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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.41 n.2 São Paulo jun. 2007

 

ARTIGOS

 

Pesquisando conceitos e tendências em psicoterapia e psicanálise

 

Researching concepts and tendencies in psychotherapy and psychoanalysis

 

Investigando conceptos y tendencias en psicoterapia y psicoanalisis

 

 

Manuel J. Pires dos Santos1; Jacó Zaslavsky2

Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Centro de Estudos Luís Guedes

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho discute sobre as dificuldades e possibilidades de se desenvolver pesquisa em psicoterapia e psicanálise, demonstrando como a aplicação prática da metodologia qualitativa, através da análise de conteúdo, pode ser de grande utilidade científica na pesquisa conceitual, empírica e clínica, e, conseqüentemente, observa tendências, servindo de base para investigações futuras. Mencionam-se algumas tendências atuais de investigação qualitativa conceitual em psicanálise e comentam-se os trabalhos desenvolvidos na pós-graduação em psiquiatria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul sobre contratransferência e processo analítico, recentemente publicados no International Journal of Psychoanalysis, como exemplos dessas possibilidades.

Palavras-chave: Investigação em psicoterapia e psicanálise; Pesquisa conceitual; Pesquisa empírica; Contratransferência; Processo psicanalítico.


ABSTRACT

This work discusses the difficulties and possibilities of developing research in psychotherapy and psychoanalysis, showing how the practical application of the qualitative methodology by analyzing the content may be very useful from the scientific perspective, in conceptual, empirical and clinical research, and, consequently, observes tendencies and provides a base for further investigation. A few current trends of conceptual qualitative investigation in psychoanalysis are mentioned, and the studies developed in the graduate program of Psychiatry at the Federal University of Rio Grande do Sul on countertransference and the analytic process, recently published in the International Journal of Psychoanalysis are discussed as examples of these possibilities.

Keywords: Psychotherapy and psychoanalytic investigation; Conceptual research; Empirical research; Countertransference and psychoanalytic process.


RESUMEN

Los autores discuten sobre las dificultades y posibilidades de realizar una investigación en psicoterapia y psicoanálisis, demostrando como la aplicación práctica de la metodología cualitativa, a través del análisis del contenido puede ser de gran utilidad científica, en la investigación conceptual, empírica y clínica y, consecuentemente, observar tendencias, sirviendo de base para otras investigaciones futuras. Son mencionadas algunas tendencias actuales de investigación cualitativa conceptual en psicoanálisis y comentados los trabajos realizados en la pos-graduación en Psiquiatría de la Universidad Federal do Rio Grande do Sul sobre contra transferencia y proceso analítico, recientemente publicados en el Internacional Journal of Psychoanalysis, como ejemplos de esas posibilidades.

Palabras clave: Investigación en psicoterapia y psicoanálisis; Investigación conceptual; Investigación empírica; Contra transferencia y proceso psicoanalítico.


 

 

Introdução

O tema “pesquisa em psicoterapia” é amplo e pode ser abordado a partir de uma variedade imensa de ângulos ou perspectivas. Vamos então circunscrever o tema limitando-nos a falar sobre as dificuldades da pesquisa em psicoterapia. Como ainda fica muito aberto, vamos tratar apenas das psicoterapias de base analítica, que incluem a própria psicanálise como uma forma de psicoterapia.

A primeira dificuldade que surge no horizonte de quem pensa em pesquisa é justamente conseguir chegar a pensar em pesquisa. Isso porque a psicanálise encontrou já em seu próprio criador um sério crítico da pesquisa. Freud não acreditava na pesquisa em psicanálise, excetuando estudos de caso – e legou-nos vários e riquíssimos –, por isso nunca a estimulou. Ao contrário, parecia desestimulá-la. Um outro aspecto é que pesquisa envolve dedicação de tempo e alocação de recursos financeiros. Quando falamos de dinheiro em pesquisa isso pode significar deixar de ganhá-lo ou gastar mais.

Há ainda uma questão inicial, anterior mesmo à pesquisa, que é o status científico da psicanálise. Essa questão, bastante debatida até recentemente, perdeu a força na medida em que se abandonou a idéia de uma ciência una em sua metodologia científica. Dificilmente encontraremos hoje algum filósofo da ciência ou algum cientista que acredite no distanciamento absolutamente neutro entre pesquisador e seu objeto de pesquisa, e num método único para se adquirir conhecimento. A tendência é que cada disciplina busque seus próprios métodos de aquisição de dados e de verificação. Nesse sentido, a psicoterapia deve achar e/ou definir sua própria metodologia de pesquisa, e não procurar adaptar-se a métodos extraídos de outras ciências. Um exemplo freqüente dessa prática é a tentativa frustrada de aplicar instrumentos de pesquisa standard, de forma fria e concreta, para investigar, com metodologia quantitativa, temas que, por sua natureza subjetiva, talvez se ajustem melhor à metodologia qualitativa.

Portanto, o objetivo deste artigo é discutir sobre as dificuldades e possibilidades de se desenvolver pesquisa em psicoterapia e psicanálise, demonstrando como a aplicação prática da metodologia qualitativa, através da análise de conteúdo (Bardin, 1977; Castro, 1994; Moraes, 1999) pode ser de grande utilidade científica na pesquisa conceitual, empírica e clínica e, conseqüentemente, observar tendências e servir de base para investigações futuras. São mencionadas algumas tendências atuais de investigação qualitativa conceitual em psicanálise e comentados os trabalhos desenvolvidos na pós-graduação em psiquiatria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, recentemente publicados no The International Journal of Psychoanalysis, como exemplos dessas possibilidades (Santos, Nunes & Ceitlin, 2005; Zaslavsky, Nunes & Eizirik, 2005).

 

Pesquisando conceitos e tendências

Isto posto, o pesquisador em psicoterapia enfrenta, ainda no início, uma questão quase paralisante: até que ponto o rigorismo a ser seguido num trabalho científico não é um impedimento à pesquisa daquela realidade tão fugidia, tão subjetiva em relação àqueles fatos que são significativos no encontro terapêutico? É possível pesquisar objetivamente um inconsciente que só se dá a conhecer através da experiência subjetiva e ao mesmo tempo privada, como é a relação terapêutica? Além disso, o rigorismo científico pode ser muito limitante, na medida em que as conclusões de uma pesquisa tendem a ser modestas, em contraste com a riqueza descritiva, quase literária, dos relatos clínicos a que estamos acostumados. Nesse sentido, como diz Fonagy, psicanalista e pesquisador, o fato empírico soa enfadonho diante de nossas narrativas clínicas, tão evocativas (Fonagy, 2001/2003).

Uma outra questão, quase tão paralisante quanto a anterior, é o número de teorias psicanalíticas que se defrontam e discordam umas das outras, na tentativa de explicar o funcionamento interno e externo, normal e patológico do ser humano. Numa rápida olhada ao panorama atual da teoria psicanalítica, podemos distinguir várias escolas, como denominam alguns, ou modelos, como preferem outros, ou ainda paradigmas, enfim, há inúmeras diferenças teóricas e técnicas, e inclusive diferentes modos de entender (ou tentar entender) essas inúmeras diferenças. Uma verdadeira Babel psicanalítica. Se, por um lado, isso assusta e preocupa, por outro revela a fecundidade do trabalho clínico. As teorias que surgem da clínica, com um valor heurístico fundamental, servem para sustentar nossa compreensão. São ousadas, sedutoras, cavam em profundidade, encantam-nos. Tudo isso contrasta com o ascetismo do pesquisador empírico, sempre preso à necessidade dos fatos evidentes, objetivos e, quase sempre, obrigatoriamente demonstráveis.

Mas vamos procurar deixar de lado, ou contornar, essas duas ou três questões prévias – o que não significa que as desconsideremos, que não as levemos em conta ou, ao contrário, que tenhamos respostas para elas. Queremos dizer apenas que, embora existam e sejam importantes, elas não são o foco deste artigo.

Wallerstein (2002), num artigo em que historia a pesquisa em psicanálise e psicoterapia psicanalítica, afirma que a questão central dessa pesquisa é dar resposta a duas questões básicas: “1) quais as mudanças que ocorrem durante e em conseqüência do tratamento (a questão dos resultados) e 2) como essas mudanças ocorrem (a questão do processo)”. O autor delimita quatro gerações da pesquisa empírica nessa área, no período de 1917 até nossos dias, e avalia o alcance, a abrangência e a importância de cada uma. Assinala que somente agora, no que pode ser chamado de quarta geração da pesquisa, graças aos avanços verificados na metodologia e aos recursos de áudio, vídeo e computação (hoje mais aceitos, após um período de dúvidas quanto a se sua utilização não impedia o desenvolvimento normal do tratamento), começa a se tornar maior a possibilidade de uma investigação mais detalhada destas duas grandes questões da pesquisa em psicanálise: resultado e processo.

Embora muitas pesquisas atuais ainda mantenham critérios próprios de medida para resultado e processo analíticos, a troca de informações cresceu muito, com grupos tanto nos Estados Unidos como na Alemanha e Inglaterra “engajados no estudo microscópico da interação momento-a-momento do processo de interação psicanalítica, em cada sessão ou em pequenos segmentos de sessão” (Wallerstein, 2002, p. 46).

A conceitualização de termos, dentro da teoria psicanalítica e, portanto, também dentro das psicoterapias que derivam dela, é uma preocupação permanente, se não do psicanalista ou do psicoterapeuta, pelo menos daquele que se dedica a escrever, ensinar e pesquisar. A variação de significado de alguns conceitos não existe apenas entre as diferentes escolas de psicanálise, mecionadas acima, mas também entre membros de uma mesma escola, de uma mesma instituição e, às vezes, de uma mesma geração de psicanalistas. Termos teóricos – por exemplo, narcisismo, estrutura – e técnicos – como elaboração, transferência/contratransferência, processo analítico/processo psicoterápico – têm sido conceitualizados de forma diferente na teoria, na clínica e na pesquisa. Não estando a teoria psicanalítica ainda totalmente articulada em seus conceitos, a inexatidão de termos é uma conseqüência natural, isso sem nos referirmos às mudanças que a teoria sofre ao longo de seu desenvolvimento. Se de alguma forma a teoria muda, a conceitualização de um determinado termo também poderá mudar. Assim, a angústia de separação tem um significado em Freud e outro em Melanie Klein. Um leitor pouco atento pensará que o significado é o mesmo, num texto freudiano e kleiniano. Essa diferença nas conceitualizações leva a dificuldades concretas, seja nos debates teóricos, na clínica, no ensino ou na pesquisa.

A analogia pode ser útil também quando observamos mudanças e desenvolvimentos na teoria da técnica. Por exemplo, quando nos referimos à utilização da contratransferência na prática clínica, o que pode ser feito levando em conta a visão totalística (Heimann, 1950; Kernberg, 1965) ou a visão mais específica do conceito (Sandler, 1973/1977). É mister que se pesquisem tais diferenças, pois necessariamente implicarão abordagens técnicas e resultados distintos.

Portanto, a pesquisa qualitativa permite que se identifiquem tendências sobre conceitos, resultados terapêuticos (estudo de casos, por exemplo) ou mesmo mudanças na técnica psicanalítica que poderão servir de base para futuras investigações com metodologia quantitativa.

 

Investigando a contratransferência na supervisão

Utilizando a metodologia qualitativa mediante a análise de conteúdo (Bardin, 1977; Moraes, 1999) para investigar a abordagem da contratransferência na supervisão, Zaslavsky, Nunes e Eizirik (2005) constataram uma tendência à maior utilização do conceito totalístico da contratransferência, quando correlacionado ao conceito específico. Supõe-se que isso se deva a mudanças no ensino e no processo de supervisão na formação psicanalitica do instituto pesquisado. Um dos prováveis fatores de mudança seria a influência exercida pela evolução do conceito de contratransferência, e por sua inserção nas diferentes culturas psicanalíticas contemporâneas, sobre a técnica e, conseqüentemente, sobre o ensino da psicanálise, através de diversas denominações, como campo analítico (Baranger, 1962-63/1969), role responsiveness (Sandler, 1976), enactment (Jacobs, 1986), intersubjetividade e o terceiro analítico (Ogden, 1994), histórias possíveis e o conceito de personagem na sessão (Ferro, 1991/1995).

A pesquisa (Zaslavsky, Nunes & Eizirik, 2005, p. 1123) demonstrou em seus resultados outras tendências, tais como:

1. Trabalhar com transferência e contratransferência é uma condição essencial para a aprendizagem de uma boa técnica psicanalítica, porém é difícil de ensinar e de aprender.

2. Há concordância entre os entrevistados sobre a utilidade de abordar a contratransferência na supervisão, como meio de ampliar a compreensão do supervisionando e aprofundar a formulação das interpretações dirigidas ao paciente.

3. É útil observar os indicadores da contratransferência na supervisão, como as manifestações emocionais e comportamentais e os diferentes níveis de identificação projetiva, contra-identificações, processos paralelos e pontos cegos. Esses fenômenos precisam ser identificados e compreendidos, com a finalidade de aliviar os sentimentos do supervisionando e ampliar a compreensão do paciente.

4. Detectou-se uma mudança na abordagem da contratransferência por parte dos entrevistados: os supervisores passaram a abordá-la de forma mais direta e objetiva, em comparação com os resultados apresentados por uma pesquisa semelhante realizada em 1999.

5. É essencial que o supervisionando e especialmente o supervisor, como “guardião do setting de supervisão”, tenham uma noção clara de fronteiras e limites entre supervisão e análise

Essa pesquisa é um exemplo da utilidade da metodologia qualitativa em psicanálise, que pode servir de base para outras investigações.

 

Discussão sobre o conceito de processo analítico

Essa variação de significados é marcante no que se refere, por exemplo, ao conceito de processo analítico, isto é, o conjunto de características que definem o que é tratamento analítico per se. O conceito, introduzido por Freud em 1913, tornou-se rapidamente um dos principais termos da teoria e da prática clínicas, sendo seu uso praticamente universal na bibliografia (Vaughan & Roose, 1995).

Embora a totalidade dos psicanalistas desta e de épocas passadas reconheça e aceite a existência de algo denominado “processo analítico” e admita sua especificidade, bem como sua importância na teoria e na clínica, até agora não foi possível estabelecer uma definição de consenso sobre ele. As definições são não apenas numerosas, mas também contraditórias entre si.

Para exemplificar a necessidade de estabelecer definições consensuais tanto na clínica como na pesquisa, podemos imaginar em que seria benéfica a conceituação uniforme, isto é, consensual, de processo analítico. Para a pesquisa de resultados, é importante identificar, nos tratamentos, a ocorrência ou não de um processo, seja ele psicanalítico, seja psicoterápico. Não só para definir se esse ou aquele tratamento é análise ou psicoterapia, mas também para identificar quando ocorre um resultado negativo, numa pesquisa em que, por exemplo, todos os pacientes em “situação analítica” sejam considerados em análise, a despeito do que realmente possa ter ocorrido no tratamento, se foi análise ou psicoterapia. Algumas pesquisas sugerem que o processo psicanalítico, em que pesem suas diferentes conceituações, ocorre em aproximadamente 40% dos casos de tratamentos analíticos (Weber, Bachrach & Solomon, 1985). Nesses tratamentos, 90% dos pacientes obtêm o máximo benefício possível; nos casos em que não tenha havido processo analítico, mas uma psicoterapia de orientação analítica, 50% dos pacientes se beneficiam (Vaughan & Roose, 1995).

Portanto, o processo analítico é uma das formas de distinguir o tratamento caracteristicamente analítico de outros, igualmente baseados na teoria psicanalítica, como a psicoterapia de orientação analítica. Além disso, o ensino e a supervisão tanto da técnica analítica quanto da técnica psicoterápica poderiam ser mais bem realizados se fosse possível identificar a presença ou não de um processo, bem como seus mecanismos de instalação e desenvolvimento. (Aliás, muitos institutos de psicanálise, para promover um candidato a membro associado, procuram verificar, nos tratamentos realizados por eles, se houve ou não o desenvolvimento de processo analítico.)

Finalmente, uma conceituação consensual permitiria elaborar instrumentos mais precisos para os estudos de resultados, bem como também para a comparação desses resultados (Santos, 2003; Santos, Nunes & Ceitlin (2005/2006).

A idéia de processo psicoterápico deriva do conceito de processo analítico, cuja primeira referência, como já mencionado, aparece na obra de Freud em 1913, no artigo “Sobre o início do tratamento”:

[o analista] põe em movimento um processo, o processo de solução das repressões existentes. Pode supervisionar esse processo, auxiliá-lo, afastar obstáculos em seu caminho, e pode indubitavelmente invalidar grande parte dele. Mas, em geral, uma vez começado, [o processo] segue sua própria rota e não permite que, quer a direção que toma, quer a ordem em que colhe seus pontos, lhe sejam prescritas (p. 172).

Alguns autores, examinando essa afirmação de Freud sobre o processo, concluem que ele caracterizou o processo analítico de três maneiras: 1) equivale a um processo de mudança no paciente; 2) uma vez iniciado, tem vida própria, independentemente do analista e, em certa medida, do próprio paciente; 3) consiste em quatro elementos bem definidos: a associação livre, a resistência, a interpretação e a elaboração.

Assim, para Freud, a noção traduziria um progressivo desenvolvimento temporal numa direção definida, quase sem interferências. Possivelmente, hoje não atribuímos ao analista tão pouca influência no processo. Mas não podemos dissociar Freud de sua época. Ele escreveu dentro do modelo científico do século XIX, em que a física, a química e a biologia ditavam os critérios da cientificidade, e em que o observador estava separado dos fatos e os observava de forma (segundo pensava) neutra. Desse modo, o determinismo que se expressa no funcionamento do processo analítico (no sentido de independer da ação do analista, uma vez iniciado) tem sua base na noção freudiana de pulsão e descarga. Com Freud, então, temos o modelo natural do processo, com pouca importância ao papel do analista.

Etchegoyen (1985/1987) diferencia processo de situação analítica. Conceitua situação analítica como o lugar, o espaço onde se estabelece a relação entre analisado e analista com papéis bem definidos e bem objetivos no cumprimento de determinada tarefa. E acrescenta que “a situação requer um marco para se estabelecer, que é o setting, onde estão as normas que a tornam possível”.

Considera duas posições antagônicas quanto à natureza do processo: ou ele surge espontânea e naturalmente da situação analítica, ou é um artefato, um artifício das condições onde se desenvolve. A primeira posição pressupõe a espontaneidade da transferência, seguindo a noção freudiana clássica. A segunda posição parte do princípio de que o setting impõe a ambos os participantes uma relação convencional, artificial e assimétrica, sendo o processo algo criativo e original, com a ativa participação do analista. Etchegoyen diz que ambos os pontos de vista têm acertos, dependendo apenas de qual priorizamos. Ele opta pela primeira alternativa, por considerar que a essência do processo consiste no afastamento dos obstáculos para que o paciente tome seu próprio caminho. Segundo afirma, “o analista é criativo mais pelo que revela do que pelo que cria”.

Thomä e Kächelle (1985/1992) partem do princípio oposto a Etchegoyen, abordando o processo a partir de suas bases de formulação. Não estão preocupados em saber o que o processo é, mas o que o torna o que ele é – e, mais importante, o que o processo não deve ser. Os autores também reconhecem duas concepções opostas sobre o processo: a que o vê, como Freud o viu, como algo natural, que se desenvolve em fases ou repete o desenvolvimento do indivíduo, e na qual o papel do analista é muito pequeno – o que eles julgam ser uma ficção –, e aquela que vê o processo como uma relação interacional, na qual o analista tem um papel diádico-específico, co-determinando o processo, de um lado, e, de outro, permitindo que tal modelo seja suscetível de verificação empírica. Assinalam enfaticamente a importância da teoria que o analista concebe sobre o processo, pois “é ela que vai regular a conversão das metas do tratamento em intervenções” (Thomä & Kächelle, 1985/1992, p. 341). Assim, as concepções acerca do processo não são algo ateórico ou abstrato. Daí uma conclusão: quanto menos explícito o modelo de processo, ou mais geral sua formulação, mais facilmente escapará da reflexão crítica. Eles escrevem:

O analista que se aproxima do seu objeto (o processo analítico) com um determinado modelo, influencia, mediante suas expectativas, a ocorrência de eventos que se enquadram neste modelo [enxerga o que quer]. Assim, o analista que vê a tratamento como uma seqüência de fases pré-determinadas se fixará cuidadosamente em sinais que marquem a transição à próxima fase. Paralelamente, o analista fará eco, seletivamente, às afirmações do paciente que concordam com seu modelo e, com isso, provavelmente, determinará a direção que o processo deverá tomar, embora, ingenuamente, acredite haver-se limitado somente a observá-las. Deste modo, na ação terapêutica, converte seu modelo processual, para ele meramente descritivo, em prescritivo (p. 342; grifos nossos).

Em resumo, a pesquisa apresenta uma série de questões ainda não resolvidas quanto ao conceito de processo analítico. Em alguns estudos de resultado, há investigações que se referem a processo, mas não o conceituam; em outros, que o conceituam, repete-se o que se vê na clínica: uma variedade de definições e muitas vezes conceituações a posteriori, confundindo-se processo (ou seja, desenvolvimento do tratamento) com resultado (Santos, 2003; Santos et al., 2005).

Para Galatzer-Levy e colaboradores (2000), a presença de processo analítico é apenas uma entre outras formas, e bastante discutível, de estabelecer se um determinado tratamento é ou não é uma psicanálise. Diz que “em anos recentes, alguns analistas passaram a considerar a presença de processo analítico como definindo a psicanálise” e acrescenta que tal definição é um desafio, pois é difícil demonstrar empiricamente a presença do processo nos tratamentos.

Pelo exposto, poderíamos concluir que a definição de processo analítico, tanto na clínica como na pesquisa empírica, não está estabelecida, apesar dos inúmeros esforços nesse sentido. Assim, de certo modo, o conceito permanece “em aberto”, ambíguo e variando conforme o autor ou a pesquisa. E essa inexatidão conceitual que impregna a psicanálise é um complicador importante para a pesquisa. Mas, será que é assim para todo tipo de pesquisa?

Joseph Sandler (1983) discute essa questão a partir de outra perspectiva. Reconhecendo que a teoria psicanalítica, mesmo com um sólido núcleo central baseado em Freud, está longe de uma integração, emprega a noção de elasticidade de um conceito para referir-se a uma gama de significados dependentes do contexto em que o conceito está inserido. Contrariamente aos que clamam por uma uniformização dos significados, Sandler vê vantagens exatamente nessa indeterminação conceptual:

Os conceitos elásticos têm um papel muito importante para manter a unidade da teoria psicanalítica. Na medida em que a psicanálise está constituída por formulações com diferentes níveis de abstração e por teorias parciais que não se integram completamente entre si, a existência de conceitos flexíveis, dependentes do contexto, estabelece uma base geral da teoria com condições de articulação. Partes dessa base estão rigorosamente definidas, mas só podem articular-se com teorias similares se não estão conectadas rigidamente, se os conceitos que formam as ligações são flexíveis. Sobretudo, o valor de uma teoria articulada flexivelmente é o que permite que se produzam evoluções da teoria psicanalítica sem que tais evoluções causem necessariamente perturbações radicais na estrutura teórica global da psicanálise (Sandler, 1983, p. 36).

Em outras palavras, Sandler diz que a indefinição conceitual permite o desenvolvimento e o crescimento da teoria psicanalítica, e que os conceitos em psicanálise têm um “espaço de significação” que pode ser compartilhado ou não por diversos analistas. Se os espaços de significação diferem, pode ser necessário buscar um entendimento mais claro em um grupo, assim como pode ser útil estudar as dimensões significativas de um conceito “dentro da mente de qualquer psicanalista considerado individualmente” (p. 36). Assim, por um lado, a ambigüidade conceitual de alguns termos seria o resultado de evoluções da teoriae, por outro, favoreceria novas evoluções. Ou seja, o que alguns pesquisadores empíricos vêem como problema, Sandler vê como mecanismo evolutivo na teoria psicanalítica, a ser pesquisado não numa perspectiva empírica, mas conceitual, pesquisa qualitativa e não quantitativa. Resumindo, se a questão da conceituação em psicanálise representa um problema para determinado tipo de pesquisa, de base empírica, representa também um campo promissor e necessário para um outro tipo, o conceitual.

Considerações finais

Destacamos essas questões relacionadas à conceituação e à observação de tendências apenas para ilustrar uma das dificuldades, entre várias, que a teoria psicanalítica traz para a pesquisa. De qualquer modo, em que pese a dificuldade, é indiscutível a necessidade de pesquisar em psicoterapia e psicanálise. Enfatizamos como de grande utilidade científica a aplicação prática da metodologia qualitativa, que, mediante a análise de conteúdo, pode ser aplicada à pesquisa conceitual, empírica e clínica e, conseqüentemente, observar tendências e servir de base para investigações futuras.

Gostaríamos de finalizar com uma passagem de Fonagy (2001/2003):

A pesquisa não está ao alcance de todos; ela é para aqueles que se sentem dispostos a viver no abismo, numa terra de ninguém profissional, sendo suas intenções consideradas suspeitas, ou mesmo desleais [...], para aqueles que querem trabalhar mais do que os outros, como os filhos que se esforçam para provar sua lealdade aos pais divorciados; para aqueles que podem suportar sentir-se incompetentes em suas duas profissões, e a quem somente sua convicção lhes permita sobreviver (p. 336).

 

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Endereço para correspondência
Manuel J. Pires dos Santos
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Recebido em 21.5.2006
Aceito em 28.11.2006

 

 

1 Membro associado da SPPA; psiquiatra; professor e supervisor colaborador do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Faculdade de Medicina da UFRGS e do Centro de Estudos Luís Guedes.
2 Membro associado da SPPA; psiquiatra; professor e supervisor colaborador do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Faculdade de Medicina da UFRGS e do Centro de Estudos Luís Guedes.

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