Nesse caso, o enactment evidencia a contratransferência, a identificação projetiva e as fantasias, expressas através dos temores e receios do analista e dos impulsos destrutivos da paciente buscando ser alvo de brutalidades e submetendo a riscos seu patrimônio físico e moral. Trata-se de um caso em que o acting e o enactment foram de fundamental importância para a abordagem transferencial das ansiedades mais primitivas e ainda sem suficiente representação na mente da paciente.

 

Considerações finais

Os autores citados são unânimes em afirmar que, em vez de falar sobre os impulsos, o paciente os atua fora ou dentro da sessão com as pessoas que o rodeiam, ou em atitudes autodestrutivas dirigidas a seu próprio self psíquico e corporal, durante a sessão, na qual vai agir ou falar de modo a provocar tais afetos no analista, via identificação projetiva.

Esse estado produzido pelos dois inconscientes, via identificação projetiva, cria o enactment. O analista, portanto, é sensível ao funcionamento assim descrito, de acordo com uma ou outra área de sua personalidade. Se for receptivo e sensível, será capaz de experimentar os impulsos e emoções dissociados do paciente e, a partir da contratransferência, será capaz de conter, metabolizar e formular as interpretações de uma maneira tal que o paciente possa suportar a interpretação (Folch & Folch, 1987). E complementaria dizendo: numa linguagem simples e própria a cada paciente e de acordo com a história da dupla específica num processo terapêutico em particular, ou seja, para cada dupla e para cada processo em especial.

Portanto, a comunicação pré-verbal ocupa um papel de destaque no processo terapêutico. Ela expressa em seu dinamismo inconsciente as fantasias que se modificam a cada sessão e que podem variar numa mesma sessão, dependendo do interjogo das identificações projetivas e introjetivas vigentes. Tal comunicação evidencia a essência do que não é dito e que, no mais das vezes, é o conteúdo mais expressivo e efetivo da ação terapêutica da psicanálise.

Nos quadros mais graves, com intensas fixações orais e anais e funcionamento limítrofe, a pulsão se liga a representações de objeto de escassa eficácia simbólica. A defusão instintual que se manifesta pelo temor de aniquilamento que ameaça o ego, sob o peso dos maus objetos introjetados, conduz ao acting e induz o enactment. O setting analítico precisa conter o temor de uma irrupção fragmentada, de uma sensorialidade bruta que necessita ser integrada através de uma nova visão pelo analista, que confere figurabilidade e representação a tais sensações tão primitivas. O analista, ao conter, interpretar e transformar estados emocionais carregados de tal sensorialidade – irrupções que representam um modo de defesa arcaico frente aos sentimentos de profundo desamparo causado pela severidade das identificações projetivas –, configura sua escuta como a possibilidade de dar novos significados aos fragmentos psíquicos mais primitivos de natureza oral (Gus & Gus, 2000).

Construímos assim, como terapeutas, o “não construído”, daí a importância do entendimento da realidade psíquica através das atuações e recriações, dentro ou fora do setting analítico, como inerentes aos processos mentais mais regressivos vigentes em estruturas fronteiriças. Sugerimos, pois, que aos psicanalistas, tanto experientes como em formação, é necessária a capacidade de acolher referenciais complementares e de introduzir parâmetros contemporâneos nas terapias, integrando teorias, autores e conhecimentos de áreas afins, ampliando e enriquecendo, desse modo, seus recursos técnicos, com o intuito de oferecer respostas mais adequadas às necessidades reais dos pacientes da clínica atual.

 

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Endereço para correspondência
Mauro Gus
Rua Luís Manoel Gonzaga, 721
90470-280 – Porto Alegre – RS
E-mail: maurogus@terra.com.br

Recebido em 26.11.2006
Aceito em 8.5.2007

 

 

1 Versão atualizada de trabalho apresentado na SPB (Sociedade de Psicanálise de Brasília) em 23 de abril de 2004; Prêmio Durval Marcondes para Analistas Didatas, XXI Congresso Brasileiro de Psicanálise, Porto Alegre, maio de 2007.
2 Médico psiquiatra; membro efetivo e analista didata da SPPA.

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