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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.41 n.2 São Paulo jun. 2007

 

ARTIGOS

 

Diário de um espelho: a relação analítica e a construção primordial de um psiquismo

 

Mirror’s diary: the analytical relationship and the primordial construction of a mind

 

Diario de un espejo: la relación analítica y la construcción primordial de una mente

 

 

Gina Khafif Levinzon*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Cada vez mais, no trabalho psicanalítico, deparamo-nos com pessoas que se caracterizam pela inacessibilidade no contato e pela grande fragilidade do ego em lidar com as pressões externas e internas. A autora aborda o tema a partir do caso clínico de uma menina que apresentava intenso retraimento, com grandes prejuízos para sua relação com as pessoas que a rodeavam. Na situação analítica, a paciente se negava a interagir e a falar com a analista por um longo tempo, atribuindo sua resistência ao sentimento de vergonha. É examinada a configuração narcísica presente nesse estado afetivo, assim como o manejo técnico utilizado para estabelecer um canal de aproximação que favorecesse um vínculo mais consistente. Criou-se, a partir da construção conjunta da dupla analítica, uma espécie de espelho vivo, que permitiu a construção gradual de uma estruturação narcísica mais integrada. Aos poucos, a paciente pôde se desenvolver, abandonar seu estado de mutismo e abrir portas para sua criatividade e espontaneidade.

Palavras-chave: Estados fronteiriços; Vergonha; Espelho; Técnica psicanalítica.


ABSTRACT

More and more, in psychoanalytical work, we encounter people who are characterized by their inability to make contact with others. Their egos are fragile and they have difficulty dealing with internal and external pressures. The theme of this work approach is based on a clinical case involving a young girl presenting an extreme withdrawal behaviour that damaged her ability to establish relationships. In the analytical situation, the patient refused to interact and speak with the analyst for a long period of time. She attributed her resistance to a feeling of shame. The narcissistic configuration presented in this affective state was examined, as well as the technical handling utilized to establish a channel of closeness that favoured a more consistent link. The analytical couple created a living mirror that permitted the gradual construction of a more integrated narcissistic structure. Little by little, the patient developed and abandoned her silence, opening a door to her creativity and spontaneity.

Keywords: Borderline states; Shame; Mirror; Psychoanalytical technique.


RESUMEN

Cada vez más, en el trabajo analítico, nos encontramos con personas que se caracterizan por la inaccesibilidad en el contacto y por la gran fragilidad del ego en lidar con las presiones externas e internas. Este trabajo aborda este tema, a partir del relato de un caso clínico de una niña que presentaba intenso retraimiento, con grandes perjuicios en su relación con las personas que la rodeaban. En la situación analítica, la paciente se negaba a interaccionar y a hablar con su psicoanalista por un largo período de tiempo, atribuyendo su resistencia al sentimiento de verguenza. La configuración narcisista presente en este estado afectivo es examinada, igualmente al manejo técnico utilizado para establecer un canal de aproximación que favoreciera un vínculo más consistente. Fue creado, a partir de la construcción conjunta de la dupla analítica, una especie de espejo vivo, que permitió la construcción gradual de una estructuración narcisista más integrada. A los pocos, la paciente pudo desarrollarse, abandonar su estado de mutismo y abrirle puertas a su creatividad y espontaneidad.

Palabras clave: Estados fronterizos; Verguenza; Espejo; Técnica psicoanalítica.


 

 

Desde o início, a psicanálise tem se caracterizado pelo questionamento constante e pela busca de reformulações diante dos desafios enfrentados. Em um de seus últimos trabalhos, Freud (1937/1980) se depara com os limites de sua técnica, ao observar a variação dos resultados da técnica psicanalítica:

[...] esforçando-nos por substituir repressões, que são inseguras, por controles egossintônicos dignos de confiança, nem sempre alcançamos nosso objetivo em toda a sua extensão – isto é, não o alcançamos de modo bastante completo. A transformação é conseguida, mas, com freqüência, apenas parcialmente: partes dos antigos mecanismos permanecem intocadas pelo trabalho de análise (p. 261-262).

As dificuldades encontradas no trabalho analítico sobressaem quando se trata dos casos chamados “fronteiriços” ou com “fortes características narcísicas”, e que Green (1977/1988) prefere denominar “estados fronteiriços de analisabilidade”. Esses últimos se caracterizam pela inacessibilidade no contato com o outro e pela grande fragilidade do ego em lidar com as pressões internas e externas. Green ressalta que “a fronteira da insanidade não é uma linha; é, antes, um vasto território sem nenhuma nítida divisão: uma terra de ninguém entre a sanidade e a insanidade”.

Diante das fortes defesas do paciente para tentar preservar um equilíbrio psíquico precário, o analista se vê às voltas com a necessidade constante de “reinventar a técnica”, buscando alternativas para o estabelecimento de condições que promovam o desenvolvimento mental. As interpretações, como recurso psicoterápico, necessitam ser precedidas pela criação de um setting que permita a construção de estruturas psíquicas básicas do sujeito. Para isso, torna-se essencial poder considerar a experiência obtida no terceiro analítico (Ogden, 1996), que representa a intersecção entre o psiquismo do analisando e o do analista no atendimento.

Na situação analítica, é o paciente quem ensina ao analista o seu dialeto pessoal, e sua especificidade é o elemento norteador para o trabalho psicoterápico. A capacidade do analista de suportar o não saber, como descreveu magistralmente Bion (1962/1991), e de usar a sua sensibilidade para compreender o paciente, assim como seu sentimento de liberdade para experimentar formas de aproximação, são essenciais nesse processo.

Pretendo neste trabalho, a partir do relato de um caso clínico que se caracterizava por intenso retraimento, examinar a configuração narcísica presente por detrás do estado afetivo denominado “vergonha” e levantar questões sobre o manejo técnico utilizado para a construção de um espaço psíquico mais desenvolvido.

 

Maria

Após vários titubeios, os pais de Maria me procuraram para psicoterapia em função das dificuldades da filha de sete anos. Ela se queixava com freqüência de dores e tonturas. Já haviam realizado todos os exames físicos e nada havia sido constatado. Maria fazia tratamento fisioterápico para a coluna, que era extremamente dolorida.

Outro sintoma importante, e que lhe causava grandes dificuldades no convívio social, referia-se à sua comunicação: Maria só falava com as pessoas de sua família, conhecidas, ou com as poucas amiguinhas que possuía. Dizia aos pais que tinha vergonha. Na escola, não falava com as professoras senão quando já estivesse bastante familiarizada com elas e respondia aos questionamentos com uma voz muito baixa. Estava matriculada num curso de esportes, mas não falava com a professora nem atendia às suas instruções, permanecendo imóvel, o que criava um impasse difícil de transpor. Em casa, segundo os pais, o que aparecia era o contrário: ela se mostrava com temperamento forte, bastante teimosa, procurando controlar a mãe para que esta se ocupasse mais dela.

Mãe e filha brigavam todos os dias. A mãe se impacientava com Maria e lhe dizia que ela era muito chata. Maria vivia pedindo desculpas. Certa vez, quando a mãe lhe disse que não a desculparia, ficou desesperada, a ponto de deixar a mãe assustada com sua reação. Maria vinha dormir com ela todas as noites. Dizia sentir medo, não sabia especificar do quê. A relação com o pai era mais tranqüila. Talvez ele fosse mais compreensivo e tolerante com a filha, ou então ela nutria menos expectativas quanto à atenção que esperava dele. A mãe sempre foi uma executiva muito ocupada, com pouco tempo para os filhos. Ela dizia que não sabia brincar. Sentia-se muito cansada em função de todas as solicitações do trabalho e da família, e o comportamento de Maria, que sempre a requisitava, deixava-a exaurida.

Os pais não entendiam por que Maria não falava, se em casa era tão expansiva. Acreditavam que era uma forma de chamar a atenção e brigavam com ela. Às vezes a família fazia brincadeiras quanto a seu mutismo, o que me parecia agravar ainda mais a situação. Na verdade, não tinham a mínima idéia de como agir com ela a esse respeito, pois não compreendiam o sentido desse comportamento, que observavam na filha desde pequena. Chamou-me a atenção, já nas nossas primeiras entrevistas, o completo desconhecimento por parte dos pais do que Maria podia estar sentindo ou pensando. Como ela não se encaixava num “modelo padrão”, ficavam perdidos quanto ao que se passava com ela, embora a amassem muito. Essa falta de compreensão em relação a ela também caracterizava o mundo em que a paciente vivia. Ninguém entendia por que aquela menina não falava e ficava tão retraída!

Maria se queixava ainda de um barulho que ficava na sua cabeça, que ela não sabia explicar melhor. Novamente, os exames físicos não acusavam nada. Dizia à mãe que era feia, mesmo que esta lhe garantisse que era linda. Era extremamente rígida quanto às normas e deveres e sempre achava que não estava fazendo direito o que tinha que fazer. Queixava-se à mãe afirmando que as amigas não eram amigas, eram inimigas, embora não apresentasse nenhuma dificuldade de relacionamento explícita com elas.

Sua história de vida apresentava informações significativas que pareciam estar diretamente ligadas à gênese das dificuldades constatadas. Imaginando que seria o melhor para a filha, nos primeiros meses de vida a mãe contratou uma enfermeira para cuidar do bebê. Esta era extremamente eficiente, mas fria, distante afetivamente, rígida com normas e horários. Maria parecia bem cuidada, mas não se podia pegá-la no colo. A mãe, muito agitada, voltou a trabalhar logo em seguida ao parto, passando longos períodos durante o dia distante da filha, que não pôde ser amamentada por ela. Esse padrão desencontrado entre mãe e filha caracterizou por muito tempo a relação entre as duas.

Combinamos o início do trabalho psicoterápico com Maria e entrevistas de orientação para os pais.

No primeiro contato com Maria, deparei-me com uma menina assustada, quase apavorada, muda. Sua postura era de intenso retraimento, e logo compreendi por que apresentava tantas dores na coluna. Parecia querer “se esconder”, curvada em seu próprio corpo. Eu tinha a impressão de que ela estava se contendo para não chorar ou para não fugir correndo daquela sala. Ao invés disso, permaneceu calada e imóvel, sem me dirigir o olhar.

Tentei me aproximar dela, conversando, propondo-lhe que desenhasse. Seu primeiro desenho foi uma casa na chuva. A casa não tinha janelas, apenas uma porta bem pequena, e mais nada. Parecia um auto-retrato que expressava a menina deprimida, triste, que não encontrava uma forma tranqüila de se contatar com o outro, de se abrir para o mundo.

Pedi-lhe que contasse uma história, mas como Maria não falava comigo, consegui que escrevesse o título do desenho no papel: “A casa na chuva”. Seu segundo desenho, no entanto, mostrava um coração bem grande, sorrindo, com a língua de fora, e um sorvete colorido ao lado. O título do desenho era: “O coração que adorava sorvete”. A seguir, um novo desenho mostrava uma menina pequena e muitos balões coloridos em volta, no ar. O título desse desenho era: “A menina soltando balões”. Pude perceber que a paciente sinalizava um mundo vivo encapsulado por debaixo de uma carapaça cinzenta. Parecia-me que havia um pedido de ajuda contido no coração, no sorvete, nos balões no ar, que denotavam uma vivacidade que Maria ansiava poder libertar. Mas como fazê-lo, diante do seu intenso retraimento e desconfiança?

Os desenhos seguintes retratavam o desafio que tínhamos a enfrentar: uma menina muito pequena, de braços abertos, sorrindo, debaixo de nuvens com chuva intensa, e, no desenho a seguir, uma mesa com duas cadeiras que ocupavam quase que a totalidade da folha. Sentados nas cadeiras estavam dois minúsculos esboços de pessoas, mal delineados, sem rosto nem feições definidas. Maria nos retratava naquele momento: duas pessoas que precisariam encontrar uma forma de se delinear e de crescer afetivamente como dupla analítica, formando uma ligação significativa. Para isso, precisaríamos enfrentar o temporal de emoções represadas que estava contido naquela menina que gostaria de abrir os braços para mim, mas que no momento não podia fazê-lo.

Começamos o processo psicanalítico – talvez fosse mais apropriado chamá-lo de “desafio psicanalítico”. Maria comparecia às sessões com resistência, segundo a mãe. Subia as escadas até a minha sala curvada, e ao entrar permanecia imóvel, sem expressão. Poderíamos ficar assim por horas. Maria não esboçava nenhum movimento espontâneo. Ficava imóvel, e quando eu falava com ela, me olhava, sem responder ou demonstrar qualquer afeto. Sugeri-lhe algumas atividades, como desenhos, jogos. Ela fazia o que eu lhe dizia, silenciosamente, tomando muito cuidado para não revelar o que se passava no seu íntimo. Seus desenhos, por exemplo, eram muito pequenos, simples e não pareciam demonstrar nenhum simbolismo que eu pudesse compreender. Quando eu lhe pedia que escrevesse algo, já que não falava, passou a escrever com uma letra tão pequena que o resultado era ilegível. Às vezes eu lhe falava o que me parecia que estava ocorrendo, ou que ela estava sentindo. Não havia esboço de reação. Certa vez comentei o medo que tinha de se mostrar para mim e de que eu a achasse “feia” ou “chata”. Na sessão de orientação com a mãe, esta última relatou que Maria lhe dissera que eu tinha falado em “medo”, mas ressaltou que era vergonha o que sentia. Assim, começavam a chegar palavras de Maria, mas através da boca da mãe.

Essa situação de impasse se estendeu por muitos meses. Maria nunca esboçava nenhum comportamento espontâneo. Eu nunca tinha ouvido sua voz. Ela aparecia ali na sessão como “a menina que se escondia”, ou talvez como “a menina que não existia”. Minhas interpretações, comentários ou propostas de atividades não pareciam ter repercussão. Sustentar o contato silencioso – e aguardar por longos períodos os movimentos dela – parecia-me que agravaria o hiato em que vivíamos.

Parecia-me ainda que ela esperava que eu pudesse adivinhar o que se passava dentro de si, sem que precisasse me dizer. Eu pensava num bebê que espera ser percebido pela mãe nas suas necessidades mais básicas. Falar dessas imagens à paciente também não resultava em aproximação ou modificação do quadro estático que compartilhávamos.

Maria reclamava à mãe, dizendo que não queria mais vir. As sessões de orientação com os pais, no entanto, estavam se mostrando bastante produtivas. Eles começavam a compreender melhor a filha. A mãe, por exemplo, ficou surpresa quando eu lhe disse que talvez a filha mostrasse muita resistência em levantar da cama de manhã em função de intensos sentimentos de depressão. Esse era um dos motivos de intensas brigas entre mãe e filha. Houve também surpresa quando sugeri que talvez Maria fosse dormir todos os dias com ela para poder sentir a sua presença, pois sentia muito a sua falta. De fato, quando a mãe começou a se dedicar mais à filha, as visitas noturnas diminuíram.

No panorama analítico, apesar disso, o ambiente era de estagnação. Eu acompanhava seu ritmo, procurando ter paciência e me perguntando como transpor o muro que a paralisava e engessava a nossa relação, e que Maria identificou como vergonha.

 

A face narcísica da vergonha

O termo vergonha refere-se a uma gama extensa de afetos penosos como o embaraço, o sentimento de ser rejeitado, ridicularizado, exposto e de perder o respeito dos outros. Freud não se ateve ao estudo da vergonha, associando-a a conflitos de ordem instintual e da área da sexualidade. Suas descobertas sobre a evolução do superego e do ego ideal (Freud, 1914/1980, 1923/1980), no entanto, forneceram subsídios para a compreensão desse afeto, aproximando-o do conceito de narcisismo.

Podemos considerar que o sentimento de vergonha está associado a diferentes dinâmicas psíquicas, segundo o nível de comprometimento afetivo do sujeito, como nos mostra Morrisson (1989). Na neurose, a vergonha parece estar associada mais especificamente a certos tipos de conflito, representando freqüentemente uma reação defensiva contra conflitos edípicos e impulsos agressivos. Nas desordens narcísicas, por outro lado, a vergonha parece ter um caráter mais central e está relacionada a experiências subjetivas relativas ao self como um todo. Nesses casos, a relação dual com o objeto parece estar em primeiro plano, em especial no que se refere às necessidades do sujeito.

Alguns autores analisam o caráter narcísico da vergonha, como Piers e Singer (1953), e afirmam que a vergonha resulta de uma tensão entre o ego e o ego ideal. Quando um objetivo do ego ideal não é alcançado, o sentimento de falha decorrente disso é acompanhado da idéia de abandono e rejeição. O ego ideal é compreendido como o reduto no superego da onipotência narcísica, das identificações positivas e das funções sociais. Lewis (1971) relaciona o sentimento de vergonha a todo o self, ressaltando seu caráter narcísico: a pessoa sente as suas falhas como uma deficiência de si mesma, resultado de sua incapacidade. A defesa típica contra a vergonha é o esconder-se, ou a fuga. A hostilidade contra o self é experimentada de modo passivo e deixa a pessoa sujeita a sentimentos de depressão. Como proteção contra o sentimento de parecer inferior ou defeituoso ao outro e a si mesmo, a pessoa pode recorrer a um isolamento que aparece como impersonalização ou desumanização. Predominam sentimentos de falhas do self, baixa auto-estima e danos na representação da identidade (Lynd, 1958/1961).

Morrisson (1986) sugere que se utilize o conceito de self ideal quando procuramos compreender a vergonha, pois ele se refere a um sentido de self mais subjetivo, menos específico e cognitivo do que o ego ideal. Poderia ser descrito com estas palavras: “o self que eu quero ser”. O autor ressalta que a vergonha decorre não apenas da falha em atingir as metas do self ideal, mas também de falha do objeto em prover à criança um espelhamento adequado de seu self em etapas primitivas de seu desenvolvimento. Assim, quando encontramos sentimentos intensos de vergonha na situação clínica, podemos perguntar: o paciente está respondendo com vergonha à falha de quem? Será a sua falha ou a do objeto, de quem depende, que está estampada na sua forma de sentir?

Ao refletir sobre minha experiência clínica com Maria, por várias vezes indaguei o que significava sua postura geral de isolamento. Parecia-me alguém escondido dentro de uma caverna, ou ainda dentro de uma pequena casa fechada no meio de muita chuva, como aparecia em seus desenhos. Penso que esse quadro mostrava uma problemática dramática, que atingia todo o seu ser. Talvez houvesse conflitos na área da sexualidade, fantasias edípicas irreveladas, carregadas de culpa. Maria costumava pedir à mãe que tivesse mais um filho. Um novo bebê poderia tranqüilizá-la quanto a fantasias de ataque ao corpo da mãe ou à relação íntima dos pais. No entanto, nada disso aparecia na minha experiência com ela. O que ficava estampado no nosso contato era o que eu poderia chamar “um self doente”, alguém que não encontrava meio de se sentir existindo, uma pessoa que não podia usufruir de suas potencialidades e mostrar-se a si mesma e ao mundo.

O caráter narcísico do retraimento de Maria me parecia inquestionável, e sua ênfase de que o que sentia era vergonha e não exatamente medo parecia mostrar que ela intuía esse estado de alguma maneira.

A pergunta que vinha a seguir, se é que podia ser respondida com precisão, era a origem dessa configuração afetiva. Penso que ela representava o melhor equilíbrio que Maria conseguia ter diante de uma situação de extrema fragilidade do ego, em função de condições ambientais iniciais de vida inadequadas do ponto de vista de um bom desenvolvimento afetivo.

A importância do contato do bebê com uma mãe suficientemente boa, que se adapta inicialmente ao bebê e é capaz de lhe proporcionar um setting no qual a sua constituição e tendência para o desenvolvimento podem se mostrar, foi ressaltada por Winnicott (1956/1988). Nessas condições, ele pode experimentar um movimento espontâneo e dominar as sensações apropriadas a essa fase inicial da vida. Fracassos maternos produzem fases de reação à invasão que interrompem o processo de “continuar a ser” do bebê. Para Winnicott, um reagir excessivo não produz frustração, mas sim ameaça de aniquilação, que é uma das ansiedades mais primitivas. Para que o “continuar a ser” do bebê possa ocorrer de forma adequada, é necessário que a mãe tenha uma sensibilidade especial que lhe permita colocar-se no lugar do filho, de modo a responder às suas necessidades. Os fracassos da mãe não são sentidos pelo bebê como fracassos maternos, mas como ameaças à existência pessoal do seu self.

Encontramos na história de Maria e nas características de seu ambiente sérias falhas ambientais, em relação às quais Maria não tinha nenhum conhecimento consciente. Embora amasse a filha, a mãe de Maria não encontrava dentro de si condições para estar com a filha da forma como esta necessitava. Logo em seguida ao parto, voltou a trabalhar exaustivamente, deixando Maria com a babá “muito eficiente”, mas “rígida e fria”. Não se podia pegar a menina no colo, e Maria, quando a conheci, era a representação viva de alguém que tinha de encontrar acolhimento apenas em si mesma. Não podia confiar na possibilidade de encontrar colo em outra pessoa, embora me parecesse que intimamente ansiava por isso. Na verdade, quando ia dividir a cama da mãe todas as noites, penso que ainda clamava por colo.

Havia outro ponto importante nos efeitos patogênicos de seu ambiente. Os pais de Maria não conseguiam compreender o que se passava com ela. Embora procurassem fazer o melhor dentro de suas possibilidades, infelizmente não dispunham da sensibilidade necessária para isso. O estado de rêverie, descrito por Bion (1963/1966), no qual a mãe, por meio de sua função alfa, ou aparelho para pensar, filtra os elementos beta projetados pelo bebê e os transforma em elementos alfa ou pensamentos, não pôde ocorrer de forma adequada. Maria se via só com suas angústias e terrores, sem poder contar com uma estrutura psíquica continente para seu sofrimento, que aparentemente não tinha expressão simbólica. Creio que por isso seus desenhos e produções de modo geral não evocavam significado simbólico, a não ser a casa com a chuva e a menina de braços abertos, feitos nos seus desenhos iniciais. Maria não sabia o que dizer. Só podia expressar o seu sentimento de vazio e o temor em se aproximar. Creio que o barulho que ouvia na sua cabeça era a expressão desse mundo de sensações sem nome, que enchiam a sua mente de angústia e dor.

As queixas psicossomáticas de Maria, suas tonturas e dores, expressavam os efeitos desse panorama psíquico desalentador. Com suas dores, Maria encontrava uma forma de falar algo que se passava dentro de si, já que não podia fazê-lo por sua própria boca. Era interessante observar, no nosso processo analítico, como muitas vezes me chegavam comunicações da paciente pela boca de sua mãe, como se houvesse uma indicação clara de que Maria não se sentia existir como ser autônomo. Precisava ainda da boca e da mente da mãe para tentar dar forma ao seu interior. Para McDougall (1978/1983), há pessoas que buscam salvaguardar o equilíbrio narcísico por meio de um arranjo particular em sua relação com o outro, afastando-se das outras pessoas, sentidas como ameaça ao seu equilíbrio frágil, ou apegando-se aos outros e demonstrando uma sede de objeto que só é saciada na presença daquele a quem incumbe a função de refletir a auto-imagem fugaz. Era assim que Maria se isolava do mundo, vivido como ameaçador, e “exauria” a mãe, exigindo dela uma confirmação constante de uma delimitação psíquica que encobrisse o vazio que sentia dentro de si.

Mas e a vergonha? Como entender as auto-recriminações que Maria fazia e seu sentimento de que era muito feia?

Entre as inúmeras formulações que poderiam ser feitas a esse respeito, fizeram sentido as idéias de Fairbairn (1943/2000), como um modelo enriquecedor para levantar hipóteses sobre o tema. Ele relata ter ficado particularmente impressionado pela relutância de crianças que tinham sido vítimas de ataques sexuais em contarem as experiências traumáticas a que tinham sido sujeitas. Quanto mais inocente era a vítima, maior era a resistência à anamnese, e nos indivíduos que realmente tinham cometido ofensas sexuais, essa reação não era observada. O autor concluiu que as vítimas de ataques resistiam à reposição da memória traumática principalmente porque essa memória representava um registro de uma relação com um mau objeto. Era interessante observar também que a relação com esse objeto era sentida pela criança não apenas como intolerável, mas também como vergonhosa.

A partir de sua observação clínica, e de crianças criadas em lares insatisfatórios, Fairbairn observou que muitas crianças, diante de um ambiente insatisfatório, reagem tornando-se “más”. A interiorização de objetos maus representa uma tentativa por parte da criança de tornar “bons” os objetos de seu ambiente, tomando para si o peso de sua “maldade” e tornando assim o seu ambiente mais tolerável. A criança procura “purificar” os objetos de sua maldade e, ao fazê-lo, é recompensada pelo sentimento de segurança que um ambiente de objetos bons caracteristicamente confere. No entanto, o sentimento de segurança interior obtido dessa forma pode ser seriamente comprometido pela presença resultante dentro dela dos maus objetos interiorizados. A segurança exterior é assim conseguida ao preço da segurança interior, e o seu Eu é deixado à mercê de perseguidores internos contra os quais as defesas têm de ser primeiramente erguidas firmemente e, mais tarde, laboriosamente consolidadas. Para corrigir esse estado de “maldade interna”, a criança interioriza os seus bons objetos, que assumem o papel de um superego implacável.

Podemos conjeturar que Maria preferia se basear no pressuposto de que “ela era feia, malvada ou chata” do que considerar que o seu ambiente familiar havia “falhado” em relação às suas necessidades básicas. Tomando para si o peso daquilo que era “defeituoso”, identificando-se com uma imagem distorcida de pessoa, preservava aqueles que a rodeavam de possíveis críticas ou insatisfações. Se ela fosse a pessoa errada, o que teria a fazer seria corrigir-se, recorrendo para isso a intensas exigências superegóicas que nunca se cansavam de acusá-la de incompetência. Maria se recriminava com muita freqüência por “não fazer nada direito” e era extremamente exigente consigo mesma. A vergonha avassaladora, que a paralisava nas suas relações sociais, parecia ser o retrato desse equilíbrio instável. Maria se sentia , estava sempre “pedindo desculpas”, segundo o relato dos pais. Os objetos externos estavam “purificados”, o que lhe dava um certo sentimento de segurança, mas as perseguições que dirigia a si tornavam-se intoleráveis, aumentando o nível de sofrimento suportável.

 

Encontrando um espelho

As sessões com Maria se passavam sempre da mesma maneira. Na maioria das vezes ela ficava aguardando imóvel que eu lhe propusesse alguma atividade, como desenho, e então fazia algo bem pequeno e sem expressão. Eu procurava fazer algo também, algum desenho, uma história em quadrinhos ou qualquer coisa por meio da qual eu procurava representar o clima afetivo predominante e as imagens que vinham à minha mente. Certa vez inventei uma história na qual havia dois bichos imaginando como poderiam fazer para se aproximar, e um deles pensava: “Tenho medo! E se ela me achar feia!” O outro dizia: “Quero te conhecer do jeito que você é, não se preocupe!”. Maria olhava para minhas histórias, acho até que disfarçava o seu interesse, mas não havia mudanças aparentes no clima que vivíamos. Eu desenhava então o primeiro bicho pensando: “Acho que ainda prefiro ficar escondida. Não me sinto segura, não sei se posso confiar...”. Buscando um canal de comunicação, tentei outros recursos como, por exemplo, um jogo onde poderíamos fazer perguntas por escrito uma para a outra. No início parecia que ela iria se arriscar um pouco a se expor, mas logo passou a escrever com uma letra tão diminuta que era impossível ler o que estava escrito!

Certa vez Maria esboçou um ímpeto de vitalidade ao utilizar palitos de madeira para construir o que parecia ser uma caixa. Perguntei-me se aquela caixa podia ser compreendida como o início da construção de uma estrutura interna mais continente. Havia um movimento mais vivo e espontâneo, mas que não tornou a se repetir nas sessões posteriores. Resolvi então trazer-lhe mais palitos, por minha conta, e lhe disse, sem saber bem por que eu o estava fazendo: “Maria, outro dia você fez uma caixa com os palitos. Vi que você sabe fazer coisas. Quero aprender com você. Você vai me ensinar. Vou fazer aquilo que você fizer, para aprender”. Mantive-me imóvel, esperando-a. Maria permaneceu impassível, mas para a minha surpresa, após algum tempo começou a montar uma caixa com os palitos. Passei a copiar minuciosamente seus movimentos, ao mesmo tempo em que ia comentando o processo de montagem. Percebi que algo importante havia ocorrido entre nós. Uma porta tinha sido aberta, pois agora Maria parecia mais viva e era quem nos dirigia. Na sessão seguinte, novamente eu lhe disse que faria o que ela fizesse e que queria aprender com ela. Nesse dia, Maria montou uma forma diferente com os palitos, que foi cuidadosamente reproduzida por mim.

A partir daí, esse processo passou a ocorrer em todas as sessões. Aos poucos, Maria parecia que ia “encorpando”. Fazia movimentos rápidos, criava novas formas ou desenhos, que ainda assim não evocavam nenhum simbolismo compreensível. Pareciam ter importância por serem fruto de sua presença viva. Percebi que pouco a pouco sua postura ia se endireitando e que se preocupava com o final da sessão, pois ia acelerando o ritmo do que fazia, parecendo querer aproveitar ao máximo o tempo. Eu me preocupava em fornecer-lhe material suficiente para nossas produções, pois sentia que era importante que “houvesse abundância”. Talvez o material representasse a quantidade de “leite” que eu sentia que não podia faltar e estivesse me identificando com uma mãe que precisa oferecer ao seu bebê um seio cheio.

Guardávamos nossas produções, a dela e a cópia que eu fazia, na sua caixa lúdica. Certa vez tive a forte impressão de que gostaria de levar algo que tinha construído para casa e lhe disse que se quisesse poderia levar suas produções. Ela não esboçou nenhuma reação, mas na sessão seguinte, ao chegar, Maria me entregou um bilhete assinado pela mãe onde estava escrito: “Favor entregar o trabalho da Maria”. A voz de Maria começava a aparecer, assim como seus desejos, embora ainda através da boca da mãe. Desta vez, no entanto, ela havia me entregado o bilhete, e se expunha ao expressar o desejo de ter consigo aquilo que representava a nossa união construtiva.

Dei-me conta de que eu havia passado a representar uma espécie de espelho, por sessões e sessões a fio. Para isso, tinha que voltar toda a minha atenção para ela e para o que ela me ensinava. Não era um espelho qualquer, mas um espelho “falante”, pois eu comentava em alguns momentos os movimentos ou formas que fazíamos. Nas comunicações que dirigia a ela, eu procurava me ater às nossas produções ou ao que elas despertavam em mim, sem recorrer a interpretações verbais propriamente ditas. Parecia-me que elas não eram apropriadas naquele momento, pois quebrariam uma espécie de “clima mágico” que havia se instalado entre nós. Como um cego que vai tateando a procura do caminho, eu não sabia exatamente onde iríamos desembocar dessa forma, e se o caminho tomado seria proveitoso. Dispus-me a ir seguindo seus movimentos e aguardar.

Após alguns meses, Maria pela primeira vez explicitou afeto naquilo que fazia: desenhou um coração, e dentro escreveu o nome da mãe. Na minha cópia, também desenhei um coração, mas resolvi escrever dentro o seu nome, Maria. A partir de então, a paciente passou a escrever cartões com desenhos que endereçava às pessoas da família, e que tinham um caráter bastante afetivo. Eu os copiava e os endereçava sempre a Maria. Afinal, de fato era ela que estava no centro de minhas atenções naquele momento, e o que eu estava fazendo era para ela! Da mesma forma, sempre que ela chegava, eu comentava alguma coisa de sua aparência física que me chamava a atenção: um sapato diferente do usual, uma blusa colorida... Foi interessante observar que Maria passou a se arrumar para vir às sessões, chegando a se atrasar certo dia (segundo o relato da mãe) porque fazia questão de trocar de roupa antes de vir para a terapia! Pude perceber que Maria buscava nos meus olhos uma menina “bonita”, para contrastar com a “feia” que até então predominara em seu interior.

Cerca de um ano após o início do processo de análise, numa sessão em que estávamos fazendo uma atividade (que depois percebi que era uma espécie de caderno), ouvi saindo de sua boca uma voz gutural, que parecia vinda do fundo de uma caverna. Era Maria, bem baixinho, pedindo: “grampeador”! Impactada pela surpresa, apressei-me em lhe dar o meu grampeador que ela sabia que estava em minha gaveta. Tínhamos atravessado mais uma fronteira. A voz de Maria começava a entrar por nosso espaço analítico e talvez estivesse mostrando que a paciente começava a ter contornos psíquicos mais definidos, assim como o vínculo que nos unia.

A partir daí, Maria emitia esses sons que me evocavam “o início dos tempos”, para pedir o grampeador, a régua, ou algo mais. Percebi que tinha que me conter para não lhe oferecer trazer esses objetos para a sua caixa. Era importante naquele momento que eu não encarnasse a mãe que tem um leite ilimitado a ponto de o bebê nem perceber que não é dele. Já podia haver a percepção de alguma separação entre nós duas. O bebê já podia chorar e pedir! Sua voz era ainda tão baixa que muitas vezes eu precisava colocar o ouvido ao lado de sua boca para entender seu pedido. O mais importante, no entanto, era que estava se abrindo um espaço no qual ela já estava sendo capaz de sentir e demonstrar que precisava de mim.

Daí por diante, a nossa comunicação foi aumentando. A voz de Maria, ainda baixa e contida, foi aos poucos se avolumando. Nas sessões às vezes havia surpresas, como quando trouxe uma corda para que nós pulássemos! Ou ainda, quando endereçou um de seus cartões a mim! Parecia que ela já podia contar com um objeto bom mais firmemente estabelecido. Os pais de Maria estavam extremamente satisfeitos com o trabalho analítico, pois a filha melhorava a olhos vistos. Já não se mostrava tão retraída com as pessoas à sua volta e vinha sendo elogiada, até “descoberta”. A escola, que até então não me chamara, solicitou uma entrevista. Maria começava a se fazer perceber!

Minhas atitudes e comentários durante nossos encontros estavam funcionando como “brincadeiras interpretativas” (Levinzon, 2001), nas quais o brincar do analista é o canal que proporciona melhores condições de comunicação à dupla. O analista, através das ações lúdicas ou da voz de personagens escolhidos a partir do brincar do paciente, utiliza a própria linguagem da criança para expressar suas interpretações. Dessa forma, aquilo que é acrescentado pelo analista não chega ao paciente como um corpo estranho, mas como um elemento novo dentro de um mundo familiar, e pode ser absorvido com maior facilidade pela criança.

Apesar dos bons resultados, eu me perguntava sobre como iria caminhar o nosso trabalho. Até quando eu deveria continuar com as “cópias”? Maria já mostrava vida no nosso contato, mas o que ela se permitia expor ainda era extremamente limitado. Eu não sabia como evoluiria o padrão que havia sido instalado nas sessões e aguardava algum sinal que nos permitiria seguir mais adiante.

Novamente a resposta veio de Maria, mas ainda utilizando a voz de sua mãe: numa entrevista de orientação, a mãe comentou que a filha se queixara, dizendo que “era chato porque eu só fazia a mesma coisa que ela”. Embora nas nossas sessões ela passasse a maior parte do tempo em silêncio, Maria sinalizava que não precisava mais de espelho. Podíamos passar para uma nova fase, na qual as diferenças entre nós duas já eram bem-vindas. Era Maria quem me ensinava o ritmo a ser seguido.

 

A função constitutiva do espelho

“Espelho, espelho meu, existe no mundo alguma mulher mais bela do que eu?” Essa é a famosa pergunta que a madrasta da história da Branca de Neve dirige ao espelho e que retrata suas angústias de rivalidade e suas incertezas sobre si mesma.

O espelho tem sido compreendido segundo diversos pontos de vista e usado como metáfora para designar estados mentais. Como mostra Doin (1985), a ele se dirigem perguntas superficiais: “Como estou?”, mas também questionamentos profundos e basais: “Quem sou?”, “Como sou?”. Esse autor sublinha que “o espelho é a metáfora da mente e, por isso, de suas estruturas e funções”. A magia do espelho está relacionada com o período narcísico, quando a mente e a identidade se formam através do contato com a mãe. A função especular humana baseia-se essencialmente numa relação entre duas ou mais pessoas, na qual há um espelhamento da imagem do outro. Ela está diretamente ligada ao narcisismo normal. Destina-se ao conhecimento de si mesmo, à aquisição e consolidação da identidade e à integração mental por intermédio de outra pessoa. Em contraste ao espelho físico, o espelho humano é sempre subjetivo, sujeito às transformações que são feitas no contato com o outro.

O caráter integrador da função especular humana fica explicitado nas contribuições de Bion (1962/1991), que ressalta a importância da capacidade da mãe de ser continente para as identificações projetivas do bebê, utilizando para isso a sua capacidade de rêverie, e auxiliando-o na representação mental do seu self. A mãe, assim como o analista, exerce o papel de um espelho diferenciado que filtra aquilo que recebe e reflete uma imagem que permite o nascimento de pensamentos.

Em seu primoroso trabalho “O papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil”, Winnicott (1971/1975) pergunta:

O que vê o bebê quando olha para o rosto da mãe? Sugiro que, normalmente, o que o bebê vê é ele mesmo. Em outros termos, a mãe está olhando para o bebê e aquilo com que ele se parece se acha relacionado com o que ela vê ali (p. 154).

Essas são condições adequadas para a integração do bebê e sua maturação, e quando não são encontradas repercutem em distúrbios no desenvolvimento. Estes últimos ocorrem quando, por algum motivo, a mãe não tem a possibilidade de funcionar como esse espelho especial, e o bebê não vê a si mesmo no rosto da mãe, mas um olhar fixo, distante, ou uma preocupação desta consigo mesma. A capacidade criativa do bebê começa então a atrofiar-se, e ele recorre a defesas que lhe permitam sobreviver e escapar ao sentimento de caos psíquico, ou procura outros meios de obter algo de si mesmo a partir do ambiente.

Penso que essas formulações sobre o papel integrador do espelho explicam de maneira magistral o que pude observar no trabalho clínico com Maria. Quando iniciei uma nova forma de estar com ela (“vou fazer o que você fizer; você vai me ensinar; faço igual a você”), não o fiz por uma deliberação consciente. Só depois me dei conta que havíamos criado um espelho. Estávamos procurando um caminho que possibilitasse nosso contato mais vivo e próximo. O copiar tudo aquilo que Maria fazia mostrou ter uma importância grande como veículo de reconstituição ou construção de um espaço potencial, no qual ela podia sentir que me criava como objeto subjetivo. Seus traços criavam os meus. Eu existia naqueles momentos como um espelho que refletia a sua existência.

Minha atenção completamente voltada para ela, a ponto de reproduzir atentamente suas produções, funcionava como uma espécie de “celebração de sua existência”, da forma como descreveu Bollas (1992), como um registro afetivo por parte do analista da presença de um fator do instinto vital do paciente.

O espelho que foi instituído pela dupla que formávamos era um “espelho vivo”: Eu ia comentando o que fazíamos, e dessa forma eram introduzidas as palavras, que nos permitiam o acesso a um tipo de comunicação menos subjetiva e mais simbólica. Além disso, nas minhas reproduções, inevitavelmente havia diferenças em relação ao que ela fazia, e às vezes isso ocorria por uma escolha consciente da minha parte. Em alguns momentos, eu buscava deixar algum pequeno detalhe nas minhas cópias com uma marca mais especificamente minha, como uma cor diferente, ou um pequeno traçado que se diferenciava do dela. De alguma forma eu considerava que era importante também que houvesse uma pequena abertura de portas para nossas diferenças. Foi interessante observar que ela passou a aproveitar o que eu fazia, copiando algum detalhe que lhe agradava, como se quisesse me dizer que também poderia aprender comigo.

O trabalho realizado com Maria parecia estar às voltas com a esfera de uma estruturação narcísica mais consistente, dando-lhe condições para um sentimento de self mais integrado. Era interessante perceber que isso não se dava exatamente por uma valorização deliberada e verbal por parte da analista em relação à paciente. O que ajudava não era lhe dizer “não se preocupe, você é bonita”. Havia a necessidade de um espelho diferenciado, de muita atenção aos seus gestos, de compreensão e transformação das comunicações não verbais que predominavam nos nossos encontros até então.

O trabalho analítico com Maria havia evoluído muito em relação ao início de nossos encontros. Estava, no entanto, sujeito a variações. Havia momentos em que parecíamos voltar à dupla silenciosa e ao “esconderijo dentro de uma caverna inacessível”. Certo dia, Maria chegou à sessão com um papel em que havia escrito um texto:

“Era uma vez um dia muito chuvoso.
“Ninguém
conseguia sair da casa (porque começou desde o começo do dia), até que uma família
falou:

“Nós vamos sair de carro, e outra falou de capa de chuva e outra de guarda-chuva e outra falou que vai sair sem nada só com roupa (é claro).
“E desde lá todo mundo perdeu o medo de sair só de roupa porque já tinha acabado a chuva.”

Maria fez então três desenhos. No primeiro, que intitulou “Um dia chuvoso”, havia uma casa debaixo de intensa chuva e trovões, representados por uma palavra escrita em grandes dimensões: “cabrruuum”. Na porta da casa estava escrito: “Bata na porta”, e havia um balão representando algo que alguém de dentro da casa estava pensando, onde estava escrito: “Ai que medo, acabou de fazer um trovv... ão...”. No segundo desenho, denominado “Um dia nublado”, Maria retratou uma casa com árvores frutíferas e nuvens no céu, que deixavam transparecer um pedaço de sol. O terceiro desenho apresentava o título “Um dia ensolarado”. Havia uma casa, um céu repleto de pássaros e um sol brilhando. Da casa saíam vozes que diziam: “Que sol bonito! Vamos sair?”; “Vamos, vamos!”; “Não! Não!”.

Os desenhos de Maria expressavam de forma magnífica o que caracterizava a evolução de seu contato consigo mesma, comigo e com o mundo que a cercava.

A casa, seu auto-retrato, passara por transformações. De início, aparecia debaixo de intensa chuva, num clima de profunda depressão e tristeza. Os trovões e os temores predominavam no seu mundo mental. Seu recurso defensivo era se refugiar num lugar inacessível, impedindo a entrada de qualquer pessoa que ela sentia como um perigo em potencial. Era preciso “bater na porta”, e mesmo assim ela resistia em abri-la. Maria já podia falar em “medo de trovão” e mostrar o seu pavor. O que sentia não era mais entendido como “vergonha”, tomado para si como uma deficiência de seu self. Havia a identificação de um sentimento de que o mundo externo poderia ser perigoso.

Maria deixou claro no seu texto que “ninguém conseguia sair de casa porque a chuva começara desde o começo do dia”. De fato, podemos pensar que esse estado afetivo cinzento que predominava dentro de si datava do início de sua vida. Aos poucos, como as pessoas da família de sua história, ela estava conseguindo se expor mais ao mundo, sem tantas defesas, como as “capas de chuva e guarda-chuvas simbólicos” que funcionavam como escudos na sua relação com o outro. Havia no seu texto agora até um pouco de humor (“a família ia sair sem nada, só com roupa – é claro”), o que representava uma conquista importante.

A seqüência de desenhos delineou o desenvolvimento pelo qual passava. A casa-self de Maria aos poucos foi sendo localizada dentro de um cenário mais tranqüilo, como “um dia nublado”, no qual já se podiam encontrar frutos e um pouco de calor, representado pela porção de sol que agora podia aparecia. Por fim, “um dia ensolarado” representava a conquista de uma condição psíquica com maior equilíbrio e integração, que convidavam a um maior contato com o mundo externo (“Que sol bonito, vamos sair?”, “Vamos, vamos!”). No entanto, havia vozes internas que a seguravam (“Não! Não!”), ainda temerosas de que o contato com o outro e comigo, nas sessões, resultasse em um desastre de proporções incontroláveis. Eu podia observar isso nos seus estados ocasionais de retraimento, ou quando a mãe me relatava que às vezes ela reclamava em vir às sessões. Abrir-se para o outro ainda era para Maria algo que precisava ser feito com muita cautela.

Observava-se claramente um grande progresso, que podia ser identificado no nosso contato e nos desenhos e histórias relatados. Maria havia adquirido uma capacidade de expressão simbólica de seus sentimentos. Sua presença nos nossos encontros e na sua vida fora do espaço analítico vinha ganhando vigor e espontaneidade. Havia ainda muito a conhecer. Ela ainda não se aventurava a incluir nas nossas sessões seus aspectos mais agressivos. Isso dependia da conquista de um ambiente que lhe permitisse existir de forma consistente e se sentir segura, para então poder experimentar aspectos relacionados à oposição ou agressão.

O processo de análise já durava cerca de dois anos quando Maria, em franco desenvolvimento, propôs que jogássemos bola. Deparei-me, no nosso jogo de futebol, com uma menina combativa, incansável e viva. Ela lutava pela posse da bola e pelos gols como se estivesse travando uma batalha primordial. A agressividade embutida em seus movimentos e sua persistência tornavam-na uma jogadora desafiadora. Ao mesmo tempo, o clima que predominava entre nós era de alegria e divertimento.

Maria parecia extremamente feliz em perceber que uma parte de si mesma, vital, finalmente encontrava espaço para aparecer e se desenvolver. Sua voz, ainda baixa, ia encorpando, e agora havia, com maior freqüência, momentos nos quais me dizia coisas espontaneamente. Numa das sessões, desenhou um cartão e dedicou-o a mim.

A cada encontro, eu me surpreendia com a menina que ia se delineando e me sentia tocada com a satisfação de acompanhar o nascimento de uma pessoa. Havia ainda muito trabalho pela frente, mas agora eu tinha a convicção de que o caminho que estávamos trilhando era rico e promissor.

Três anos após o início de sua análise, Maria se destacava enormemente do quadro inicial de retraimento e desvitalização. Conversava comigo durante toda a sessão, contando-me coisas do seu dia a dia. Passou a brincar comigo de “professora e aluna”, demonstrando seus sentimentos de rivalidade em relação a mim, pois como “aluna” eu sempre “deixava a desejar”, enquanto que “a professora”, que ela representava, “sabia de tudo”.

Sua agressividade foi encontrando cada vez mais espaço, de maneira saudável, e suas solicitações em relação ao material que me pedia para lhe trazer ou à atenção que demandava de mim nas sessões eram bastante intensas. Às vezes eu me lembrava da mãe que dizia sentir-se “exaurida” pela filha, mas percebia que essas demandas eram um veículo de saúde e de busca de satisfação de necessidades básicas. Ao mesmo tempo, fui aprendendo com Maria a fronteira cuidadosa entre atender a seus pedidos e estabelecer limites protetores e constitutivos.

Desde o início, o processo analítico com Maria se caracterizou pela aprendizagem mútua que pudemos adquirir.

 

A liberdade de experimentar

A experiência clínica com Maria mostrou que diante de um estado cronicamente estabelecido de retraimento e vergonha, com toda a sua significação de distúrbio na esfera narcísica, o encontro de um espelho vivo e diferenciado proporcionou condições para desenvolvimento psíquico.

O trabalho conjunto da dupla analítica é essencial para que se encontrem caminhos para superar as resistências e as dificuldades. O analista proporciona condições para que o paciente possa usar o espaço analítico como um tubo de ensaio onde ocorrem explorações e transformações. Para isso, é importante, a meu ver, que haja liberdade de experimentar, dentro de certos limites, formas de aproximação da dupla e canais de comunicação que estejam adequados à condição psíquica do paciente. Cabe ao analista procurar uma linguagem comum para que o trabalho possa ocorrer.

Quando criamos uma espécie de espelho vivo, Maria e eu, cada uma com a sua participação diferenciada, encontramos uma porta que nos abriu espaço para aproximação, reconstrução de seu self e desenvolvimento. A imensa gama de possibilidades de aproximação, contato e crescimento que pode ser criada a dois retrata a beleza do trabalho analítico.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Gina Khafif Levinzon
Rua Artur de Azevedo, 243 – Cerqueira César
05404-010 – São Paulo – SP
E-mail: ginalevinzon@sbpsp.org.br

Recebido em 14.5.2006
Aceito em 16.8.2006

 

 

* Membro associado da SBPSP.

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