SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.41 issue3Paths of an engaged cientist: "living is dangerous" 24: Comment to Isaias Raw’s interviewShould training analysis be maintained? author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.41 no.3 São Paulo Sept. 2007

 

DIÁLOGO

 

Sonhar a psicanálise: comentário à entrevista de Isaias Raw

 

Dreaming psychoanalysis: comment to Isaias Raw’s interview

 

Soñar el psicoanálisis: comentario a la entrevista de Isaias Raw

 

Ana Rosa Chait Trachtenberg*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora reflete sobre o lugar da psicanálise no mundo do conhecimento – se é uma ciência, uma arte, uma técnica etc. – e se coloca a favor de entendê-la em sua singularidade e em seu caráter revolucionário, tanto do ponto de vista histórico como do ponto de vista do exercício clínico, não podendo ser enquadrada em outras áreas do conhecimento humano.

Palavras-chave: Ciência; Revolução; Sonho; Singularidade; Surpresa.


ABSTRACT

The author analyses the place of psychoanalysis in the world of knowledge: whether it is a science, an art, a technique etc. She favors the understanding of psychoanalysis considering its uniqueness and its revolutionary characteristic, as well as from a historical point of view as from the viewpoint of the clinical exercise, which prevents it from being placed among other fields of knowledge.

Keywords: Science; Revolution; Dream; Uniqueness; Surprise.


RESUMEN

La autora hace reflelxiones acerca del lugar que ocupa el psicoanálisis en el mundo del conocimiento: si es una ciencia, una tecnica etc. Se ubica en el entendimiento de que el psicoanalisis tiene singularidade y caráter revolucionario desde el punto de vista histórico, bien como desde el punto de vista clínico, no permitiendo ser encajada en otras areas del conocimiento humano.

Palabras clave: Ciencia; Revolución; Sueño; Singularidad; Sorpresa.


 

 

Sonhei que a psicanálise era um sonho.

Cada vez meu ouvido dói mais quando ouço expressões como “ciência psicanalítica”, “critérios científicos” para tal ou qual atividade psicanalítica, “diretoria científica” da sociedade psicanalítica, “reuniões científicas” etc. Eu me pego com a pergunta: do que estão falando? A psicanálise é uma ciência? Algum dia foi? Virá a ser no futuro? Lembro das perguntas da população diante da aparição de Superman: será um pássaro, um homem, um avião? O que é a psicanálise? Acaso uma filosofia, uma ciência, uma arte, uma religião, uma técnica, uma forma de vida etc.? Essa lista poderia ser muito, muito longa.

Sei que colegas debatem apaixonadamente sobre o enquadramento que nós, os psicanalistas, deveríamos dar ao nosso… nosso o quê? Instrumento de trabalho? Nossa teoria? Nossa forma de ajudar as pessoas e ganhar a vida? Cansei dessas perguntas, nem sei se valem a pena. Não vou respondê-las, e tampouco é minha intenção provocar polêmica ou uma reação irada daqueles que defendem, com muita fundamentação, que a psicanálise é isto, aquilo ou aquilo outro, na defesa de nosso pai (ou será do pai nosso?), o dr. Sigmund Freud. Deixo essa conversa para os que se entendem bem com os epistemologistas.

Tenho muito respeito, sim, senhor, pelo dr. Freud, por seu pai, por seu avô e também pelos meus, assim como pelas futuras gerações. Me inspira uma particular admiração aquela remota origem rabínica de Sigmund Freud, aquela influência do Talmud (livro de discussão, entre rabinos, da Torá, parte do Velho Testamento), em especial aquela antiga e velha Bíblia exposta no Museu Freud, em Viena. Sabe-se que Jakob Freud presenteou seu filho com uma Bíblia da família, por ocasião dos 35 anos de Sigmund, com a famosa dedicatória, a melitzá (original reunião de frases da Bíblia e do Talmud, criando um novo sentido). A dedicatória diz:

1      Filho que me é querido, Shelomoh,

2      No sétimo dos dias dos anos de tua vida, o Espírito do Senhor começou a te animar

3      e falou em ti: Vai, lê meu livro que eu escrevi

4      e nele irromperão para ti as fontes da compreensão, do conhecimento e da sabedoria.

5      Vê, o Livro dos Livros, do qual sábios escavaram

6      e legisladores aprenderam conhecimento e justiça.

7      Uma visão do Todo-Poderoso tiveste; ouviste e te esforçaste para fazê-lo,

8      e te elevaste nas asas do Espírito.

9      Desde então, o Livro tem sido guardado como os fragmentos das Tábuas

10    em uma arca comigo.

11    Para o dia em que os seus anos chegarem a cinco mais trinta,

12    pus nele uma capa de pele nova

13    e chamei-o: “Brota, ó poço! Entoai-lhe Cânticos!”

14    E o dei a ti como comemoração

15    e lembrança de amor de teu pai,

16    que te ama com perene amor. Jakob filho de Rabino Shelomoh Freid [sic],

17    Na cidade capital de Viena 29 Nisan [5]651 6 de maio [1]891

Um sonho, uma revolução estava prestes a acontecer, sob a tutela de um pai que, com amor, estimulou o mundo das palavras, a confiança no valor do novo, da revolução. E a revolução, para a humanidade, aconteceu. E se partimos daí, do lado revolucionário da psicanálise?

A psicanálise, que nasceu de um sonho, de um alhures obscuro, nos estimula sonhar e sonhar e sonhar. Será esse nosso sonho uma ciência, passível de comprovação? Somos pequenos cientistas com cada um dos nossos pacientes? Nos reinventamos e nos revolucionamos a cada instante?

Sonhamos se ao abrir a porta do consultório ampliamos nossas mentes, à espera do novo, do qual nada ou muito pouco sabemos. Somos revolucionários em disponibilidade para a surpresa nossa de cada dia, para os momentos nossos de paralisia, inquietação, perplexidade e angústia no trabalho diário? E o que somos quando nos perguntamos sobre o que fazer com nossos sintomas que aparecem somente com tal ou qual paciente?

O que somos quando preparamos um trabalho, quando supervisionamos, quando nos analisamos, quando estudamos, quando nos reunimos com colegas para discutir tal ou qual tema? Serão todas elas atividades científicas? O que tem tudo isso de preciso, exato, comprovado, tal como a ciência nos mostra, no seu sentido estrito?

Poderíamos dizer que cada sessão de análise é uma nova experiência, e necessitamos estar dispostos a compartilhar cinqüenta minutos que não se repetirão noutros cinqüenta minutos quaisquer, pois aqueles serão únicos e singulares. Uma sessão é um sonho? Existe um sonho certo e um sonho errado? Existe um caminho definido para interpretar um sonho? E para sonhar?

Desenvolvimentos psicanalíticos pós-freudianos, pós-kleinianos, pós-winnicotianos, pós-lacanianos etc. Novas doenças da alma, doenças vinculares, família, casal, o social – o que é isso? Fazem parte desse sonho renovado e por se renovar, inerente à própria psicanálise, que se pretende em revolução permanente.

Quando recebo notícias sobre as crescentes e valiosas interfaces da psicanálise –psicanálise e arte, e literatura, e ciência, e medicina etc. –, vou pensando um pouco mais em sua cara própria, em sua especificidade, pois, se estamos em interface, temos diferenças, não? A psicanálise tem muito com que contribuir, em várias áreas da cultura. Mas qual é a nossa face?

Também a relação da psicanálise e dos psicanalistas com a comunidade e com sua inserção no social, no aspecto preventivo, através de manifestações e assistência em escolas, em grupos, em conferências para o público em geral, em entrevistas para a mídia, tem nos colocado em outra órbita de entendimento sobre nossa própria identidade.

Qual identidade? Prefiro não saber, prefiro pensar a psicanálise como singular, única e múltipla. Me agrada pensar a psicanálise junto com Manoel de Barros, nosso poeta maior:

Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas leituras não era a beleza das

Frases, mas a doença delas.

Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor, esse gosto esquisito.

Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.

– Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável, o Padre me disse.

Ele fez um limpamento em meus receios.

O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença, pode muito que você carregue para o resto da vida um certo gosto por nadas…

E se riu.

Você não é de bugre? – ele continuou.

Que sim, eu respondi.

Veja que bugre só pega por desvios, não anda em estradas –

Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas e os ariticuns maduros.

Há que apenas saber errar bem o seu idioma.

Esse Padre Ezequiel foi meu primeiro professor de agramática.

 

 

Endereço para correspondência
Ana Rosa Chait Trachtenberg
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
Rua Florêncio Ygartua, 391/404
90430-010 – Porto Alegre RS – Brasil
E-mail: anarosact@terra.com.br

Recebido em 7.10.2007
Aceito em 9.10.2007

 

 

* Analista didata, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre SBPdePA.

Creative Commons License