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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.41 n.2 São Paulo jun. 2007

 

ARTIGOS

 

Microtraumas na sessão de análise1

 

Micro-traumas in the analytical session

 

Microtraumas en la sesión de análisis

 

 

Martha Maria de Moraes RibeiroI, II 2; Maria Letícia WiermanI, 3; Mario Luiz Prudente CorrêaI, II, 4; Paulo de Moraes Mendonça RibeiroI, II, 5; Suely de Fátima Severino DelboniI, 6; Thais Helena Thomé MarquesI, 7

I Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto
II Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Partindo da conceituação inicial de Freud sobre trauma como sendo algo cuja origem repousava em relações intersubjetivas (teoria da sedução), evoluindo para o conceito intrapsíquico (fantasias inconscientes) e chegando novamente ao conceito interpessoal ampliado pela microscopia dos movimentos inconscientes da dupla analítica durante a sessão, os autores tentam conceituar o que chamam “microtraumas na sessão de análise”. Os microtraumas são movimentos inconscientes sutis que ocorrem na relação trânsfero-contratransferencial. Vêm da relação real entre os dois e não conseguem chegar à consciência destes, gerando um tipo de splitting que Bion chamou de “splitting estático”. Conjectura-se que são manobras da parte psicótica da personalidade, visando manter a análise numa aparente normalidade supostamente produtiva. O microtrauma, originando-se no analista, aproxima essa condição do que poderia ser formulado como uma iatrogenia inconsciente. A partir de modelos clínicos, os autores fazem considerações sobre semelhanças e diferenças entre microtraumas, atuações e enactments. Diferenciam microtraumas e microcesuras. Os primeiros, pela intuição psicanaliticamente bem treinada, podem ser transformados em microcesuras geradoras de alteridade e desenvolvimento rumo a mudanças catastróficas e criativas.

Palavras-chave: Microtraumas; Iatrogenia; Trauma; Transformações; Enactment; Microcesuras; Splitting Estático; Intersubjetividade; Intuição.


ABSTRACT

Setting out from Freud’s initial conceptualization over trauma as being something which origin reclined over inter subjective relations (theory of seduction), developing into the intrapsychic concept (unconscious fantasies), and reaching the interpersonal concept again, enlarged by the microscopy of unconscious movements of the analytical pair during the session, the authors try to conceptualize what they name as “micro-traumas in the analytical session”. Micro-traumas are subtle unconscious movements that occur in the transference-countertransference relation. They descend from the real relation between both and are unable to reach their consciousness, generating the kind of splitting Bion named as “static splitting”. It is conjectured that these are maneuvers from the personality’s psychotic part, in an attempt to keep analysis in an apparent normality, supposedly productive. When originated in the analyst, the micro-trauma approaches the condition of what could be formulated as an unconscious iatrogenic. Using clinical models, the authors develop considerations on similarities and differences among micro-traumas, actings and “enactments”. Micro-traumas and micro-caesurae are differentiated. The first ones, through a well psychoanalytically trained intuition might be transformed in micro caesurae which generate alterity and development toward catastrophic and creative changes.

Keywords: Micro-traumas; Iatrogeny; Trauma; Transformations; Enactment; Micro-caesurae; Static splitting; Intersubjectivity; Intuition.


RESUMEN

Partiendo del concepto inicial de Freud sobre trauma como siendo algo cuyo origen recaía sobre relaciones ínter subjetivas (teoría de la seducción), yendo para el concepto intrapsíquico (fantasías inconsciente) y llegando nuevamente al concepto interpersonal ampliado por la microscopia de los movimientos inconscientes del par analítico durante la sesión, los autores tratan de conceptuar lo que llaman “microtraumas en la sesión de análisis”. Los microtraumas son movimientos inconscientes sutiles que ocurren en la relación transferencial-contratransferencial. Resultan de la relación real entre los dos y no consiguen llegar a la conciencia de estos, generando un tipo de splitting que Bion llamó de “splitting estático”. Conjeturase que son maniobras de la parte psicótica de la personalidad, tratando de mantener el análisis en una aparente normalidad supuestamente productiva. El microtrauma se originaría en el analista, aproximando esta condición a lo que llamaría de una iatrogenía inconsciente. Partiendo de modelos clínicos, los autores tejen consideraciones sobre semejanzas y diferencias entre microtraumas, actuaciones y “enactments”. Distinguen microtraumas y microcesuras. Los primeros a través de la intuición psicoanalítica bien entrenada, pueden ser transformados en microcesuras generadoras de alteridad y desarrollo rumbo a mudanzas catastróficas y creativas.

Palabras clave: Microtraumas; Iatrogenía; Trauma; Transformaciones; Enactment; Microcesuras; Splitting estático; Intersubjetividad; Intuición.


 

 

Le vase brisé

Le vase où meurt cette verveine
D’un coup d’éventail fut fêlé;
Le coup dut l’effl eurer à peine,
Aucun bruit ne l’a révélé.

Mais la légère meutrissure,
Mordant le cristal chaque jour,
D’une marche invisible et sûre
En a fait lentement le tour.

Son eau fraîche a fui goutte à goutte,
Le suc des fl eurs s’est équisé;
Persone encore ne s’en doute,
N’y touchez pas, il est brisé.

Souvent aussi la main qu’on aime
Effl eurant le coeur, le meutrit;
Puis le coeur se fend de lui-même,
La fl eur de son amour périt;

Toujours intact aux yeux du monde,
Il sent croître et pleurer tout bas
Sa blessure fi ne et profonde:
Il est brisé, n’y touchez pas.

Sully Prudhomme [1839-1907]

O vaso trincado8

O vaso onde morre esta verbena
De um golpe de leque foi atingido;
O golpe deve ter roçado apenas:
Nenhum ruído o revelou.

Mas a ligeira trinca,
Mordendo o cristal a cada dia,
Em marcha invisível e segura
Fez lentamente a volta.

Sua água fresca fugiu gota a gota,
O suco das fl ores se esgotou;
Ninguém ainda nada notou;
Não o toquem, ele está trincado.

Assim como a mão que se ama,
Roçando o coração, o fere;
Depois o coração se parte,
A fl or de seu amor perece.

Sempre intacto aos olhos do mundo,
Ele sente crescer e chorar baixinho
Sua ferida fi na e profunda;
Ele está trincado, não o toquem.

 

I. Introdução

Trauma é uma palavra que se origina do grego e significa ferida. Acreditamos ser uma das mais valiosas contribuições de Bion a ênfase colocada nas questões ligadas ao funcionamento mental do analista dentro e fora da sessão de análise. Na microscopia da sessão de análise há movimentos intersubjetivos inconscientes que ocorrem na dupla analista-analisando e geralmente passam despercebidos pelo analista, gerando efeito iatrogênico9. Chamamos esses fenômenos de microtraumas na sessão de análise.

Na obra de Freud (1895), a palavra trauma aparece pela primeira vez nos seus estudos preliminares com pacientes histéricas. Ele relacionou o trauma psíquico observado em suas pacientes com uma suposta sedução sexual que teria sido realmente perpetrada pelo pai, ou figura substituta, contra a menina indefesa. Trauma era basicamente concebido como um fator externo, oriundo do ambiente que, invadindo o ego imaturo, o qual não conseguiria enfrentar essa hipercatexia mediante ab-reação ou elaboração associativa, deixaria a energia libidinal estrangulada, impossibilitada de descarga. Nesse ponto do desenvolvimento do pensamento de Freud, trauma era visto como conseqüência de uma relação do tipo causa-efeito, com origens essencialmente intersubjetivas realísticas, ou seja, como conseqüência de sedução concretamente perpetrada. Em artigos sucessivos, Freud reconheceu outras possibilidades de constituição de traumas além das seduções sexuais, o da cena primária, o da angústia de castração, etc.

Em Além do princípio do prazer (1920) surge o conceito de “compulsão à repetição” ligado às pulsões do “instinto de morte” que, associado à nova definição dos sistemas psíquicos dividindo a mente humana em ego, id e superego (1923), leva o conceito de trauma a um referencial predominantemente intersistêmico, pulsional e intrapsíquico. A ênfase recai, então, sobre as fantasias inconscientes do indivíduo e seu funcionamento mental.

Em 1926, no texto Inibições, sintomas e angústia, Freud deu um passo importante ao reconhecer o trauma representado pelas “perdas precoces” no ser humano, incluindo a da perda do amor da mãe ou de outras pessoas significativas. Nesse trabalho, Freud distinguiu a “angústia automática” da “angústia como sinal de alarme”: a “angústia automática” teria como determinante fundamental a ocorrência de uma situação traumática (um afluxo incontrolável de situações variadas e intensas demais para o ego do indivíduo), enquanto o conceito de “angústia como sinal de alarme” designaria um dispositivo do ego que reproduz de forma atenuada as reações de angústia vividas primitivamente em situações traumáticas, acionando operações defesas quando o ego se encontra em situações sentidas como perigosas.

Em Esboço de psicanálise (1940), Freud compara o efeito de um trauma psicológico ao de uma agulhada no embrião humano. Utilizando uma bela metáfora, escreve: “[...] uma agulhada num organismo desenvolvido é inofensiva; porém, se for numa massa de células no ato da divisão celular, promoverá uma profunda alteração do desenvolvimento daquele ser humano em formação”.Freud associou a ocorrência das situações traumáticas a estados de desamparo mental devido ao acúmulo de excitação que sobrepuja a capacidade egóica de poder processar a angústia e a dor psíquica que elas provocam. A repercussão dos traumas no psiquismo da criança é proporcional à precocidade de seu estado de inermia.

O conceito de trauma, desde seus primórdios, conservou a idéia de se tratar de um evento essencialmente econômico da energia psíquica: uma frustração em face da qual o ego sofre um impacto psíquico, não consegue processá-lo e recai num estado no qual se sente atordoado e desamparado. No entanto, o conceito evoluiu no tocante a sua etiologia: inicialmente, traumas seriam oriundos de fatos interpessoais (a sedução realística); depois, passou-se a concebê-los como conseqüentes a eventos intrapsíquicos (a fantasia inconsciente), para finalmente retornar à dimensão intersubjetiva, agora ampliada, enfocando o plano primitivo da experiência humana, o plano das relações interpessoais quando do nascimento psicológico do indivíduo (Tustin, 1981).

Nosso estudo visa contribuir para a reflexão sobre movimentos inconscientes sutis que ocorrem no plano das relações intersubjetivas, incluindo a sala de análise, gerando descontinuidades na experiência da constituição do self do indivíduo. Essa situação deixa marcas invisíveis aos nossos sentidos, uma vez que não são faladas, nem mesmo atuadas, mas reais, causando conseqüências sérias ao desenvolvimento da identidade pessoal.

A impossibilidade de o analista reconhecer certas experiências como emocionais pode levar a que áreas primitivas, imaturas da mente do analisando, que se apresentam no momento mesmo da sessão, não possam ser significadas e nomeadas, permanecendo impensáveis.

A experiência de emoção está presente na relação analítica, embora nem sempre possa ser reconhecida pelo analista, por não ter sido fruto de um aprendizado próprio. Roger Money-Kyrle, em seu texto “Contratransferência normal e alguns de seus desvios” (1996), expõe essa questão da seguinte maneira: “A compreensão do analista falha toda vez que o paciente corresponde de forma demasiado próxima a algum aspecto de si próprio que ele não aprendeu a compreender”.

Neste trabalho, estudaremos iatrogenias que ocorrem inconsciente e silenciosamente durante as sessões e, portanto, estão aquém do nível de comunicação por identificação projetiva.

 

II. Os microtraumas na sessão de análise

2.1. Certa vez, numa primeira entrevista de análise, um paciente de cerca de trinta anos contou ao seu analista que, na adolescência, sentia forte compulsão para atividades homossexuais que acreditava serem promíscuas, e que muitas vezes não conseguia se conter-se e as realizava. Como estava procurando análise já na idade adulta, casado e com filhos, o analista lhe perguntou se, e como, ele experimentava tais compulsões na atualidade. O paciente respondeu calmamente que se tratava de eventos do passado que acreditava terem desaparecido, uma vez que elaborados em terapias anteriores.

A análise parecia transcorrer normalmente, mas havia um estranho silêncio nas questões ligadas à sexualidade do paciente. O que teria ocorrido? As terapias anteriores foram tão eficientes em elaborar todas as questões da sexualidade do paciente? Quase dois anos após esse primeiro contato, a mesma temática retornou à sala de análise, em forma de “sonhos estranhos”... Os supostos “sonhos estranhos” foram a maneira que o paciente encontrou de verificar a possibilidade de conversar com seu analista sobre essas dolorosas questões. Na primeira tentativa, muito rapidamente, o paciente vivenciou seu analista como estando preso em “memórias, desejos e conhecimentos” (Bion, 1970) sobre o comportamento sexual humano e inibiu-se.

Podemos conjecturar que a pergunta feita pelo analista foi prontamente transformada (Bion, 1965/1984c) pelo analisando em algo que metaforicamente poderia ser descrito como um impacto no vazio... É provável que o paciente, inconscientemente, tenha atribuído preconceitos ao seu analista; fez isso calando-se. Ele captou intuitivamente um ponto cego na mente de seu analista. Constituiu-se naquele momento um microtrauma na sessão de análise, e a calma evasão do paciente teve como objetivo silenciar a dupla para aquelas questões. A assimetria da relação analítica, com conseqüente idealização do analista, tornava impossível, naquele momento da análise, qualquer questionamento por parte do paciente. Só lhe restava adaptar-se ao seu analista (ou ao que ele pensou ser seu analista) como se nada tivesse ocorrido, renunciando à existência de uma mente própria sua, algo que Winnicott (1960/1983) talvez descrevesse como um “falso self” sendo constituído na sala de análise. Somente muito tempo depois, essas questões ligadas à identidade sexual do paciente puderam retornar à relação analítica, na esperança de ganhar a devida significação. Talvez a relação já tivesse evoluído o suficiente para o paciente poder ver seu analista como pessoa real, sujeita a preconceitos, e demandando relação humana verdadeira para manter-se em desenvolvimento. O analista pôde lhe dizer que as imagens narradas por ele do “sonho estranho”, supostamente sexuais, evocavam-lhe associações sobre um menino muito assustado e carente que, de forma desesperada, tentava buscar no pênis/seio de um pai/mãe alucinadamente ideal um leite/sêmen mágico para acalmar-lhe...

O “menino” assustado também era corajoso, ao ousar trazer, mais uma vez, questões delicadas para a análise. Ele poderia ter se calado para sempre, tornando essa área tão importante da experiência humana congelada, enrijecida e imóvel... Sua ousadia em sonhar e publicar o sonho pôde elevar o microtrauma na sessão de análise para uma experiência de cesura (Bion, 1977), geradora de transformações.

Nos movimentos emocionais (K, L, e/ou H – Bion, 1962/1984a) de toda sessão de análise podem surgir momentos, verbais ou não, nos quais inconscientemente o analista fala (ou se cala), ou faz algum gesto, ou usa alguma peça de roupa ou jóia diferente, etc., que resulta num silêncio por parte do paciente. Algo aconteceu... naquele momento... é atual... O silêncio do paciente pode ser mudo, ou estar disfarçado de uma tranqüila evasão do tema, ou mesmo de uma pseudoconcordância sobre aquilo que está sendo vivido na sessão. No entanto, o paciente percebeu “algo” no analista que não pôde ganhar o plano simbólico para ser verbalizado. Ele experimenta isso como um “impacto” vindo do analista e não tem nenhuma condição, naquele momento, de processá-lo a fim de ganhar representabilidade simbólica exprimível na relação. O “impacto” é atual, é da relação com a pessoa real do analista, e surpreende o paciente. Ele não esperava aquela reação do analista, o perfume ou roupa diferente, ou mesmo a resposta tão pronta...

O surgimento desses movimentos emocionais silenciosos na relação analítica prescinde das experiências do passado do paciente, apesar de estarem relacionados com elas, uma vez que são as áreas mais frágeis e vulneráveis do paciente as sujeitas aos microtraumas na sessão de análise. Onde o ego é forte, um “impacto” vindo do analista gera ação e não sobreadaptação. O microtrauma é como um “impacto no vazio”, não pode ser reclamado ou contestado, nem mesmo pode ser atuado na forma de um acting in. O analista não percebe nada anormal ocorrendo, uma vez que se trata de um ponto-cego seu, um escotoma na sua percepção da relação com o paciente: tudo parece estar bem, a não ser por um breve silêncio por parte do paciente ou algo assim.

Um modelo campestre pode ajudar-nos a compreender a questão: caminhamos por terras onde há mangueiras... Há uma manga no chão que parece ter-se desprendido do seu galho há pouco tempo. Pegamo-la nas mãos e observamos que sua superfície está intacta. A textura é homogênea, de um amarelo-laranja de grande beleza. A conjectura é de que a fruta, já madura, se desprendeu do pé e a encontramos num bom momento para ser saboreada. Levamo-la para casa e gentilmente a colocamos na fruteira da sala. Horas depois, ao observarmos novamente a fruta, notamos que na área onde ela sofreu o impacto com o solo há agora um espessamento de sua “tez”. Sua casca endureceu naquela região e, se a apalparmos delicadamente, conseguiremos delimitar a área onde ela sofreu o “trauma”. Ao abrirmos a fruta, percebemos que na região traumatizada há deterioração, que ficou oculta quando vista por fora. Percebem-se fissuras maiores ou menores na sua textura. Essa área da manga, para fins de nutrição, em geral é descartada.

Ou um modelo somático: todos já tivemos a experiência de sofrer alguma lesão de descontinuidade em nossa pele. Dependendo da sensibilidade de cada indivíduo haverá, em maior ou menor grau, um processo de cicatrização cujo objetivo é restaurar a continuidade perdida. Pode-se formar o que os dermatologistas chamam de quelóide, isto é, uma hiperplasia do tecido fibroso que, ao ser apalpada, mostra-se mais espessa que a pele normal. Se quisermos ir adiante para examinar questões de sensibilidade com uma agulha, notaremos que a área traumatizada, supostamente restaurada, é rígida, e apresenta significativa diminuição da sensibilidade local. Essa região fica menos sensível e mais resistente. Ao forçarmos a agulha, não se sente dor... No entanto, se tivermos a infelicidade de sofrer um novo trauma no mesmo local, notaremos que nas suas bordas surgirá uma fissura profunda e difícil de ser suturada, pois a área circundante ao quelóide torna-se de maior fragilidade.

O microtrauma que ocorrena sessão de análise corresponde ao “impacto” que a manga sofre ao tocar o chão; inicialmente ele não é perceptível aos nossos sentidos, nem mesmo à nossa consciência como órgão sensorial para captação das qualidades psíquicas, mas existe e deixa evidências que mais tarde serão perceptíveis. Se abrirmos a manga ali mesmo no campo, não se perceberá nada; mas, se dermos algum tempo, poderemos ver o espessamento da “pele” da manga, tal qual o quelóide humano, o que denuncia que naquela área houve traumatismo, ferida.

O impacto silencioso do microtrauma na sessão de análise gera áreas de insensibilidade no self do paciente. É como se houvesse um enrijecimento automático daquela área da experiência, com fins defensivos e de sobrevivência psíquica. Dentro dela houve a adaptação ao analista, com enrijecimento; o paciente se torna forte, pois sente que tem de ser mais forte que o próprio analista, o que só é possível às custas de insensibilidade: ele se previne de “sentir” dor, mas para isso fica impossibilitado também de “sofrer” amor (Bion, 1970).

O “quelóide” é área de vínculo -K, um anticonhecimento defensivo, que, em termos de pensamento, é inútil para uso maduro – no modelo, parte podre da manga que é descartada –, uma vez que sua função principal é evadir-se da verdade. Esses mecanismos estão a serviço da parte psicótica da personalidade, e, por “efeito colateral”, geram áreas, circunvizinhas ao quelóide, frágeis e friáveis, mais sensíveis que a “pele” normal, provavelmente devido à proximidade da diferença de camadas de defesa.

2.2. Muitas vezes acreditamos estar suficientemente aptos para atender nosso paciente e, em parte, estamos mesmo. Entretanto, algo ocorre na parceria analítica, num momento específico da experiência, que não permite à dupla desenvolver a continuidade da experiência emocional a fim de atingir o insight transformador. O microtrauma não alcança a dimensão de microcesura.10 Há fatores que são oriundos do analista, pois ele pode estar enlutado, preocupado com questões de saúde dele próprio, ou de seus familiares, e o paciente de alguma maneira capta que a mente do analista está parcialmente saturada com questões pessoais. Ali ele sente que não pode entrar, não há espaço, aqueles temas são intoleráveis para o analista; ao invés de reclamar seu direito, cala-se e passa a cuidar de seu analista, invertendo as funções na sala de análise (Ferro, 1995). O “silêncio” por parte do paciente, inconsciente para ele, constitui um microtrauma na sessão. É uma experiência que ocorre na intersubjetividade da dupla analítica e não consegue ganhar representação simbólica, resultando numa experiência surda, cega e muda.

Como exemplo clínico, uma analista estava vivendo um momento muito doloroso de sua vida, quando um familiar recebeu o diagnóstico de uma grave doença. Contou-nos que alguns pacientes abandonaram a análise nessa época. Eis um fragmento de uma sessão:

Paciente: Estou apavorada! Meu útero está com tanto mioma que parece útero de três meses de gestação. O médico em São Paulo está tentando um medicamento para ver se reduz um pouco, antes de uma intervenção mais agressiva. Meu pai e minha mãe estão com problemas como sempre e não conseguem nem imaginar o que está acontecendo comigo. Aquele sonho não me deixa em paz...

Sonhara que estava em uma rodovia, por onde caminhava e, de repente, puxava para cima o asfalto, e, à medida que o puxava, verificava que embaixo dele havia uma profusão de cadáveres.

A sessão caminhou levando a dupla a pensar e conversar sobre vivências de impotência diante de alguns momentos da vida, nos quais só se pode contemplar e coexistir, mas não modificar. Devido às dores não elaboradas, a analista evadiu-se, e de certa forma, repetiu a situação anunciada na cena onírica. Após uma pausa, a paciente disse que talvez se afastasse da análise para fazer o tratamento do mioma, que teria que ir a São Paulo e possivelmente faltaria muito às sessões, mas não sabia ainda ao certo.

Acertou os honorários do mês, despedindo-se com um “até amanhã”. Não retornou mais, interrompendo a análise com um recado na secretária eletrônica dizendo que, assim que possível, entraria novamente em contato.

Quatro anos depois, uma amiga da paciente telefona para a analista no horário do almoço, em sua casa, dizendo que a paciente está muito mal e que gostaria de conversar com ela, mas precisava ser imediatamente. A analista sentiu muito desespero na voz da amiga e encurtou sua hora de almoço, respondendo que a paciente podia vir.

A analisanda entrou “como um furacão” no consultório e deitou-se no divã como se nunca tivesse interrompido a análise. Contou que estava com um namorado novo que queria se casar com ela. Tinha então 40 anos e havia muito não namorava. Disse que estava pensando “apenas na aposentadoria e em viajar”, e que, de repente, sua vida mudou “da água para o vinho”. Retomaram o trabalho analítico.

Logo nas primeiras sessões, a analisanda contou que interrompera a análise porque ficou sabendo de um problema pessoal da analista, e sentia que toda vez que a analista falava de dor, não era da dor dela (paciente), mas sim da própria. A analista recebeu com certo impacto o que ouviu, pois entendeu haver verdade na fala da paciente. Puderam, então, continuar o trabalho.

Conjecturamos que L (amor) ou H (ódio) ou K (conhecimento) deve ser contido pelo analista antes de ser veiculado ao paciente; do contrário, pacientes mais sensíveis podem sentir-se abandonados na sala de análise, por mais pertinente que seja nosso diálogo. A dor da analista, para aquela paciente em particular, extravasou (extra-vazou)..., constituindo-se num microtrauma. A paciente interrompeu o processo, dando tempo à analista para elaborar seu luto. Só então a relação pôde prosseguir.

2.3. K (conhecimento) pode ser compartilhado ou não. Para ilustrar situações assim, trazemos um fragmento de material clínico de supervisão.

Em determinado momento de uma sessão, um paciente diz ao terapeuta que este não tinha condições de saber como o paciente estava se sentindo, visto nunca ter sofrido impregnação por medicamentos. O terapeuta ficou imobilizado e não pôde dizer nada ao paciente, pois achou que ele tinha razão. Criou-se um silêncio mudo e o paciente pareceu evadir-se desse tema, desesperançado.

O aparecimento do microtrauma na sessão ocorreu pelo fato de o analista não ter podido reconhecer, em si próprio, situações nas quais experimentara divisão esquizofrênica, por exemplo, a experiência de uma parte da sua mente estar tomada por uma condição considerada invasiva, e outra parte ter consciência disso, mas sentir-se impotente para integrar as experiências (impregnação medicamentosa).

A própria formulação do paciente constituiu-se como uma “impregnação”, com a qual o terapeuta ficou identificado (impregnado), aprisionando-o numa impossibilidade de viver uma relação empática com seu paciente, até poder conversar com a supervisora e compreender a comunicação primitiva que estava ocorrendo na dupla analítica. Só então o microtrauma pôde ser trabalhado e transformado em microcesura, permitindo um movimento mais vivo na dupla, que poderia ser expresso assim: “Se meu terapeuta pode experimentar esquizofrenia, eu também posso experimentar sanidade ...”

2.4. Bion, ao tecer considerações sobre a condição psíquica que descreveu como “reversão de perspectiva”, usou como modelo o Cubo de Wercker e o Vaso de Rubin, nos quais o jogo de figura e fundo faz mudar completamente o objeto em cena. A “reversão de perspectiva”11 é, segundo Bion, uma defesa contra a dor de crescimento em relação a conflitos edípicos. O mecanismo intrínseco à reversão de perspectiva foi denominado por esse autor de “splitting estático”, que representa uma falha na capacidade de casar uma “pré-concepção” com sua “realização” correspondente, rumo a um “conceito”. Haveria uma reversão na qualidade “dinâmica” do splitting para um modo “estático” deste, no qual dinâmicas edípicas não entrariam em movimento na relação.

Bion explica que não se trata de identificação projetiva de partes da mente do indivíduo, ou de evacuação de elementos beta; ao contrário, nada muda, tudo permanece estático, e há a ilusão conjunta de que analista e paciente estão caminhando juntos e produtivamente. O autor está firmemente convencido de que, se esses movimentos do analista e do analisando fossem expostos à grade, os “silêncios” ou as “pseudoconcordâncias” da reversão de perspectiva seriam revelados (Bion, 1963/1984b).

Acreditamos que na situação de microtrauma na sessão de análise o analisando transforme (através do mecanismo de “splitting estático”) uma situação dinâmica que, potencialmente, traria o desconhecido para a cena analítica, ou a cesura para um crescimento emocional na dupla, numa situação estática. O analisando reverte a perspectiva e afasta o aprender da experiência.

2.5. Os microtraumas na sessão de análise podem ser captados pelo analista através da intuição. Pensamos não haver outro mecanismo de captar microtraumas a não ser o intuir. Se isso for possível, o microtrauma pode se tornar uma microcesura na sessão de análise. Um exemplo dos movimentos de transformação de microtrauma em microcesura é a cena que a seguir propomos à análise.

Um analisando entra para a sessão e encontra a analista tomada de vivências de memórias de fatos contundentes ocorridos na sessão com o paciente anterior. A analista, ao se perceber com devaneios, desejou que esse analisando se atrasasse ou mesmo faltasse à sessão naquele dia: pensava na analisanda anterior que, ao anunciar que estava grávida, sofria pelas grandes implicações que isso teria em sua vida. Por sua vez, o analisando12 estivera durante dez anos freqüentando um serviço de Reprodução Humana tentando fertilizar a esposa, sem nenhum sucesso. Tentativas frustradas fizeram com que o casal adotasse um filho.

O analisando chegou pontualmente no horário, deitou-se no divã e intuitivamente percebeu que havia algo com a analista, que não estava em sintonia com ele, e disse:“Eu não queria estar aqui hoje...” – e, com arrogância, disse que gostaria de estar viajando ou trabalhando. A analista respondeu: “Estando aqui, vamos aproveitar a sessão. Estamos juntos e a sessão é sua.”

A analista se denunciou ao falar o óbvio: a sessão era dele... Em tom muito rude, o analisando argumentou que percebia, às vezes, que ser analista devia ser um suplício, pois tem que acompanhar uma pessoa que está a seu lado... mas quem traz a conversa é o analisando... que a coisa tem essa direção e que a analista devia ter desejos de conversar outras questões. Analista: “Você fala em suplício... seria suplício estar com você? É assim que você me sente agora?”. Triunfante, o analisando reafirma que sim, que estava se sentindo legal, leve e disse para a analista que ela queria estar em qualquer outro lugar, menos ali com ele.

Decorrera algum tempo, quando a analista pôde se organizar diante do inusitado da sessão e dizer: “Sua necessidade, pela sua carência, pelos seus vazios, fizeram com que pudesse captar algo em minha mente; por exemplo, captar que eu não estivesse com minha mente inteiramente disponível a você, logo que chegou, porque sou humana. É uma captação “fina” essa sua, mas a maneira de comunicar-me isso é com hostilidade e arrogância”. Ao interpretá-lo transferencialmente, mostrando sua defesa contra o sentimento de rejeição e ciúme, a analista revelou-se a ele num clima de verdade e privacidade.

Eufórico, o analisando confirmou à analista que ao chegar, ela queria forçá-lo a falar, antes mesmo que tivesse sintonizado na sessão, então, teve medo... mas, depois, percebendo que ela poderia suportá-lo como estava: agressivo e intruso, sentiu uma forte emoção e pôde falar sem desabar ou desabar a analista. Vivenciaram na dupla uma experiência que fortaleceu a relação, pois prosseguiram a sessão falando em clima de cordialidade sobre os espaços internos que se estavam ampliando...13 A dupla analista-analisando teve êxito em transformar um possível microtrauma em uma microcesura geradora de desenvolvimento.

2.6. Memórias, desejos e conhecimentos saturados da mente do analista podem constituir microtraumas na sessão. A respeito, valemo-nos de um novo fragmento clínico: um analista relatou que teve um jovem paciente que fez dois períodos de análise com ele, sendo que o primeiro foi interrompido logo após um período no qual o paciente trouxera questões ligadas à sua identidade sexual que, na época, foram interpretadas transferencialmente como material de Édipo negativo (fantasias homossexuais inconscientes). O analista acredita que sua abordagem foi precipitada e resultou na interrupção da análise. O fragmento seguinte é do segundo período da análise desse paciente, após interrupção de cerca de um ano e meio:

Paciente: Eu finalmente aprendi a viver com as pequenas coisas, e aí dá pra ficar mais relaxado, não me preocupar tanto com tudo, como eu era antes.

Analista: Você pode me dar um exemplo? O que você chama de “pequenas coisas”?

Paciente: Ah! Sei lá...

Após um silêncio breve...

Paciente: Lá no meu trabalho tem um cara que fala assim:  “Aquele cara é um chupa-pica!” E, antigamente, se ele dissesse isso, na hora eu ficava pensando: o cara é um chupa-pica. Agora não, eu penso, ninguém sabe o que ele é, se chupa pica, se não chupa; se eu chupo ou não, ou se já chupei... Não tem nada a ver, entende?

Diante de uma colocação desse tipo, um analista poderia tomar o vértice de analisar o que o paciente entende por “chupa-pica”, visando abrir caminho para se conversar sobre homossexualidade e demonstrar ao paciente que o analista não tem preconceitos sexuais, ato que em si mesmo já pode constituir um. Um outro analista (ou o mesmo, num outro momento) poderia sonhar com um bebê chupando e picando o seio de sua mãe e tentar investigar e possivelmente interpretar a dinâmica de sexualidade oral-canibalística. Uma outra possibilidade ainda, entre muitas, seria apontar ao paciente algo como: “Você está realizando que sente que agora ‘pensa, logo existe’... que não se sente mais uma extensão do pensamento dos outros, que tem idéias próprias, pensamentos próprios, identidade própria...”, não enfocando diretamente questões de conteúdo (♂) (sexualidade), mas sim de continente (♀) (capacidade de pensar sobre sexualidade). Essa última opção foi a escolhida pelo analista e este sentiu que essa abordagem permitiu ampliar o campo de interação da dupla: microtrauma → microcesura.

O que favorece a escolha desta ou daquela interpretação? Qual seria a mais útil ao paciente naquele determinado momento de seu desenvolvimento? Quando uma memória é obstrutiva? E quando ela é útil para a análise de alguém?

Através da vivência contínua da transferência-contratransferência na relação analítica, vamos conhecendo a história viva do nosso paciente, e isso nos permite situá-lo – a cada sessão, em cada novo encontro (sempre inédito) – num determinado ponto do desenvolvimento humano. Essa experiência, construção, aliada à “intuição analiticamente treinada” (Sapienza, 1997) permite ao analista modular o que e como falar a seu paciente, prevenindo o surgimento de alguns possíveis microtraumas na sessão.

2.7. Um espectro “narcisismo↔social-ismo” (Bion, 2000) muito intenso fomenta a experiência de microtraumas numa sessão de análise. Podemos observar uma exagerada paixão de amor (L) social-ista nos analistas que se tornam “fiéis seguidores” de seu analista didata, formando pequenos clãs com um corpo conceitual todo próprio... A contraparte é o ódio (H) narcisista pela própria personalidade: quando o indivíduo no grupo não se sente livre para publicar seu pensamento próprio. O “temor reverencial” (idem) denota a certeza do não acolhimento pelos pares do pensamento individual de forma crítico-construtiva.

Quando o paciente decide interromper certa análise com certo analista, num certo momento, não há necessariamente evasão ou fuga. No exemplo citado em 2.2, a paciente, sensível e necessitada da analista funcionando a plena capacidade, precisou se ausentar temporariamente da cena de luto que a analista estava elaborando. O luto da analista deixava sua relação com a paciente carregada de paixão. Amor (L) e ódio (H) são vínculos fundamentais em qualquer relação humana, mas a relação analítica deve privilegiar o vínculo de conhecimento (K); este, por sua vez, pressupõe os vínculos de L e H incorporados nele. Uma interpretação psicanalítica (vínculo K) deve ser veiculada com compaixão (L) ou mesmo com agressividade (H), e nunca numa forma desafetada... como se houvesse algo como um “vínculo K puro”. No entanto, L ou H devem ser antes contidos pela mente do analista, para não extravasar K e constituir sobrecarga para o analisando.

K “desafetado” (-L ou -H → -K), ou veiculado com demasiada paixão, pode constituir microtraumas, que, se freqüentes numa análise, levam ao prolongamento desnecessário da relação, ou ao desenvolvimento de idealizações e “temores reverenciais”, tornando a relação analítica simbiótica ou parasitária (Bion, 1970). Há análises que duram muitos e muitos anos, às vezes décadas, e estão disfarçadas de um suposto “trabalho muito profundo”, mas, na realidade, escondem todo um “sistema dedutivo científico” com viés na coluna 2 da grade (G2), produzido pela dupla para justificar o trabalho interminável.

Veicular conhecimento (K) sem as emoções básicas que veiculariam funções para se elaborar K pode aprisionar o paciente na dependência das funções mentais do analista. Veicular K com muito L (amor) pode deixar o paciente em eterna dívida de gratidão para com o analista, sentido como “tão amoroso”. Se K costuma extravasar H (ódio) demais, pode haver dinâmica sadomasoquista sutil, perversamente sofisticada, na qual K perde importância e os movimentos analíticos passam a ser sexualizados. A interpretação “dolorosa” passa a ser a almejada, passa a ser a boa, a correta, mais em função do prazer sadomasoquista do “dolorosa” do que pelo seu conteúdo (K), que fica esvaziado de significados.

2.8. Enactments são movimentos (conluios) inconscientes que ocorrem na dupla analítica, nos quais geralmente o analisando leva o analista a um acting in que reedita vivências significativas de sua vida. Em alguns deles, o analista é levado a atuar, por exemplo, dando uma interpretação “dolorosa” ou “penetrante” ao paciente. Nesses casos o analista geralmente sente que há algo acontecendo, o que diferencia essas experiências dos microtraumas. Nos enactments (Cassorla, 2001) geralmente há a possibilidade de se interpretar, levando a transformações da experiência. O microtrauma é estático, cego, surdo e mudo, não é constituído por identificações projetivas, as quais um analista atento é capaz de escutar como comunicação. Os microtraumas não levam a mudanças, a não ser que o analista, a posteriori, intua a atuação da dupla.

2.9. Cesuras são movimentos dinâmicos

E então? Investigue a cesura; não o analista, não o analisando; não o inconsciente; não a sanidade; não a insanidade. Mas a cesura, o vínculo, a sinapse, a (contra-trans)ferência, o humor transitivo-intransitivo.14 Bion (1977, p. 56)

As microcesuras são movimentos, formam vínculos, interfaces, sinapses, encontros↔desencontros. A partir delas pode-se alcançar a dimensão do “splitting dinâmico”, característico da posição esquizoparanóide, na qual pode haver intercâmbios via identificações projetivas. As cesuras têm duas faces: de um lado, há o registro da ruptura, fruto da assimetria de funções, papéis, sexos, etc. e, do outro, há o registro da continuidade, que possibilita transformações que podem seguir em direção a O.

O paciente (citado em 2.1) que calou sua sexualidade e ficou preso no splitting estático por quase dois anos, ao publicar seu “estranho sonho” e este ser acolhido pelo analista, possibilitou o movimento de microcesura – e a assimetria foi restabelecida.

O mecanismo do splitting estático está representado – de forma magistral – numa tela de Lucian Freud, O ateliê do artista, de 1943. Ali, não há um psiquismo coeso para receber o impacto do objeto-bizarro, que ganha volume fantasmagórico no ambiente. Na cena ficam apenas restos esvaziados: xale, chapéu e assento para uma mente incipiente. O microtrauma seria a re-ação da personalidade sem capacidade de ação, um corolário defensivo da personalidade sem defesas.

A posição esquizoparanóide tem função de “filtro”, com o qual o paciente poderia lidar com a adversidade, movimentos gerados pela experiência com o analista. Com a falha dessa função, a personalidade não adquire vigor e coesão suficiente para a oscilação PS ↔ D. Conforme Bion (1965/1984c), o pensamento não se traduz em ação, meditação em pensamento, nem um estado de mente se traduz em outro. Há, ao invés, um impacto no vazio que só pode ser intuído: o modelo é o de um buraco negro a extinguir o que foi substancial.

Os microtraumas são reações primitivas do psiquismo incipiente que não dispõe de recursos adequados para lidar com “mudanças catastróficas” (Bion, 1966). Desde Strachey (1934/1969), sabemos que não há “interpretação mutativa” sem movimentos de catástrofes e de cesuras (Caper, 1995). Essa formulação se coaduna com a visão de Bion de que, na parceria analítica, “uma interpretação representa a morte para o estado de mente existente”15 (Bion, 1970).

 

III. Microtraumas. Evoluções da técnica psicanalítica

Evoluções na teoria da técnica psicanalítica dão ênfase à pessoa real do analista, que, junto com o paciente, constitui o campo analítico. Há, portanto, uma mútua e permanente interação, na qual cada elemento do par influencia e é influenciado pelo outro. A mente do analista está profundamente implicada na relação com o paciente. Está exposta continuamente aos elementos beta, às identificações projetivas, assim como à própria e natural oscilação PS PD.

Há cisões fisiológicas (normais) ou clivagens que, dentro de certos limites, deixam fora da sala de análise estados mentais que podem interferir no trabalho com o analisando. Esses sistemas não são suficientes diante das situações que observamos e que clinicamente estamos chamando de microtraumas.

Os microtraumas são movimentos sutis, inconscientes, originários da relação real com o analista. Não são perceptíveis pela dupla no momento de sua ocorrência e estão a favor de manobras da parte psicótica da personalidade que tenta manter a análise numa aparente normalidade, supostamente produtiva, impedindo mudanças catastróficas → criativas. Os microtraumas correspondem a uma iatrogenia16 inconsciente.

Os analistas, como pessoas reais, trabalham com um largo espectro de sentimentos inconscientes que podem, involuntariamente, contribuir para um resultado patogênico ao psiquismo do paciente. Sobre isso, Thomas Ogden nos alerta para o cuidado em relação ao risco da criação de uma doença iatrogênica na qual a capacidade para rêveries é paralisada, ou levada a ocultar-se, dessa forma tornando significativamente menos provável que um processo analítico verdadeiro venha a ocorrer (Ogden, 1996, p. 431).

Assim, ações iatrogênicas podem ser geradas desde um nível microscópico,como a construção de um “falso self”, até um nível macroscópico (Gabbard, 1995). Neste, as ações iatrogênicas podem ocorrer quando o analista envolve o analisando em conluios perversos, como os sexuais, ou quando, por meio de maciças identificações projetivas, o analisando é transformado numa espécie de “duplo” (Bion, 1967) do terapeuta, sendo levado a praticar actings que, manifestamente, o analista não teria como praticar, como a liberação sem contenção de um lado perverso ou psicopático no paciente.

Por ser um ato inconsciente, as conseqüências do microtrauma, na dupla analítica, dependerão das condições internas de cada elemento do par. Se puder se tornar consciente, verbalizado ou compartilhado, seu destino será o das microcesuras com transformações em mudanças criativas. Senão, o microtrauma poderá se ampliar, culminando com o aparecimento da reação terapêutica negativa (Freud, 1923), ou, ainda, promover rupturas, interrupção da análise ou mesmo a estruturação de um “falso self psicanalítico” que impede o paciente de “vir a ser” ele mesmo.

Microtraumas, ao se originarem na mente do analista, em movimento silencioso e inconsciente, põem em relevo a contínua interação entre analista e analisando. Essa interação nos situa neste texto, voltados para o continente, sem perder de vista questões suscitadas pelo conteúdo (Bion, 1962/1984a; 1963/1984b).

Sully Prudhomme, em seu poema “Le vase brisé”, traduz poeticamente o que tentamos expor neste trabalho. Microtraumas nascem assim, de um “toque de leque”, puro movimento, em uma superfície sensível como é o cristal, relido aqui como sendo a relação analítica. No poema parece não haver saída: a fratura leva, ainda que de forma quase imperceptível, à ruptura e à perda da vida que está contida no vaso, caminhando para a estaticidade, para a morte, ou seja, o splitting estático.

Dependendo da intuição do analista, essa fratura no setting analítico pode ser vivida de maneira diferente – o microtrauma pode se transformar em microcesura, vínculo, vida. O exercício da intuição pelo psicanalista, sensivelmente modulada, constitui fator primordial na preservação da sobrevivência do processo analítico. Em clima de esperança realista, permite expansão das dimensões de tempo e espaço da realidade psíquica para futuras investigações psicanalíticas (Sapienza, 1999).

O quadro de Lucian Freud que mencionamos acima, O ateliê do artista – um texto plástico, visual – põe em cena um setting esvaziado, no qual um objeto bizarro ganha proporções fantasmagóricas: há o vazio estático e morto; no quadro, entretanto, objetos concretos definem uma anterior presença viva, a mostrar que o vazio pode ser transformado se aí se investir o humano com sua condição de pensar. Nessa direção, o objeto bizarro pode ser fonte de criação, uma proposta de continuidade do trabalho analítico em cuja tela a intuição “enxerga” além do que a vista alcança.

 

Referências

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Recebido em 23.6.2006
Aceito em 14.11.2006

 

 

1 Trabalho apresentado na IV Jornada Psicanálise no Divã (5.11.05, auditório da SBPRP) e no XX Congresso Brasileiro de Psicanálise – Poder, Sofrimento Psíquico e Contemporaneidade (14.11.2005, Brasília).
2 Membro efetivo da SBPSP; membro titular e analista didata da SBPRP.
3 Candidata da SBPRP.
4 Candidato da SBPSP; candidato convidado SBPRP.
5 Membro associado SBPSP e da SBPRP.
6 Membro associado da SBPRP.
7 Membro associado da SBPRP.
8 Tradução de Magaly da Costa Ignácio Th omé, colega a quem expressamos nossa gratidão.
9 Rosenfeld (1987): “O analista tem de considerar o quanto de sua experiência perceptiva deve ser comunicada ao paciente, bem como de que forma e em que momento”.
10 Microcesuras são movimentos dinâmicos que ocorrem na sessão de análise e que são potencialmente geradores de transformações. Trata-se de movimentos nos quais a assimetria de funções entre analista e analisando está presente e há dor psíquica envolvida. Microcesuras rumam para “mudanças catastrófi cas” (Bion, 1966).
11 A “reversão de perspectiva” é um conceito introduzido por Bion para designar o fenômeno pelo qual o paciente mantém com o analista “um acordo manifesto e um desacordo latente”: ele parece concordar com as intervenções do analista, mas no fundo as desvitaliza, revertendo seu signifi cado para suas próprias premissas (resistências).
12 O paciente X é o nono filho da família e viveu um dos mitos de ser o filho caçula: não se sentia ouvido, nem considerado. Sentia-se sem “espaço”. Predominava nas sessões uma rebeldia às regras do setting, como horários etc., criando impasses.
13 A. Ferro (1995): “[...] é o próprio paciente que se coloca freqüentemente como aquele capaz de fazer com que o analista reencontre o contato com o próprio funcionamento mental, e somente quando este volta a ser adequado pode-se retomar o caminho compartilhado”.
14 “So...? Investigate the caesura; not the analyst not the analysand; not the unconscious; not sanity; not insanity. But the caesura, the link, the synapse, the (counter-trans)ference, the transitive – intransitive mood” (Bion, 1977, p. 56).
15 Ou quando ♀ + ♂ se tornam ♀ ♂.
16 A palavra iatrogenia tem origem grega (yatros significa “médico”) e, acrescida do étimo “gênese”, revelanos sobre doenças que têm origem em inadequada conduta médica.

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