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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.41 n.2 São Paulo jun. 2007

 

RESENHAS DE LIVROS

 

 

Luís Claudio Figueiredo*

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Universidade de São Paulo

 

 

Presenças e ausências, parceiras na simbolização

Sonia Curvo de Azambuja
São Paulo: HePsyche, 2006, 216 p.

Criação em análise: o pensamento e o estilo de Sonia Azambuja – são quase trinta anos de escritos que amigos e admiradores da autora recolheram nesta coletânea. Já não era sem tempo, mas antes tarde do que nunca, observa judiciosamente Fabio Herrmann na apresentação. Os assuntos, os contextos e as platéias variaram, mas algumas marcas muito pessoais se mantiveram e se acentuaram ao longo do tempo. Talvez, mais importante do que as idéias tomadas uma a uma, e que nos esclarecem e estimulam nas áreas dos diversos temas trabalhados pela autora, o melhor e mais digno de registro seja a coerência dos escritos, dada pela reiteração de certas posições teóricas e clínicas, desde o primeiro texto de 1978. São essas posições – é esse estilo – que garantem a Sonia Azambuja um lugar especial e muito valioso no campo da psicanálise que se pratica no Brasil. A esse aspecto, voltarei mais adiante. De início, procurei focalizar, antes de mais nada e principalmente, essas posições de base.

O que se pode apreender em todos os doze capítulos é, em primeiro lugar, a liberdade com que Sonia Azambuja evolui pelos meandros da teoria e da clínica e pelas veredas, nem sempre fáceis de transitar, da vida institucional. Seja quando um referencial kleiniano e bioniano pareciam predominar, seja quando o estudo dos textos de Freud veio a ser privilegiado, seja quando psicanalistas “franceses” emergiram no seu horizonte, o que Sonia Azambuja jamais foi é escolástica e sectária. Ao ler seus trabalhos, não saímos com a impressão de ter lido uma kleiniana, uma freudiana ou o que quer que seja, mas de ter convivido com uma psicanalista dotada de um leque de referências suficientemente amplo – e em contínua expansão – para dar conta de sua clínica. Clínica, aliás, entendida no sentido amplo da palavra, o que inclui as produções sociais, culturais e artísticas contemporâneas. As referências “teóricas”, por sua parte, incluem autores contemporâneos da filosofia, da literatura e... da psicanálise. O que se abre e descortina é uma rede sutil e delicada de referências conceituais, posta a serviço de elaborações muito pessoais e singulares, totalmente voltadas para os fenômenos examinados, na medida de seus “objetos”, em proveito do cultivo paciente das relações emocionais e cognitivas com seus “objetos”. Convivência e diálogo, na verdade, são as palavras-chave, tanto no conteúdo quanto na forma desses trabalhos: o que testemunhamos são os encontros e intercâmbios entre autores, entre fenômenos e processos psicológicos, entre a autora e seus ouvintes e leitores etc. Na página 189, lemos: “Muitos dos escritos que produzi foram feitos dialogando com outros escritos de colegas e mesmo com interlocutores ausentes”. Acrescentaria: todos os escritos trazem a marca de sua origem dialógica e colocam em diálogo autores, colegas, filmes, obras da cultura e... pacientes. Como afirma o título, todos esses elementos são parceiros — e são parcerias o que se constitui e se mobiliza nesses trabalhos. Um pensamento e um estilo “femininos”, na melhor acepção do termo, percorrem todas as páginas e finalizam na última linha do livro, sendo também, e por causa disso, um continuado elogio à amizade, que começa na nota de agradecimentos.

O caráter feminino desse pensamento – atributo que, queira Deus, não precisa estar vedado aos homens – também se revela nos grandes temas e motivos de Sonia Azambuja. A tessitura de conceitos associados cria uma espécie de nebulosa em que nossa autora reside e a partir da qual projeta com sutileza seus procedimentos analíticos e os objetivos de sua atividade terapêutica: transformação, expressão, simbolização, expansão, imaginação criativa, tolerância à perda, à separação e à frustração, aceitação da finitude e do conflito. Enfim, uma psicanálise que não desconhece ou renega a dor – e como poderia, mantendo-se psicanalista? –, mas que conserva uma aposta de base nas possibilidades do crescimento psíquico, na esperança de uma vida mais rica, mais vigorosa, mais alegre. Tanto na psicanálise (por exemplo, a da melhor tradição kleiniana, como a Hanna Segal e a Marion Milner dos estudos sobre simbolismo e ilusão), como no campo da antropologia e da filosofia (com o trabalho de G. Durand e de Suzanne Langer), ela procurou e encontrou subsídios importantes para o fortalecimento dessa vertente de seu pensamento. A ênfase na fecundação, na gestação e no crescimento é característica da autora. E quando a morte comparece – e como poderia ser evitado, pela psicanálise, o reconhecimento dos poderes de Thanatos? –, ela o faz de um modo muito peculiar. A citação que Armando Ferrari faz de um texto de Hanna Arendt, e que Sonia Azambuja reproduz e encampa, resume e encerra, no último capítulo, o tom predominante em todos os textos: “Os homens, ainda que tenham de morrer, não nasceram para morrer, mas para recomeçar”. Assim é a psicanálise de Sonia Azambuja: uma via árdua e trabalhosa, mas carregada de esperança para um contínuo recomeço, uma aposta radical na capacidade de transformação e criação do psiquismo, mesmo o mais comprometido em virtude das vicissitudes de sua história e de suas condições.

Justamente porque não se torna escolástica, Sonia Azambuja não cria discípulos fiéis e disciplinados. Justamente porque não faz da linguagem que adota em seus textos um emblema a estampar sua filiação, mas um instrumento para pensar e comunicar-se livremente, Sonia não cria seitas e grupos. Isso lhe dá, no campo da vida institucional, um lugar diferente do que estamos acostumados a reconhecer em pensadores-guias. Sonia Azambuja não posa de chefe de escola ou maître à penser. Vê com desconfiança e preocupação todos os processos que criam tais personagens na formação de um psicanalista e na vida das sociedades de psicanálise. Contrapõe-se a tudo o que faz com que “nos curemos no divã e adoeçamos na vida institucional”. Sublinha o caráter criativo e poético – nada burocrático e repetitivo – da atividade analítica bem constituída e continuamente em trânsito, o que requer um analista que seja ele mesmo de natureza transicional. O que muda, o que move, o que conduz a desenlaces, abre horizontes e propicia transformações, isto, sim, diz respeito à psicanálise, seja como atividade clínica, seja como atividade formadora. Estudar Freud, mas também estudar Melanie Klein, Wilfred Bion, Donald Winnicott, Joyce McDougall, Piera Aulagnier, Armando Ferrari e tantos outros, sim, porém em proveito do que nos trazem de potencial germinativo.

Sonia Azambuja, representando uma maneira de pensar e fazer psicanálise, abrindo mão de certas posições institucionais e grupais a que poderia ter tido acesso, mas que contrariavam suas convicções mais profundas e sua sensibilidade, pôde vir a ocupar este espaço diferente, o lugar de uma inspiradora da criação em análise. Não é um exemplo a ser imitado, mas um chamado a ser ouvido: “Venham! A psicanálise é uma força da vida, da sensibilidade e da razão”, é o que nos dizem todos esses textos. Ao finalizar esta resenha, não posso senão recomendar que esse chamado seja escutado — e, para isso, a leitura dos doze capítulos de Sonia Azambuja é um tônico da melhor qualidade.

* Psicanalista; professor da USP e da PUC-SP.

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