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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.41 n.2 São Paulo jun. 2007

 

RESENHAS DE LIVROS

 

 

Claudia Starzynski Lima*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

 

 

A Babel do inconsciente: língua materna e línguas estrangeiras na dimensão psicanalítica

Jaqcqueline Amati-Mehler, Simona Argentieri, Jorge Canestri. Rio de Janeiro: Imago, 2005, 335 p.

“Ser bilíngüe é uma deficiência ou uma riqueza?” Com essa indagação, os autores dão início a este livro que constitui uma verdadeira “Viagem a Babel”, título do primeiro capítulo — viagem que é uma exploração de como se desenvolve, no plano endopsíquico, o diálogo interno do indivíduo bilíngüe ou polilíngüe que pensa, fala, escreve e sonha em mais de uma língua. Para tanto, é feita uma distinção importante entre pessoas poliglotas, que adquirem outras línguas além da língua materna, já estabelecida, e os bilíngües ou polilíngües, pessoas que devido a fatores históricos, culturais ou circunstanciais encontram-se mergulhadas desde o nascimento em um emaranhado de línguas, no qual uma mesma coisa é simultaneamente representada por diversas palavras provenientes de diferentes idiomas. Que destino toma cada uma dessas línguas na composição do repertório do sujeito? A exposição a diversos sistemas lingüísticos é um fato gerador de dificuldades ou um patrimônio de inestimável valor? Dentre as várias línguas, qual delas vem a se constituir e ser designada pela pessoa como língua materna? Na situação específica da clínica psicanalítica, como se articulam na mente do paciente polilíngüe os caminhos da livre associação? Alguma dentre as várias línguas permanece como uma linguagem específica que veicula as lembranças da infância ou as emoções primitivas? Quais as implicações do encontro entre um analista e um analisando cujas línguas maternas são distintas e no qual a análise feita numa língua que é materna apenas para um deles? Ou numa segunda língua para ambos? São muitas as questões colocadas, não necessariamente com o intuito de serem respondidas, mas para servir de guia a uma discussão abrangente.

Os autores se propõem também a abrir uma discussão com outras disciplinas sobre as formas com que se aprende e se esquece uma língua, sobre as motivações inconscientes pelas quais algumas pessoas aprendem com tanta facilidade um novo idioma, enquanto outras não conseguem vencer a inibição tenaz e mortificadora de se exprimir numa língua que não seja a materna. O campo é vasto, terra fronteiriça entre numerosas e variáveis abordagens: histórica, sociológica, semiótica, lingüística, psicológica. Essa exploração da dimensão psicanalítica do polilingüismo se dá então na intersecção com outras disciplinas.

Desde seus primórdios, a história da psicanálise está envolvida com a presença de muitas línguas. A Viena de Freud era um centro cosmopolita, e na comunidade judaica o polilingüismo e o poliglotismo eram um fenômeno acentuado. Muitos daqueles que formaram o grupo que inicialmente se reuniu em torno de Freud fizeram análise em outra língua que não a língua – entre eles, Max Eitington, Helene Deustch, Margareth Mahler, Marie Bonaparte e Sándor Ferenczi, além dos muitos analistas que vinham dos Estados Unidos e da Inglaterra para se analisar com Freud e eram atendidos por ele em inglês. Posteriormente, nos tempos difíceis do pós-guerra, os pacientes que pagavam em dólar eram muito bem-vindos, e a língua do trabalho cotidiano de Freud era mais o inglês do que o alemão. Entretanto, apesar dessa presença de outras línguas no trabalho psicanalítico desde sua origem, é muito exígua a literatura psicanalítica sobre o tema da linguagem, exceção feita ao artigo de Freud sobre a afasia e o trabalho de Ferenczi sobre palavras obscenas. Esses questionamentos surgirão com a imigração de grande número de analistas da Europa Central, principalmente para os Estados Unidos, e em grande parte na forma de relatos autobiográficos, quando os analistas passam a se defrontar com o fato de terem de viver e trabalhar em outra língua que não a materna. As vivências de imigração, separação, mudança de pátria e de língua são de fato profundamente envolventes, tanto para o analista como para o paciente.

Questões relativas aos processos de identificação, cisão e integração, repressão e memória passam a ser associadas pelos analistas ao problema da língua. No caso dos autores de A Babel do inconsciente não foi diferente, e muitas vezes, nas discussões sobre o tema em seminários e conferências, terminavam falando em primeira pessoa. Há no livro um interessantíssimo relato pessoal de uma das autoras a propósito de sua convivência, desde a mais tenra infância, com pelo menos quatro línguas: o espanhol, o alemão, o iídiche e o francês; posteriormente o inglês foi a língua da educação escolar e, mais tarde, o italiano veio a ser a língua aprendida na idade adulta, a língua da análise e aquela na qual trabalha analiticamente. Citando a autora:

No meu caso, penso que do ponto de vista afetivo pode ter sido importante que todos falássemos várias línguas entre nós; a passagem de uma língua para outra numa mesma conversa dava-se sem que percebêssemos... como se cada um de nós fosse capaz de encontrar entre as diversas línguas a melhor maneira de exprimir algo. Talvez a separação dos lugares e das pessoas fosse em parte mediada pela linguagem que carregávamos conosco como um sistema defensivo não de todo ineficaz (p. 155).

E adiante:

Voltando à minha experiência pessoal, gostaria de propor uma hipótese, inevitavelmente muito subjetiva, sobre como minha organização poliglota, ou melhor, polilíngüe, da minha primeira infância influenciou minha identidade, inclusive minha maneira de trabalhar; e como esta parte infantil pode ser integrada com as línguas que aprendi posteriormente, em particular o italiano, que representa minha língua analítica, sendo – paradoxalmente – veículo de minha identidade mais madura, embora em contínua relação com os processos primários, meus e de outras pessoas (p. 156).

Mas nem sempre as experiências com o polilingüismo têm esse caráter de integração. Muitas vezes a relação interna com os diversos sistemas lingüísticos está carregada de aspectos conflitantes que determinam a eleição de uma língua em detrimento de outras, com o conseqüente “esquecimento” de algumas das línguas da infância. Na análise de determinados pacientes, a recuperação de uma língua pode ocorrer simultaneamente à recuperação de toda uma área de experiências emocionais. Isso posto, colocam-se várias perguntas: é possível uma análise em que paciente e analista não tenham a mesma língua materna? Quando ambos são bilíngües ou polilíngües, que significado pode ter mudar de uma língua para outra ao longo da sessão? O analista pode tomar a iniciativa de mudar de língua? O que pode comportar a situação em que o paciente não sabe em quantas línguas o analista é capaz de segui-lo em seu percurso associativo? Os autores se valem de inúmeros casos clínicos para expandir seus questionamentos nesse campo.

Além dos casos clínicos, utilizam também o que denominam “casos literários”. Um dos capítulos do livro, “Do mundo dos poetas: o estranhamento como profissão”, mostra como podemos aprender muito com os artistas sobre as dinâmicas profundas do nosso mundo inconsciente. Como o próprio Freud chegou a dizer que não havia nada que tivesse descoberto que já não se encontrasse na literatura, também aqui escritores e literatos como Samuel Beckett, Vladimir Nabokov, Elias Canetti, Fred Uhlman, Amanda Morris Prantera e as vivências de cada um deles no universo das línguas são utilizados de maneira bastante poética para desbravar esse terreno tão fértil.

Outra questão em pauta é o da tradução, da interminável polêmica em torno do tema da possibilidade ou impossibilidade de traduzir. Muitas das dificuldades da tarefa derivam do fato de que ela nos confronta com a incompletude, com a frustração do anseio pré-Babel pela existência de uma linguagem única e pura. Diante dessa frustração, que caminho tomar? O de produzir um texto que se identifique o máximo possível com o original? Ou toda tradução é uma recriação num outro sistema?

A questão é de grande interesse para os psicanalistas no que se refere à tradução da obra de Freud. Em 1989 expiraram os direitos de tradução e edição de suas obras em língua inglesa, fato que incrementou as intensas discussões que já vinham ocorrendo em torno da histórica Standard Edition organizada por James Strachey, com a colaboração de Anna Freud e a aprovação inicial do próprio Freud. Apesar da riqueza e abundância das notas que acompanham a tradução, esse trabalho tem sido amplamente criticado, por substituir uma linguagem coloquial, alusiva e rica em ambigüidades por termos mais definitivos e técnicos que acabam por conferir uma marca ao pensamento de Freud na passagem para a nova língua. Também não se pode deixar de lado o fato de que essa tradução influenciou muitas gerações de psicanalistas. Aqui no Brasil, a tradução para o português da Imago Editora foi baseada nessa versão em língua inglesa, e só agora, a partir de 2005, a própria Imago passou a editar os primeiros volumes traduzidos diretamente do alemão. A partir de 2009, os direitos autorais das obras completas de Freud caem em domínio público no Brasil, havendo a perspectiva do lançamento de outras traduções também do alemão. Assim, a discussão é muito atual para nós neste momento, pois, além dos problemas referentes à tradução inglesa, os autores também analisam as traduções existentes em língua espanhola e italiana, assim como a nova tradução francesa organizada por Jean Laplanche.

Para finalizar, gostaria de citar os próprios autores:

É sempre Goethe (em Bildund und Unbildung organischer Natur) que diz que todo ser vivente não é simples, mas uma multiplicidade; embora nos pareça um indivíduo, “permanece sendo uma ‘reunião’ de seres vivos autônomos [...] [que] se separam – e se procuram novamente”. Nessa dimensão polilógica, o multilingüismo possui muitas valências e muitos destinos: riqueza e multiplicidade, mas também confusão e perda (p. 312).

É um texto realmente encantador para aqueles que queiram embarcar nessa viagem pelo mundo das línguas e da psicanálise.

 

 

* Candidata da SBPSP.

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