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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.41 n.2 São Paulo jun. 2007

 

PRÊMIOS DO XXI CONGRESSO DE PSICANÁLISE

 

Conhecendo o inconsciente: relato da experiência com o ensino da psicanálise na universidade, com alunos do terceiro ano de graduação em psicologia1

 

Getting to know the unconscious: report on the experience of teaching psychoanalysis in university to third-year students in the psychology graduation course

 

Conociendo el inconsciente: relato de la experiencia de enseñar psicoanálisis en la universidad para alumnos de tercer año de graduación en psicología

 

 

Francisco Carlos dos Santos Filho2

Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
Universidade de Passo Fundo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Conhecer o inconsciente requer dedicação científica, profundidade afetiva e sensibilidade para a experiência inter-humana. Se, na tradição psicanalítica, transmissão e formação se constroem mutuamente durante os seminários teóricos, a supervisão e a análise pessoal, na graduação não é assim. Restritos à sala de aula e à transmissão teórica, aumentamos o risco de um ensino teórico e superficial, que suprime a densidade do processo clínico psicanalítico e leva à perda do entusiasmo por esse trabalho, abrindo espaço para práticas intelectivas, persuasivas e sugestivas. Como introduzir o jovem estudante na experiência clínica e prover-lhe uma base conceitual que sustente alguma compreensão sem criar uma barreira de resistência excessiva no processo de ensino-aprendizagem? Com o “laboratório de entrevista”, buscamos uma transmissão na fronteira entre o teórico e o experiencial, indissociável da experiência subjetiva do aprendiz. Pretendemos, por meio do exame das produções teóricas dos alunos, discutir os efeitos desse ensino e as condições necessárias para sua elaboração.

Palavras-chave: Psicanálise e universidade; Ensino da psicanálise; Transmissão da psicanálise.


ABSTRACT

Knowing the unconscious requires scientific dedication, affective depth and sensitivity for the inter-human experience. If in the psychoanalytical tradition, transmission and training are mutually built during theoretical seminars, supervision and personal analysis, in the graduation situation this is not the case. Restricted to the classroom and to theoretical transmission we increase the risk for a superficial and theoretical teaching, which aborts the density of the psychoanalytical clinical process and leads to the loss of enthusiasm for this work, opening space for intellective, persuasive and suggestive practices. How can we introduce the young student to the clinical experience and provide him with a conceptual basis that is supportive without creating an exceedingly resistant barrier in the teaching-learning process? With the “interview lab” we have sought transmission in the frontier between the theoretical and the experience which is undividable from the learner’s subjective experience. We intend to discuss, through the students’ analysis of theoretical productions, the effects of such teaching and the necessary conditions to work it through.

Keywords: Psychoanalysis and university; Teaching of psychoanalysis; Transmission of psychoanalysis.


RESUMEN

Conocer el inconsciente requiere dedicación científica, profundidad afectiva y sensibilidad para la experiencia inter-humana. Si, en la tradición psicoanalítica, transmisión y formación se construyen mutuamente durante los seminarios teóricos, supervisión y análisis personal, en la graduación no es así. Restrictos a la sala de clase y a la transmisión teórica, aumentamos el riesgo de una enseñanza teórica y superficial, que quita la densidad del proceso clínico psicoanalítico y lleva a la pérdida del entusiasmo por este trabajo, abriendo espacio para prácticas intelectivas, persuasivas y sugestivas. Como introducir al joven estudiante en la experiencia clínica y ofrecerle una base conceptual que la sustente sin crear una barrera de resistencia excesiva en el proceso de enseñar-aprender? En el “laboratorio de entrevista” buscamos una transmisión en la frontera entre la teoría y la experiencia, indisociable de la experiencia subjetiva del aprendiz. Pretendemos, a través del examen de las producciones teóricas de los alumnos, discutir los efectos de esa enseñanza y las condiciones necesarias para su elaboración.

Palabras clave: Psicoanálisis y universidad; Transmisión del psicoanálisis; Enseñanza del psicoanálisis.


 

 

1. Introdução

Conhecer o inconsciente requer dedicação científica, profundidade afetiva e sensibilidade para a experiência inter-humana. Na tradição psicanalítica, transmissão e formação se constroem mutuamente, num entrelaçamento que se dá ao longo dos seminários teóricos, da supervisão e da análise pessoal. Com os estudantes da graduação, contudo, esse modelo não é aplicável: não dispomos de alguns desses recursos. Tradicionalmente estamos restritos à sala de aula e à transmissão teórica, que pode, por seu turno, encontrar-se dissociada da experiência de vida e das atividades acadêmicas. A disciplina Fundamentos de entrevista psicológica é oferecida num momento em que os estudantes ainda não tiveram nenhuma experiência prática com pacientes.

 

2. A vivência e seu método

O modelo de ensino que adotei é uma escolha aberta ao questionamento. A idéia é inverter a lógica de ensino que vai da teoria para a prática. A experiência vem em primeiro lugar. A teoria só faz sentido se o aluno precisar dela como ferramenta necessária para ler aspectos da realidade que não se revelam espontaneamente. O laboratório de entrevista é um dos pilares desse método; o outro é a participação de alunos monitores.

O laboratório funciona assim: os estudantes têm suas aulas numa sala de espelho unidirecional na clínica-escola da universidade. No início de cada aula, é realizado o atendimento de um paciente que foi informado da natureza do trabalho e consentiu em participar. Um dos alunos conduz o processo clínico, tendo o acompanhamento de alguns colegas e do professor atrás do espelho. Logo após o grupo se reúne para a discussão, que é seguida de uma aula na qual são introduzidos conceitos psicanalíticos fundamentais, como sustentação teórica da experiência. O material clínico é transcrito e arquivado como banco de dados para utilização posterior em produções científicas, devidamente autorizada pelo paciente por meio de termo de consentimento livre e informado.

Tão logo se habituem ao processo, os alunos formarão grupos de trabalho para produzir artigos baseados em algum ponto de interesse levantado durante as observações. São essas produções que iremos examinar, pois elas refletem as inquietações, as críticas e as resistências, bem como os pontos de curiosidade científica dos alunos.

Uma aquisição como essa exige mais que conhecimento teórico, devendo a metodologia de ensino dedicar-se a desenvolver uma atitude básica que só posso designar como uma ética. Lowenkron (2000) adota também uma parte prática para favorecer a aquisição dessas habilidades dentro do tempo limitado da grade curricular. Ela consiste na observação de entrevistas de pacientes que permitem aos estudantes acompanhar, pelo espelho unidirecional, a sala onde ocorre o atendimento. A prática de observação é um recurso didático que possibilita ao estudante o reconhecimento das manifestações do inconsciente por suas formações e a apreensão das sutilezas peculiares à escuta psicanalítica. Esse recurso quer despertar os acadêmicos para a existência, no encontro inter-humano da sessão, de aspectos que ultrapassam o senso comum e apontam para as significações profundas ligadas ao infantil que ali se revela. O trabalho não visa habilitar terapeutas: se o estudante puder desenvolver uma escuta sensível a esses fatores, teremos atingido o objetivo. As habilidades e competências básicas desenvolvidas pelos alunos iniciantes devem poder colocá-los minimamente em contato com a tarefa ética, que é a de escutar e receber o sofrimento humano de cada sujeito e acolhê-lo de um modo a um só tempo isento e caloroso. Quanto ao procedimento do espelho, está sujeito a críticas: conhecemos os efeitos intervenientes que ele causa à situação analítica, íntima e privada por princípio.

 

3. Situando problemas

O modelo de trabalho clínico que os alunos têm na cabeça nesse momento é bastante diferente daquilo que é a experiência de uma entrevista psicanalítica. Eles trazem consigo suas referências de vida e raramente tiveram oportunidade de experimentar uma escuta sustentada psicanaliticamente. Pensam que ajudar é persuadir, aconselhar e resolver os problemas alheios – com a experiência que possuem, não poderia ser diferente. Ocorre um choque entre o modelo imaginário do aluno e aquele que pressupõe um encontro com o inconsciente.

A questão é que, na busca curiosa e ainda ingênua do encontro com o inconsciente alheio, o primeiro que se encontra é o próprio inconsciente, coisa que irão descobrir logo. Aqui existe um duplo risco: de um lado, o aprisionamento num ensino puramente teórico, desligado da experiência clínica e distante do que os alunos podem assimilar com a bagagem desse momento; de outro, a possibilidade de oferecer uma vivência clínica através da experiência prática, que entretanto, por sua própria natureza, pode provocar um impacto capaz de intensificar indesejavelmente as resistências.

Ao realizar a opção pela experiência prática, assumo o risco de criar uma excitação inicial seguida de uma resistência bastante considerável para prosseguir. Alguns alunos logo percebem que essa situação os atinge em algum nível que eles não sabem bem como explicar; detectam algo que lhes perturba a paz e os desvia dos planos de aprender com a distância positivista daquele que observa seu objeto de estudo sem se deixar tocar.

Como introduzir o jovem estudante nos conceitos psicanalíticos, provendo-lhe uma base conceitual que sustente alguma compreensão sem criar uma barreira de resistência que atente contra os interesses do processo de ensino-aprendizagem? A medida não é fácil, e não creio tê-la encontrado em algum momento desse trajeto.

A tendência dentro da academia é a de transformar os modelos clínicos em teorias, dando a idéia de que existe um leque de opções de abordagens clínicas que podem ser escolhidas e exercidas sem dificuldades pelo técnico, que decide o que é melhor aplicar em cada caso. Essa situação reflete um expediente dos professores para facilitar o ingresso do aluno num mundo complexo que ele não conhece. O efeito colateral que essa suposta simplicidade cria é sugerir que podemos não só estudar as diversas teorias, mas escolher e “aplicar” a opção técnica mais adequada, coisa desmentida pela experiência. Ela vai mostrar ao aluno que, na clínica, manejar um referencial teórico e seus modelos com coerência e profundidade leva uma vida de aprimoramento e implica um processo de ressignificação de tudo o que estudou. O risco de pegar esse atalho no processo de ensino é esvaziá-lo da densidade específica do processo clínico psicanalítico. Isso empobrece e leva à perda do entusiasmo pelo ensino e aprendizagem desse trabalho, abrindo espaço para modelos intelectivos, persuasivos e sugestivos de tratamento.

A finalidade última desse trabalho de ensinar psicanálise na universidade é plantar uma semente que, quando germina, cria uma experiência profunda, capaz de abalar certezas e abrir o desvio que desloca os esforços aplicados na adaptação para a direção do próprio inconsciente. A transmissão apoiada na prática clínica transita na peculiar fronteira da teoria com a experiência, impregnando-se da vivência subjetiva do aprendiz, implicado e agitado internamente nos espaços de atendimento, observação, discussão e supervisão. Queremos examinar as peculiaridades do ensino da psicanálise na universidade e, por meio da produção dos alunos, acompanhar o efeito mobilizado pelo encontro com o inconsciente dos pacientes.

 

4. Revisando escritos

Jean Laplanche não compartilha da idéia de que a psicanálise seja uma verdade intransmissível, uma verdade que não se ensina. É favorável ao ensino da psicanálise na universidade, desde que este seja um ensino vivo e consista no relato que o pesquisador faz do andamento de suas pesquisas. Esse pensamento o aproxima de Freud, que defendia a inclusão da psicanálise nos currículos universitários de medicina, psiquiatria e ciências humanas.

Freud (1919/1976) aponta inclusive que as sociedades de analistas são um sintoma da exclusão da psicanálise do acervo do saber universal representado pela universidade. Essa exclusão gerou como efeito uma situação de autogestão que fez com que a psicanálise prescindisse da universidade para subsistir. Os analistas podem aprender teoria, observa Freud, valendo-se dos textos de outros psicanalistas e dos encontros científicos das sociedades, e podem aprender a trabalhar tendo a supervisão de colegas mais experimentados – e para isso em nada a universidade se faz necessária. Mas Freud prevê, ao mesmo tempo, ganhos mútuos com a aproximação da psicanálise com a universidade.

A parcialidade na formação do estudante de medicina, para Freud, conduz à anatomia, à biologia e à química e menos ao valor do significado dos fatores psíquicos, tanto nas funções vitais fundamentais como nas doenças e seu tratamento. Essa falha na formação resultará na falta de interesse pelos problemas inerentes à vida humana e numa inabilidade em lidar com os pacientes, a tal ponto que até mesmo os curandeiros terão sobre eles maior efeito. Isso permite uma analogia com o campo “psi” na atualidade, no qual a tendência a teorizar e superficializar restringe o espaço de ensino dos princípios psicanalíticos. No Brasil, é no contexto das graduações em psicologia e medicina – com setores hostis à psicanálise – que ganham força os modelos intelectivos, persuasivos e alternativos para o tratamento da alma humana, disseminados na formação acadêmica por modelos de pesquisa e de ensino que tendem a instrumentalizar, quantificar e medicalizar a subjetividade. É aí que se perde a trilha do respeito pelos enigmas e dilemas da alma humana e se vai em busca de um adaptacionismo raso e rápido, travestido de eficácia.

Freud acredita que a é psicanálise, com seu método singular, o melhor meio de ensinar aos estudantes em geral uma psicologia de sentido profundo e um modelo de aparelho psíquico. Mas deixa, contudo, uma advertência: não se pense que o estudante, nesse contexto, vai aprender a prática da psicanálise propriamente dita; ele pode, no entanto, aprender algo da psicanálise e aprender a pensar processos e fenômenos patológicos e normais a partir da psicanálise.

Birman (2003) observa que uma classe acadêmica não quer formar um psicanalista, mas criar um espírito crítico, um efeito “desviante” que produz ruídos no pensamento homogeneizado, massificado e rotineiro em que vivemos.

Para Laplanche, a objeção a ensinar psicanálise a “não-analistas” não deve levar a um abandono do ensino da psicanálise na universidade. É sinal de muito pouca fé na reatividade do inconsciente não querer transmitir os fundamentos da teoria porque os alunos não estão num processo formal de análise. Laplanche, ao examinar o problema do ensino da psicanálise na universidade, propõe que esse deve ser um ensino vivo, consistindo no momento em que o pesquisador relata o andamento de suas pesquisas.

O autor se opõe a algumas críticas ao ensino da psicanálise na universidade. Uma delas sustenta que na análise residiria uma espécie de “pura verdade”, já que só ali se dá o processo vivo e fluido de incessante descoberta do inconsciente. O saber seria o momento em que se quer paralisar, apreender, imobilizar uma verdade, como numa fotografia. “Imobilizar”, aqui, tem dois sentidos: captar um instantâneo de algo que, no momento seguinte, já escapou ao aprisionamento do conhecido, e paralisar como forma de impedir que a descoberta prossiga.

 

5. Resultados comentados

Apresento a seguir uma proposta de ordenamento dos resultados, através do agrupamento das produções por categoria de análise. São ao todo 41 produções, iniciadas na metade do ano de 2003. A tabela 1 apresenta uma lista geral dos trabalhos e as categorias em torno das quais eles se agrupam, num panorama das produções dos alunos e de seus interesses científicos:

 


 

Lembro que quatro dos 41 trabalhos são produções do grupo de monitores, restando 37 dos alunos. Alerto que os temas foram ordenados a partir de linhas mais distantes da experiência clínica direta, iniciando com trabalhos na interface da psicanálise com a música, a poesia e o cinema, passando pela psicopatologia e ensaios de precisão conceitual, para se dirigir aos poucos à técnica e chegar, nos grupos 5 e 6, ao âmago da tarefa do clínico iniciante e ao trabalho psíquico que lhe é imposto. Essas duas últimas categorias reúnem dezoito trabalhos, ou seja, praticamente a metade de toda a produção. O interesse desse trabalho está centralizado nessa metade das produções: elas apontam para as preocupações dos alunos e para as inquietações com seus afetos no trabalho de aprendizagem, trazendo consigo um vibrante questionamento que se volta para o laboratório e para a forma como é desenvolvido.

A tabela 2 detalha as preocupações dos alunos com seu trabalho como terapeutas, componentes do grupo 5, organizadas em três subcategorias:

 


 

Algumas apreensões são tão presentes que acabaram por se aglutinar em linhas de investigação. É o caso das dificuldades dos terapeutas iniciantes para enfrentar processos precocemente abandonados. Os alunos tendem a realizar uma atribuição culposa em que sua condição de iniciantes os responsabiliza pela evasão dos pacientes, não raro representados como “cobaias” de um experimento. Essa posição severa os conduz à conclusão de que os pacientes só seriam bem atendidos fora do laboratório e por pessoas mais experientes. Esquecem que é preciso começar por algum lugar para se tornar experiente. Esse modo de pensar foi discutido nos trabalhos e se revelou por vezes um recurso defensivo, convidativo ao abandono da tarefa ou à inibição para aprender e atender.

A situação é semelhante quando surgem problemas clínicos difíceis, como pacientes provocadores e hostis. O impacto da transferência negativa leva a inquietações sobre conservar a abstinência e sustentar a escuta nessas condições. O mesmo se dá com a angústia dos alunos perante o silêncio: ele aterroriza, pela sensação de que é causado pela incompetência do iniciante, incrementando a fantasia de que é preciso saber o que dizer se o paciente não falar nada. Esse desamparo, como poucas coisas, move os alunos a investigar.

A tabela 3 detalha os afetos relacionados À vivência dos alunos no laboratório e aponta para uma tarefa com grande poder de mobilizar angústias, separando duas subcategorias:

 

 

Na primeira subcategoria, os trabalhos evidenciam as críticas dos alunos à observação, por ela abrir a intimidade da cena terapêutica. Na segunda, discutem-se os custos psíquicos que oneram os alunos na experiência de aprender sob esse modelo de trabalho, como assistentes ou como terapeutas. Uma proposta liga o aspecto traumático de toda aprendizagem – e dessa em especial – com o decorrente ônus que o aluno enfrenta ao atender pela primeira vez; outra lida com possíveis dificuldades adicionais enfrentadas na aprendizagem sob observação, se comparada à supervisão tradicional.

O grupo 4, dos trabalhos sobre técnica, tem interesse principalmente porque indica uma forte preocupação com o despreparo teórico e técnico e reflete a angústia natural com esse confronto. A experiência inicial pode, por essa razão, converter-se em traumática. Há um descompasso entre a complexidade da situação vivida e as ferramentas psíquicas para seu adequado enfrentamento. Enfrentamento, aliás, fadado a certa inadequação em função de um visitante inesperado: o próprio inconsciente.

 

6. Finalizando

Este é um trabalho de observação; ele explora uma realidade e traça conjecturas nela apoiadas como quem desenha um mapa de memória, sem pretender que seja conclusivo. Minhas notas finais são hipóteses sobre o que tenho visto ao longo de três anos e meio e devem ser aprofundadas; concentram-se na capacidade de mobilização de angústias e defesas – presente na tarefa de aprender o trabalho clínico – e no estado de despreparo teórico, clínico e pessoal do aluno que com ela se defronta.

O primeiro aspecto se reflete no número de trabalhos dedicados às angústias do terapeuta e ao próprio laboratório. Os alunos, ao observarem o colega trabalhar, imaginam-se nessa situação e se angustiam em pensar como seria se fosse com eles. Essa angústia é um forte impulsor para tentar ligar, pela via do trabalho teórico, a inquietação do desconhecido. Teorias sexuais adultas, diria Laplanche. Mas essas teorias não nos conduzem a mitos e, sim, a conservar a abertura mental necessária para trabalhar. Alguns percebem que esse desconhecido é antes um desconhecido interno, ativado pelo contato com o inconsciente do paciente e do colega terapeuta. Creio que é por essa via que se alcança uma discussão mais viva e honesta sobre a relevância de analisar, e não repetindo recomendações muitas vezes distantes da realidade do aluno.

Existe, contudo, o risco de o aluno ficar à mercê de defesas severas e que impeçam sua aproximação ao objeto de estudo em foco. A percepção do próprio despreparo pode dar margem a atribuições projetivas simplistas de responsabilidade – por exemplo, os programas deficitários do curso, esquecendo seu momento precoce e esperando que a graduação forme terapeutas. Há também a já referida representação melancólica de se acharem muito incapazes de atender alguém, a ponto de prejudicar os pacientes. São movimentos defensivos para lidar com o traumático de uma situação que, por sua intensidade ou natureza, apanha o sujeito num momento em que as capacidades psíquicas de que ele dispõem estão aquém do necessário para a apreensão e domínio daquela situação. Isso prejudica a aproximação do aluno com a beleza complexa do trabalho.

O despreparo teórico leva à aplicação mecânica de princípios técnicos que, por não compreendidos, tornam-se rígidos. Essa rigidez sintomática causa um repúdio crítico às regras técnicas e faz o aluno ingressar numa angústia por resultados, expressa na arriscada adesão a métodos persuasivos. A situação não é fácil. Faz muita falta o domínio de códigos que permitam traduzir e interpretar essa experiência.

É preciso mobilizar recursos para a ligação dessa experiência. Eles podem favorecer contato inicial positivo com a psicanálise e fazer de seu ensino um trabalho enriquecedor. Não contamos com as condições ideais. Faltam as bases conceituais e o espaço necessário para fornecer as matrizes identificatórias dos modelos de trabalho dos mais experientes. O que importa é criar, a um só tempo, uma atitude acolhedora e rigorosa para com a tarefa – atitude fruto das transferências presentes no processo de aprendizagem e na relação com o professor e com os colegas. Afinal, o que são essas produções senão narrativas que buscam dar conta de uma história singular, da transferência com o professor e do início de um trajeto clínico? Esta é a minha homenagem a narrativas tão ricas e diversificadas. Não é simples simbolizar o desconhecido do próprio inconsciente, mas é um recurso que se adquire e que ganha valor no a posteriori da experiência profissional.

 

Referências

Birman, J. (2003). Entrevista ao jornal Gradiva On-Line. www.gradiva.com.br.        [ Links ]

Freud, S. (1976). Sobre o ensino da psicanálise na universidade. In S. Freud, Obras completas, v. 17. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1919.)        [ Links ]

Laplanche, J., & Pontalis, J.-B. (2001). Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

_____ (1996). La prioridad del otro en psicoanálisis. Buenos Aires: Amorrortu.        [ Links ]

_____ (2001). Entre inspiración y seducción: el hombre. Buenos Aires: Amorrortu.         [ Links ]

Lowenkron, T. (2000). O ensino da psicanálise na graduação médica. Psiquiatria na Prática Médica, Unifesp/EPM, v. 3, n. 33, jul/set.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Francisco Carlos dos Santos Filho
Rua Bento Gonçalves, 578/405
99010-010 – Passo Fundo – RS
Tel.: 54 3313-2475
E-mail: franciscosantos@superig.com.br

Recebido em 6.11.2006
Aceito em 8.5.2007

 

 

1 Artigo “Tema livre” do XXI Congresso Brasileiro de Psicanálise, Porto Alegre 2007, Prêmio João Bosco Calábria Oliveira, para Candidatos.
2 Professor de Fundamentos de Entrevista Psicológica e Psicologia Clínica do Curso de Psicologia da Universidade de Passo Fundo; candidato da SBPdePA. Monitores da disciplina Fundamentos da Entrevista Psicológica do Curso de Psicologia da Universidade de Passo Fundo: Cristiane Baccin; Cristiane Palaoro; Eliane Schissler; Gisele Dalla Lana; Henrique Zilli; Ilana Vieira; Joseane Ferrari; Mário Jungues; Noeli Neitzke; Patrícia Mezzomo; Rosane Tatsch; Tatiana Gassen; Tatiana Rosa; Thaís Gassen

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