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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.41 no.3 São Paulo Sept. 2007

 

ARTIGOS

 

Traçados de linhas de memória e de observação da natureza da mente

 

Plans of memory and of observation lines of the nature of the mind

 

Trazados de líneas de la memoria y de observación de la naturaleza de la mente

 

 

Thaís Helena Thomé Marques1

Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora convoca algumas linhas de observação para construir o fio da memória através de materiais clínicos e caminhar em busca da representação de alguns dos fenômenos da natureza da mente, entendendo-a como dotada de complexidade a tal ponto que, somente por artifícios de ordem científica, os modelos, é possível falar de suas partes. Usando principalmente as formulações de Bion, procura expressar a interação entre o senso de existência e o senso de inexistência, ambos relacionados à falta. Na elaboração desses referenciais, chega ao senso de potência e propõe uma tentativa de sair da dicotomia que possam sugerir para assumir a transiência entre eles. Em seguida, faz considerações sobre a percepção de vestígios da presença e da ausência de objetos, ambas mentais e ocorrendo na base das experiências do vínculo emocional, e os relaciona a essas observações sobre o senso de existência e de inexistência ligados à falta.

Palavras-chave: Senso de existência; Senso de inexistência; Senso de potência; Falta; Ausência; Presença.


ABSTRACT

The author summons some observation lines to build the thread of the memory through clinical materials and to walk in search of the representation of some of the phenomena of the nature of the mind, understanding it as endowed with complexity to such point that, only for artifice of scientific order, the models, is possible to speak about their parts. Using mainly the formulations of Bion, she tries to express the interaction between the sense of existence and the sense of inexistence, both related to the lack. In the elaboration of those referential, she comes to the sense of potency and proposes an attempt of leaving of the dichotomy that they can suggest to assume the transience among them. Afterwards, she makes considerations around the perception of tracks of the presence and absence of objects, both mental ones and that happen in the base of the experiences of the emotional bond, relating them to those observations on the sense of existence and of inexistence linked to the lack.

Keywords: Sense of existence; Sense of inexistence; Sense of potency; Lack; Absence; Presence.


RESUMEN

La autora hace uso de algunas líneas de observación para construir el hilo de la memoria, por medio de material clínico, y para caminar en busca de la representación de algunos fenómenos de la naturaleza de la mente, entendiendo a ésta como dotada de una complejidad a tal punto, que solamente por un artificio de orden científico, los modelos, es posible hablar de las partes que la componen. Fundamentalmente la autora usa las formulaciones de Bion y busca expresar la interacción que entre el sentido de la existencia y el sentido de la inexistencia, ambos relacionados con la falta. Para la construcción de esos referenciales, arriba al sentido de potencia y propone una tentativa de salir de la dicotomía que esos referenciales pueden sugerir para asumir lo que Bion denominaba de “trasiencia” entre ellos. Enseguida, realiza consideraciones al respecto de la percepción de vestigios de la presencia y ausencia de los objetos, ambos mentales y que suceden en la base de las experiencias del vínculo emocional, relacionándolos a esas observaciones sobre el sentido de la existencia y de la inexistencia vinculados a la falta.

Palabras clave: Sentido de la existencia; Sentido de la inexistencia; Sentido de potencia; Falta; Ausencia; Presencia.


 

 

O olho, que é chamado janela da alma, é a principal via para que o sentido comum possa, da forma mais copiosa e magnífica, considerar as infinitas obras da natureza. O ouvido é a segunda; ele se enobrece por contar histórias que o olho já viu. Se vocês, historiógrafos, poetas ou matemáticos, não tivessem visto as coisas através do olho, dificilmente poderiam descrevê-las por meio da escritura. E se você, poeta, narrar uma história com a “pintura” de sua pena, o pintor fará com  seu pincel uma outra mais deliciosa e menos árdua de entender. Se você chama a pintura de poesia muda, o pintor poderia dizer que a poesia é pintura cega.

Leonardo da Vinci, c. 1520-1540

 

A palavra falada parece importante apenas por ser invisível e intangível; a imagem visual, de modo similar, é importante por ser inaudível. Toda palavra representa aquilo que não é– uma “não-coisa”; que deve ser discriminada do nada.

Bion, Transformações, 1965

 

A partir das idéias elaboradas por Leonardo da Vinci e Bion contidas na epígrafe, considero que as palavras, tanto as articuladas pela escrita como pela linguagem oral, são insuficientes para expressar muitas das emoções que os nossos sentidos captam e até mesmo para conter alguns dos seus significados, quando estes podem ser alcançados.

No caso da produção de um texto psicanalítico, isso se complexifica um pouco mais, pois as palavras empregadas cientificamente, isto é, grande parte dos termos técnicos que compõem o corpo teórico da psicanálise, muitas vezes não dão conta de expressar o que acontece na experiência emocional, em razão tanto da efemeridade com que as emoções transitam nela como da penumbra de associações que evocam, tornando o sentido vago e difuso. Essa dificuldade nos leva a empregar artifícios de ordem científica, modelos, para comunicar a experiência que temos.

Em Transformações, Bion faz uma referência à dificuldade que temos com o discurso articulado:

É mais fácil aceitar como verdadeiro que alguém não pode entender música ou não pode entender pintura do que aceitar a existência de uma dificuldade semelhante quando se considera o discurso. Mas, às vezes, penso que é assim: o próprio meio do discurso não é compreendido (1965/2004, p. 78).

Em vários momentos de sua obra, ele admitiu o uso da dimensão científico-poética para expressar os fenômenos que acontecem em psicanálise.

Usamos, então, formulações e modelos, idéias em trânsito que, unidas de determinada maneira,2 podem se prestar a representar uma parte da experiência que possa ser de entendimento comum, se não para todos, pelo menos para alguns de nossos pares. Falamos ou escrevemos algo para nos comunicar, todavia, não apenas para expressar aquilo que sabemos ou prover informações. Comunicamos também, e principalmente, para nos constituirmos num vínculo emocional dentro do qual seja possível conhecer mais a respeito de nossa existência.

Dessa forma, escrevo este texto com a esperança de que as palavras, embora por vezes insuficientes como continentes de algumas emoções, possam de alguma maneira ser eficientes tanto para gerar e/ou revelar um vínculo no qual as formas de existência sejam experimentadas, como também para construir significados que a representem. E até mesmo para que sejam eficientes para permitir, se for o caso, que um vínculo, à medida que percebido, possa também ser repudiado.

Há tempos tenho feito um estudo sobre o trânsito da existência emocional e, dando prosseguimento a ele, gostaria agora de investigar mais profundamente certos estados mentais que têm chamado minha atenção, não porque antes não existiam, mas talvez por eu estar em condições de ampliar a possibilidade de observação e o envolvimento com eles.

São estados de mente que só podem ser observados a partir de um vínculo emocional e expressam formas de experimentar a existência, que se dão desde a precariedade do senso3 de existência até um senso de inexistência. O próprio senso de inexistência está a serviço da existência, como uma função. A fim de tentar esclarecer essa questão, farei uma conjetura sobre a experiência emocional, pois imagino que esses estados mentais são a matéria que a constitui, ou, dito de outro modo, a experiência emocional se dá através do trânsito por esses diferentes estados mentais. Em seguida, apresento modelos clínicos, na tentativa de que me auxiliem a sustentar e dar continuidade a essas idéias.

Conjeturo que estamos permanentemente transitando entre diferentes estados de mente no momento da experiência emocional– desde o senso deexistência até o senso de inexistência4, e a maneira como isso se dá pode variar de acordo com a forma como estamos lidando com a falta, pois disso depende a percepção da experiência de estar presente numa relação como um ser único, separado e, ao mesmo tempo, ligado a uma outra pessoa também diferente e única, por um vínculo de intimidade. Acredito que, para aprender com a experiência, é imprescindível alcançar essas percepções. Para isso, a psicanálise tem como objeto de estudo as maneiras que usamos para tornar essa tarefa quase impossível.

Levando em consideração a sensação de falta ligada ao senso de existência, observo que ela, a falta, nos confronta diretamente com a percepção da precariedade emocional; causa-nos dor perceber o quanto somos vulneráveis, incompletos, imponderáveis. Nesse confronto abrem-se alguns caminhos por onde estamos permanentemente transitando. Dentre eles, destaco dois que me são familiares. O primeiro– difícil por ser pedregoso e causar perturbações– é notar a falta e confrontar a precariedade da nossa existência, buscando significados que possam representá-la para que se sustente. O segundo– mais curto e vinculado a uma idéia de conforto– é repudiar a falta negando-a, e, a partir da crença na completude, triunfar sobre ela. Aqui, o senso de inexistência adquire a função de sustentar a existência e, como ela, está a favor de dar continuidade à vida.

Há também um terceiro caminho, o qual diz respeito a outro tipo de senso, o senso de potência, e tentarei descrever como o compreendo. Acredito que essa situação mental tenha sido pontuada por Bion em uma supervisão realizada em Brasília, em 1975, na qual fez um breve apontamento para essas questões, no momento em que falava a respeito da existência do analista e do treinamento ao qual ele é submetido e que o leva a conhecer suas próprias fraquezas e defeitos: “Mas, da mesma forma, pode ser importante resgatar, de dentro, toda essa massa de defeitos, de faltas… que pode existir dentro de nós, algumas qualidades redentoras”.

Entendo as qualidades redentoras a que Bion se refere como sendo as emoções relacionadas a um senso de potência e que são as contrapartes da onipotência, através das quais é possível alcançar, por breves momentos, um senso de existência que vai além do senso de inexistência e da dor provocada pela percepção da precariedade. Penso que essa situação tem alguma equivalência com o que Bion formulou como o estado de mente alcançado pelo místico, “uno com ele mesmo” e potente, no sentido de completo, por se encontrar em contato íntimo com Deus, ou, dizendo de outro modo, em contato com os fenômenos, que têm relação com a verdade última, no sentido kantiano.

Com isso, as qualidades redentoras podem ser entendidas como aquelas emoções que permitem a realização de um senso de potência e, através dele, a confirmação da existência, a partir de traços mentais que nos ofereçam uma configuração emocional específica e única. Isso é análogo ao que chamamos o caráter de uma pessoa, e, nesses termos, estão incluídas todas as condições emocionais ligadas à criatividade, que conhecemos como dons, talentos e os mais variados recursos mentais ligados à sensibilidade e à potência de criar.

Apesar de nos darmos conta de nossas faltas e precariedades, o senso de potência nos possibilita colher algumas emoções, elementos mentais suficientemente perturbadores, em determinada experiência emocional, para seguir em frente na situação de descontinuidade, isto é, para nos transportarmos de um estado mental a outro e realizar algo que advenha da genuinidade de ser único– tornarmo-nos uma pessoa diferente do habitual, aquela que ainda não conhecíamos. Portanto, a descontinuidade se torna o movimento, o trânsito de emoções, que gera vida.

Sem o senso de potência, que é o estado mental resultante das significações daquelas emoções provenientes das qualidades redentoras referidas por Bion, talvez só houvesse a dor insuportável da percepção das faltas e dos defeitos ou a tentativa de evadir-se delas. Quando alcançamos significados para as faltas, também alcançamos um senso de potência que gera a sensação de realização criativa, e ela consiste numa ruptura dos outros sensos, isto é, vai além deles. A partir de experiências momentâneas do senso de potência, é possível tolerar a existência, sem ter de recorrer ou permanecer por muito tempo na inexistência.

Penso que, a partir da consciência de determinada qualidade psíquica, seja ela qual for, chegamos a dar, por um momento, um sentido à vida que pode naturalmente vir a ser uma possibilidade de realização de um potencial.

Se ela acontecer, o momento se configura como aquele em que nos constituímos em uma pessoa única, original. Sendo assim, é provável que o senso de potência tenha mais relação com a pessoa “tornar-se” do que com “conhecer-se”. Podemos, assim, descobrir que somos capazes de realizar tanto uma obra de arte como um assassinato bastante competente.

Usando a grade para avaliar esse tipo de transformação, a realização criativa, penso que ela recai na categoria F6 tendendo a F…n, isto é, um conceito nascido do desenvolvimento dos significados gerando uma ação, equivalente ao que Bion denominou at-one-ment ou “estar uno com” ou ainda “tornar-se”.

A psicanálise e seu método, além de possibilitarem a significação das faltas, são uma oportunidade privilegiada de nos aproximarmos intimamente do senso de existência, também a partir dessas qualidades redentoras. Isso significa que, além de existirmos, podemos continuamente nos “tornar”, segundo Bion refere nas páginas finais de seu livro Transformações, aquela pessoa que ainda, até aquele momento, não pudemos ser.

A esse respeito, um analisando me contou de um momento de satisfação que experimentou quando foi capaz de conversar com o pai e dois irmãos, numa reunião da empresa de que ele faz parte, após muitos anos de tentativas frustradas pela facilidade com que se exaltava. Toda vez que se sentia excluído ou discriminado nas reuniões, isso o remetia a uma velha e conhecida condição, lugar que ele habitara por tanto tempo, desde a adolescência: “o drogado, agressivo e inconseqüente”. Frente a isso, seu único caminho era exaltar-se, o que confirmava o jugo moral de seus pares. Nessas circunstâncias, ele se prestava a ocupar o lugar de alguém incapaz de emitir uma opinião reflexiva sobre os problemas da empresa.

A situação se mostrava em conformidade com o que estávamos experimentando emocionalmente, pois ele conseguiu me contar a experiência com uma certa disposição a fazer aos poucos os ajustes necessários das minhas palavras enquanto eu lhe falava, de modo que elas se tornassem significativas para ele, recorrendo muito pouco a sua velha e conhecida idéia de não ser compreendido. Apontei-lhe essa minha observação.

Por muito tempo ele viveu a experiência de imposição e uso do senso de inexistência. Algo como se um vaticínio fosse atirado em seu rosto: “Você sempre foi e sempre será um drogado, por isso hoje não pode experimentar o senso de existência”. O momento da realização, quando conseguiu conversar e dar sua contribuição, foi a efetivação do senso de potência que rompeu com a inexistência.

Aqui cabe uma possibilidade de indagar sobre o que propõe a psicanálise: sempre em frente, em busca da existência, de ter contato com as faltas, as precariedades, para lhes dar significado? Ou em busca de ser apresentado para a capacidade que temos para a inexistência, para nos livrar de todos os males, das faltas e, quem sabe, até triunfar sobre elas? A psicanálise propõe o trânsito por esses estados mentais?

E ainda: existir e inexistir para quem? Para nós mesmos, para o grupo externo ou interno? O senso de potência depende do grupo no qual se está inserido em determinado momento? Existir como um executivo com direito a voz na reunião da empresa poderia ser inexistência, do ponto de vista do grupo de adolescentes do qual ele fez parte? Pode, a condição de existir e inexistir, ter o dado sensível de como somos capazes de moralizar os conceitos que adquirimos? O que queremos, afinal, cada um de nós, e o que quer o grupo com o qual convivemos, na vida?

Ainda como outro exemplo, pretendo que este texto possa ser, por um momento, a expressão do meu próprio senso de potência para existir como psicanalista na relação com meus pares, fato esse que, dada sua efemeridade, marca a passagem do tempo e anuncia o trânsito contínuo entre estados mentais. Anuncia tanto o fim de um momento como o início de outro na experiência emocional, e, nesse sentido, a pessoa que eu me tornei depois de escrever este texto não é mais a mesma de antes. Não melhor ou pior, apenas diferente.

Na medida em que as experiências pelas quais passamos podem ser notadas como contendo elementos mentais constantemente conjugados, também podem adquirir significados e ser acumuladas na mente, à semelhança do que Bion referiu como “memória sonho”, passando a se transformar em assoalhos, pré-conceitos e conceitos por onde seguir caminhando, a fim de obter novas experiências e dar continuidade à existência, até que a próxima experiência de descontinuidade venha provocar nova ruptura e assim por diante.

Esses elementos mentais ganham corpo na experiência de descontinuidade, uma vez que é de fundamental importância o senso de existência poder ser sustentado nos momentos de ruptura. Porém, essa situação contém um paradoxo: os elementos mentais que alcançam algum significado contêm em si a ruptura e com ela a possibilidade de transitar na descontinuidade. Para existir a ânsia de continuidade, tem de ter havido uma ruptura e, para a ruptura acontecer, tem de ser na continuidade (Marques, 2004).

Os movimentos mentais que compõem a busca do senso de existência são, no meu modo de ver, uma de nossas necessidades primordiais e não podem se dar previamente ao encontro. Acontecem na dimensão do encontro entre as mentes e, mais particularmente, no caso da psicanálise, entre analista e analisando. A experiência emocional torna-se, assim, o elemento gerador do vínculo que anseia por sentido, uma vez que mesmo a preexistência do seio, onde pode estar contido um suprimento de significados, só tem possibilidade de se realizar durante o encontro entre as mentes.

Sem dúvida, essa situação não acontece num espaço discernível. Não se dá num lugar visível e geográfico, mas virtual, onde acontece a tentativa de manter tanto a relação entre duas mentes como a relação inter, entre os vários estados mentais opostos, para que se relacionem e se componham mutuamente: consciente/inconsciente, acessível/inacessível, maduro/imaturo etc.

É importante lembrar que o trânsito pelos vários estados de mente é a representação dos múltiplos aspectos e vértices mentais que permitem que nos aproximemos do que Bion formulou como a aproximação de O ou da verdade última, segundo Kant.

Nesse sentido, o analista vai podendo desenvolver, ainda que precariamente, suas próprias maneiras de fazer apontamentos que incluam a continuidade da busca da existência, tanto a respeito dele próprio e de seu analisando, como também da relação na qual eles estão se constituindo. A relação analítica se faz, então, em três dimensões que acontecem simultaneamente: a do analista, a do analisando e a da relação entre eles.

Depois disso, a próxima tarefa, na verdade bastante difícil, é transmitir ao analisando de forma que ele note e ouça a sua hipótese, para que ela possa ir se encaminhando até a realização de um senso de potência da dupla: a compreensão da experiência pela qual estão passando.

Por parte do analista, o senso de potência tem a ver com o alcance de significado e realização para a função que ele está exercendo no momento; por parte do analisando, alcançar significação e realização para a experiência de ser analisado. Esse é um processo doloroso, em que o trânsito entre a presença e a ausência de duas mentes se torna imprescindível.

A experiência com uma jovem analisanda me vem à mente para tentar dar fundamentação a essas idéias. Pretendo, na medida do possível, descrever a conversa que tivemos de modo consecutivo, como eu a experimentei, e depois desmembrá-la para fins de discussão.

Abro a porta de entrada da sala para recebê-la e ela, ao cruzar comigo, e acredito que antes mesmo de se aproximar fisicamente de mim, olha bem dentro dos meus olhos e me cumprimenta com estas palavras, num tom de voz irritadiço: “Tenho absoluta certeza de que nunca em minha vida vou ler um livro, porque não gosto de ler. Sei que isso é uma questão de gosto e de hábito. E eu não gosto, não tenho hábito e não quero ter! E tenho raiva de quem tem”.

Digo que isso que ela falou lembrou-me uma história: um dos sobrinhos do marinheiro Popeye criou o hábito de não comer espinafre por muitos anos, sem nunca ter experimentado, porque tinha medo de que as transformações que ocorreram com o tio acabariam por acontecer com ele, e de forma tão desordenada e rápida que culminariam no seu envelhecimento e morte prematura. Ela ouvia atentamente e parecia bastante interessada, pois acompanhava o ritmo com “Hãhã!” Quando interrompi, ela rapidamente falou: “Ah! Tudo bem! Eu saco isso! Numa boa! Mas eu tive um treco ruim cada vez que tentei ler um livro, meu peito doeu, eu tremi da cabeça aos pés! Eu passei mal mesmo!”

Então eu lhe disse que pensava que o “treco” era uma coisa que se movimentava dentro dela e que isso poderia ser medo escondido dentro do seu peito, tentando se mostrar. Num tom de voz mais amigável, ela me diz: “Qual é? Medo? De quê? Viaja! Eu vou ter medo de livro?”

Digo a ela algo mais ou menos assim: “Não do livro, mas do trabalho que ele pode te dar e do que ele pode te fazer sentir”. Rapidamente responde a isso: “Não é medo não! Horror! Sinto horror! Posso e vou evitar sentir horror! Eu sei fazer isso e vou te contar como. Eu leio o resumo do livro e fico sabendo da história tanto quanto os que leram”.

Diante disso, falo que parecia que ela estava me dando uma idéia, a de que eu desse a ela, de maneira resumida, rápida e indolor, a fórmula de como ela deveria fazer para não sentir o “treco”, o medo. Prontamente ela responde:“Ah! Idéia eu vivo te dando, não é? Mas… você, parece que acredita que eu tenho que ter todo esse trabalhão e passar esse medão!! Ʌ e se eu estou aqui até agora… quatro anos… é porque de algum jeito eu devo acreditar em você!!”

Agora, caminharei em pequenos passos pela nossa conversa, considerando-a como lugar de passagem onde podemos encontrar amostras, vestígios do trânsito presença ←→ ausência psíquicas no vínculo que estávamos constituindo naquele momento, fossem elas de base sensorial ou emocional.

Inicialmente, no encontro, a experiência mais forte que tive foi com as palavras de re-púdio da jovem, na procura de continuidade para sua existência. Ao cruzar a porta de entrada da sala de análise, antes mesmo de se aproximar fisicamente de mim, olhando-me dentro dos olhos, ela diz num tom irritadiço: “Tenho absoluta certeza de que nunca em minha vida vou ler um livro, porque não gosto de ler. Sei que isso é uma questão de gosto e hábito. E eu não gosto, não tenho hábito e não quero ter! E tenho raiva de quem tem!”

A partir disso, e pensando que, se a sensação de existir diz respeito à busca de significados para a falta, imagino que ela estivesse arranjando um modo de compreender o que estava sentindo naquele momento, já que se encontrava perdida por não entender o que estava fazendo ali comigo, se realmente acreditasse que não gostava de saber e tinha raiva de quem sabia.

A respeito do predomínio da emoção relacionada com a teoria das transformações, Bion formulou a idéia de que “o caráter de uma situação dinâmica modifica-se de acordo com os impulsos emocionais que estejam operando” (1965/2004, p. 82).

Sendo assim, entendi que estava tentando registrar um fato dentro da nossa experiência e dando a ele um determinado valor moral. Juntava, numa conjunção constante, elementos mentais dentro de uma causalidade moral que tinham relação tanto com o vínculo de ligação (H) que ela estava vivenciando, quanto com a sensação (irritação) que estava experimentando em relação a mim naquele momento. Senti que, para registrar o encontro comigo e notar minha presença ←→ ausência tanto quanto o vínculo que estávamos estabelecendo, colhia elementos a partir das sensações que emanavam desse confronto possível entre nós, a respeito da leitura. Ela parecia colocar-se na posição de uma pessoa coagida por mim a gostar de ler, ou, dito de outra forma, precisava da minha autorização para ficar sem ler o livro. Esses eram os elementos que, a meu ver, ela usara para obter algum tipo de sustentação e dar forma ao encontro que estávamos vivendo.

Ao mesmo tempo, essa observação me levou a pensar que existem boas razões para acreditar que é possível passar por uma experiência emocional sem ter havido consciência dela. É preciso lembrar que a consciência à qual estou me referindo é aquela que Freud formulou como a que tem a função de percepção das qualidades psíquicas. Seguindo essa observação, penso que nem tudo o que é vivenciado é percebido conscientemente, podendo apenas ser transformado em bem-estar ou mal-estar, experiências sensoriais ainda sem sentido e, portanto, sem nomeação, mas capazes de dar uma sustentação momentânea, mesmo que precária, à existência.

Cada um desses estados mentalmente sustentados pela sensorialidade– no modelo, é o mal-estar– são para mim nuances emanadas de L e H, sendo a própria sensorialidade uma dessas nuances, qualidade primária, fulcro de uma emoção que pode ou não vir a ser uma qualidade psíquica captada pela consciência (sendo K uma das possibilidades) e levada a termo como qualidade redentora.

Desse modo, senti que minha presença estava relacionada a eu significar para ela, naquele momento, a leitora que impinge a leitura e tem o senso de potência, para que ela pudesse se reconhecer como alguém que se destaca de mim, opondo-se a ler. Tal situação se revelou como a sustentação de um senso de inexistência que se opõe à existência a partir da idéia de igualar a leitura do resumo à leitura do próprio livro, talvez uma produção alternativa de um senso de potência.

De algum modo devo ter levado isso em conta, pois decidi contar a ela uma outra história desse impacto sobre o confronto que estávamos vivendo. Contei-lhe sobre um dos sobrinhos do marinheiro Popeye, que criou o hábito de não comer espinafre por muitos anos, sem sequer ter experimentado, porque tinha medo de que as transformações, as mudanças promovidas pela ingestão do espinafre, acontecessem de uma forma tal que o levariam a envelhecer rapidamente e morrer. Estando ela ouvindo atentamente, emitia um som de concordância e interesse: “Hãhã!”

Nesse momento eu tentava expressar a ela a idéia da sua oposição e tentativa de se destacar e se diferenciar de mim, assim como de poder notar minha presença, mesmo que fosse como a comedora de espinafre e aquela que lhe ofereceria tal risco de transformação. Pareceu-me que ela estava encontrando na história alguns vestígios do vínculo que estava ocorrendo entre nós e disse então: “Ah! Tudo bem! Eu saco isso! Numa boa! Mas eu tive um treco ruim cada vez que tentei ler um livro, meu peito doeu, eu tremi da cabeça aos pés! Eu passei mal mesmo!”

À medida que a experiência de se confrontar comigo como um outro ser estava sendo percebida apenas sensorialmente, como um registro incipiente de uma presença diferente da sua e adquirindo uma qualidade primária de emoção,5 observei que o que estava se passando era muito diferente de ter havido consciência dela, consciência no sentido a que me referi acima. Por outro lado, assim como há diferentes faixas de captação de luz, existem diferentes graus de captação da consciência. Há momentos de captação que são carreados pelo eixo simbólico e os que extrapolam essa faixa, tanto infra quanto supraconsciência, podendo esta última ser a intelectualidade vazia ou, na linguagem de Kant, o conceito vazio, aquele que dispensa a realização através da experiência de percepção das qualidades psíquicas.

Como já formulei em outro artigo (Marques, 2005), considero que algumas qualidades primárias de emoção, as proto-emoções, se prestam para criar uma interface com as qualidades secundárias e simbólicas e assim compor o senso de existência.

Tentando seguir em frente para ligar o que, no momento, eu estava considerando desligado, o sensorial ao emocional, digo à analisanda: “O ‘treco’ é uma coisa que se movimenta dentro de você. Pode ser medo, escondido aí dentro do seu peito, tentando se mostrar”. Parecendo-me mobilizada com o que eu disse, voltou-se para uma reificação do sensorial, provavelmente evadindo-se das emoções que estava experimentando. Fala num tom de voz amigável: “Qual é? Medo? De quê? Viaja! Eu vou ter medo de livro?”

Diante disso, tentei introduzir a idéia de que o medo tem a ver com a notação de um outro, uma outra idéia, um novo olhar. Disse então a ela: “Não do livro, mas do trabalho que ele pode te dar com o que pode te fazer sentir”. Mesmo a existência mantida em determinado momento quase exclusivamente seja pela sensorialidade bruta– sensações e excitações– (bio-logicamente), seja pelo mau entendimento ativo contém o registro da falta (psico-logicamente), que pode ou não ser resgatado e significado pelo analista em alguns momentos, para que possa, então, ser ou não comunicado ao paciente e, se aceito por ele, ser transformado em falta. Nosmomentos em que a falta não é tolerada e, portanto, a descontinuidade não pode ser experimentada, o que pode sustentar a existência e manter sua continuidade é o triunfo sobre a falta.6

Voltando ao momento da sessão, a jovem diz em resposta ao que lhe falei: “Não é medo não!Horror! Sinto horror! Posso e vou evitar sentir horror!” E continua a me contar a maneira como aprendeu a dar continuidade à sua existência, evitando as descontinuidades tão importantes para a mobilização de referenciais que possibilitem o pensamento: “Eu leio o resumo do livro e fico sabendo da história tanto quanto os que leram!” Entendi que ela havia arrumado uma maneira de se apossar do livro sem lê-lo, ou, dito de outra forma, que esperava aprender um modo de estar comigo sem ter o ônus emocional do registro da minha presença e, portanto, também da falta que poderia sentir quando eu me ausentasse emocionalmente, coisa que fatalmente aconteceria.

No capítulo 6 de Transformações, Bion formula:

Caso um universo dado, qualquer que seja, não permita a existência de um significado para o indivíduo, seu narcisismo vai demandar a existência de um deus, ou algum objeto supremo, para o qual ele tem um significado: a partir do qual, supõe-se, ele se beneficia. Em algumas situações, por meio de clivagem, ataca-se a ausência de significado projetando-a para dentro de um objeto. Em psicanálise, o significado– ou sua ausência– é uma função de auto-amor, auto-ódio, autoconhecimento (1965/2004, p. 87-88).

Percebi através dessas observações que, muitas vezes, algumas das estratégias humanas para livrar-se das faltas são efetivas e duradouras, bem como algumas das ações humanas, incluindo o antipensamento, são suficientes para dar significado a elas em sua totalidade por determinado momento. Em suma, mentalmente existimos transitando entre insuficiências, tanto para o senso de existência como para o de inexistência.

A experiência emocional de existir depende, a cada momento, do encadeamento de diferentes sentidos propiciados pela percepção da falta nas experiências de descontinuidade, através da qual cada transformação dos significados pode funcionar como pré-concepção para uma próxima experiência emocional. Frente a situações de falta, somos impelidos a pensar, talvez uma das dores humanas mais evitadas. Outras vezes nos convidam a alucinar, sustentados pelo senso de inexistência.

Nessas condições o senso de inexistência ganha o status de uma função mental que, em atividade, triunfa sobre o senso de existência, passando a ser a única condição de existir.

De acordo com o que senti pelo que a analisanda me disse, tento continuar uma conversa com ela: “Me parece que você está me dando uma idéia, a de que eu te dê, de forma resumida e rápida, a fórmula do que você deve fazer pra não sentir o ‘treco’, medo”. Ela então responde: “Ah! Idéia eu vivo te dando, não é? Mas… você, parece que acredita que eu tenho que ter todo esse trabalhão e passar esse medão!! Ʌ e se eu estou aqui até agora… quatro anos… é porque de algum jeito eu devo acreditar em você!!”

Nesse momento, a meu ver, ocorre um embate análise versus onisciência, com um movimento em direção a essa última.

Agora, gostaria de prosseguir traçando um contraponto dessa experiência que acabei de descrever– caminhar do livro-sensorial, portador de todo mal-estar, em direção à dor-emocional– com uma outra– caminhar da dor-emocional em direção ao livro-sensorial–, a fim de fazer uma comparação momentânea de maneiras de observar a natureza de alguns conteúdos emocionais, como, por exemplo, a percepção da falta.

Rememoro um episódio que me foi contado por uma garota que, numa determinada noite após terminar de ler um livro de suspense, foi tomada de um mal-estar que a remeteu ao pavor, dimensão sensorial das qualidades psíquicas de uma emoção, a ponto de não conseguir se acalmar para adormecer. O que aconteceu foi que seu avô, com quem ela estava naquele momento, teve dificuldade de ajudá-la a dar sentido ao que a garota estava experimentando, devido à intensidade sensorial da vivência na qual se encontrava, e a única possibilidade de trânsito foi o caminho de volta para a corporalidade. Então, numa tentativa de acalmá-la, ele pegou o livro, trazendo-o junto ao peito num forte abraço, e disse: “Deixe esse livro comigo que eu vigio. Vou ficar a noite toda com ele”.

Nessa experiência, observo que a dor mental foi percebida e, embora não pudesse ser suportada emocionalmente, passou a ter uma qualidade primária de emoção, isto é, foi equacionada ao próprio livro (Segal, 1981/1982). A idéia de que o livro, portador de todo o mal, pudesse ser vigiado pelo avô a acalmou, fazendo com que adormecesse e sonhasse. Sonhou que estava com dor de barriga. A partir do momento em que o elemento emocional foi equacionado com o sensorial, isto é, o medo/emoção tornou-se livro, a jovem pôde sustentar um tipo de bem-estar sensorial que possibilitou o sonhar, a volta para a dimensão emocional. A dor de barriga, que no momento anterior representava dor insuportável, se inseriu, a partir do sonho, como uma dor/sensorial/corporal que pôde então ser sonhada.

Segundo Bion, as pré-concepções necessitam de realizações de dimensão sensorial para poderem alcançar a dimensão emocional. Outro caminho é a reificação do sensorial, que se transforma na dimensão corpórea, somente uma presença física. Portanto, a corporalidade é, para mim, a expressão do que não pôde transitar do sensorial para o emocional. Diante disso, observo que há momentos em que a sensorialidade, ou mesmo a corporalidade,7 podem conter mais elementos mentais que dêem conta de evidenciar vestígios de presença do que a subjetividade, ou, dizendo de outra forma, em alguns momentos a presença emocional só pode ser notada a partir da sensorialidade ou mesmo da corporalidade.

No modelo acima descrito, o sonhar com a dor corporal foi transformado numa dimensão sensorial, dimensão esta que se tornou mais próxima da dimensão emocional, que contém elementos mentais capazes de sustentar a existência.

Para dar continuidade às observações sobre o senso de existência e de inexistência ligados à falta e também ao senso de potência, é oportuno tentar relacioná-las agora às questões da percepção ou não da presença-ausência de objetos, ambas mentais, que se passam na base das experiências do vínculo emocional.

A notação da existência mental é difícil de sustentar, a não ser por um curto espaço de tempo, pelo fato de causar dores que, muitas vezes, não estamos aparelhados para reter dentro da mente em determinado momento. Conter por muito tempo, por exemplo, a percepção da separação não é uma tarefa fácil, muito embora seja o trabalho necessário para transformá-la em falta. É ela que a proverá de um sentido, para, então, passar a representar uma pequena parte que seja da experiência emocional em trânsito.

Outras dores são também difíceis de serem percebidas ou, quando o são, de alguma maneira podem ser repudiadas. São aquelas relativas à percepção da passagem do tempo ou as que denunciam nossa impotência e algumas vezes nos fazem dar por certo que não podemos facilmente fazer notar algo ou nos fazer notar a uma outra pessoa em determinado momento. Isso pode acontecer quando a pessoa a quem estamos querendo mobilizar está agarrada ao estado mental anterior, talvez por ser mais conhecido e seguro, aparentemente indolor ou com dores conhecidas, consideradas, portanto, mais fáceis de lidar, negando-as a fim de evitá-las. Essa condição nos remete ao campo do livre-arbítrio, isto é, a pessoa escolhe o que fazer com suas dores mentais, mesmo que não tenha a percepção disso.

Durante a sucessão dos momentos que são experimentados cotidianamente, ocorre que a percepção da falta de objetos, pelo fato de causar frustração, pode não ser notada, tanto porque provoca um sofrimento mental muitas vezes intolerável, como também em razão da sutileza com que isso acontece. O resultado é a crença de que objetos estão sempre presentes e, portanto, não há separação. Como aqui está sendo considerada sua existência na vida mental, naturalmente ela não corresponde à presença e ausência físicas.

Porém, paradoxalmente, tenho observado que somente a presença, em determinado momento, nos leva a lidar com a precariedade das relações e, portanto, com a falta. Esse é o paradoxo, em que a presença nos coloca diante da percepção da ausência, posto ser a experiência do vínculo emocional insuficiente e inefável. Com isso, observo não haver um momento sequer em que a presença possa ser de alguma forma usufruída sem que desvele insuficiências, ausências e faltas, tanto na área do pensamento como do não-pensamento.

Penso também que a aceitação da dinâmica da presença e da ausência de objetos como um fato psíquico da experiência– portanto, como algo que está o tempo todo acontecendo– tem como conseqüência o reconhecimento de tempo e espaço, a percepção do momento e do lugar do objeto ou do conjunto de objetos envolvidos na relação.

A respeito disso, há uma sumária descrição de Bion em Transformações, disponível para nossa compreensão: “Tolerar frustração envolve se conscientizar da presença e ausência de objetos, e daquilo que, posteriormente, uma personalidade desenvolvida vem a conhecer como ‘tempo’ e ‘espaço’ (conforme descrevi a posição onde o seio costumava estar)” (1965/2004, p. 71). Em Atenção e interpretação, Bion faz sobre essa questão uma outra formulação ainda mais significativa:

[…] lugar onde a coisa estava deve ser retomado para esclarecer o domínio onde, na minha experiência, tem significado dizer que um sentimento de depressão é o lugar onde um seio ou outro objeto perdido estava e que espaço é onde a depressão ou qualquer outra emoção costumava estar (p. 12).

Ainda em relação a essa situação, o lugar das pessoas nas relações interpessoais, quando não é ocupado pela própria condição de sermos pessoas separadas, até onde minha visão alcança, tem pelo menos dois desdobramentos possíveis: ser transformado em falta e gerar significado e pensamento ou ser repudiado e passar a ser apenas um lugar vazio, mas com o peso da presença de uma coisa, uma presença concreta. Nessa situação, o lugar onde a pessoa esteve passa a ter mais importância do que a própria presença, não mais necessária.

Como um modelo para isso, há pouco tempo recebi uma pessoa para análise que me contou, no primeiro encontro, a maneira como mantém cultuado o quarto da mãe, já falecida há dez anos. Ele é limpo todos os dias e os armários e gavetas são arrumados quinzenalmente, já que ainda contêm todos os pertences dela. Naturalmente isso teve uma implicação direta em nossa experiência. Entrou em desespero cada vez que foi tocada por algum comentário ou formulação que fiz a respeito disso.

Disse a ela que, segundo minha observação, havia um lugar na sua mente que me pareceu fechado como um túmulo, ao qual até aquele momento só ela pudera ter acesso. Nesse lugar não havia o registro da ausência do outro, mas o lugar em si havia se tornado uma presença concreta e contínua para ela. Em resposta, ela me contou longamente sobre sua ida diária ao cemitério para visitar o túmulo da mãe e conversar com ela.

É possível, através desse modelo, fazer uma abstração de como algumas vezes a notação da existência mental separada se torna intolerável, em razão de ela nos confrontar com a falta e com a ausência, convidando-nos a ocupar o lugar da inexistência. Nesse modelo, talvez a presença filha-mãe seja unitária, sem a notação de haver dois objetos distintos para o campo do pensamento, mas unos para a dimensão de base no vínculo.

À medida que a pessoa existe e tem condições de ocupar um lugar na experiência que está tendo que não seja o da inexistência, essa condição por si só já impõe a percepção da separabilidade e as concomitantes dores relativas à existência. Penso que é essa a razão pela qual a identificação projetiva, do ponto de vista de quem projeta, muitas vezes tem um efeito calmante mais rápido e efetivo do que a sustentação de um pensamento.

Durante a experiência emocional, ocorre que a existência pode ser percebida, ou, então, a pessoa pode permanecer na inexistência e facilitar sua vida, escondendo de si mesma suas dores e evitando a idéia de que cada pessoa é única e separada, ou ainda pode atrair memórias de dor mental já conhecida e não conseguir viver a experiência presente.

Sobre a dor mental da separação, acredito que esse luto dificilmente seja completado, pois somos muito precários em termos mentais para nos separarmos completamente. Nesse sentido, acredito que não fazemos luto, isto é, não completamos a separação, por medo tanto de sermos esquecidos como de esquecer.

Assim, é provável que a inexistência esteja localizada nas áreas onde não nos constituímos mentalmente, onde permanece uma ligação com o lugar em que o objeto esteve, tomado como o objeto em si mesmo. Os físicos chamam esse lugar de “buraco negro”. Esse lugar pode ser o que a pessoa não pôde experimentar de forma significativa anteriormente em termos de emoções, o sentimento que ela teve ou o momento da experiência anterior à falta que se pretende perpétuo.

Quando ocorre o ato de o estado mental da presença ser vivenciado individualmente sem o da ausência, pois eles estão em trânsito contínuo, estamos lidando com ambigüidades ou paradoxos que muitas vezes não se resolvem; estamos diante de elementos que, segundo Bion, caracterizam a coluna 2 da grade,8 por onde o pensamento não pode transitar.

Para tentar colocar um pouco de luminosidade nessas palavras, tantas e tão insuficientes para expressar emoções em trânsito, vou descrever uma experiência com um analisando. Conta 40 anos, é filho único, solteiro e mora com os pais. Pela quarta vez está cursando uma faculdade. Ele fica a maior parte do tempo das sessões sentado em frente a mim, de pernas cruzadas. Sempre elegantemente vestido, com uma boa caneta no bolso e o celular pendurado na cinta, volta e meia me olha com seus olhos de um verde intenso, por cima dos óculos de aros finíssimos, sem mover a cabeça abaixada, voltando em seguida a se ocupar dos vincos da calça e de alguma eventual poeira do sapato. Esses movimentos são incompreensíveis para mim, mas dou-lhes o significado de que ele parece estar em busca de chegar ao vinco da calça perfeito e ao sapato sem uma poeira sequer.

Uma vez ou outra sorri levemente e balança a cabeça lenta e negativamente. Algumas poucas vezes, diz num tom de voz bastante ameno e com olhar sereno: “Não tenho nada pra falar”, e volta a notar os vincos. De minha parte, fico em dúvida sobre como me colocar nesse momento: não sei se existo ou se desapareço. Tenho a sensação de que ele despende muito tempo e tem bastante trabalho para parecer natural para mim e, ao mesmo tempo, de que está fazendo uma espécie de notação de como é, para ele, estar comigo.

O que desejo ressaltar é a contrapartida disso; ele me foi encaminhado por um clínico geral, por algumas vezes ameaçar atentar contra a própria vida, únicos momentos em que, segundo entendi, seus pais puderam compartilhar experiências de emoção com ele, experiências essas de grande pavor. Pensei ser esse o único meio de transformação através do qual pôde ter contato com o que seriam suas emoções, das quais penso que tenha decidido separar-se em algum momento da vida.

Meu pressuposto é que ele não está comigo na dimensão do campo da emoção. Está sozinho, basta-se com sua calça, seu sapato, e apenas está permitindo a minha presença física e sabe que eu não pertenço à sua vida. A unidade “sozinho” se configura em: ele+vinco+sapato; talvez as calças e o sapato não sejam da dimensão de senso compartilhado. Sendo assim, sentindo-me desafiada por ele, quero entrar na sua vida emocional, pois, afinal de contas, veio em busca de análise.

O que se evidencia então, para nós dois, é um grande silêncio negro, sem nenhuma fresta de luminosidade por onde adentrar: a angústia cresce cada vez mais.

A partir daqui, a questão importante que se abre para mim é a seguinte: como produzir elementos mentais ruidosos suportáveis o suficiente para fazer notar a presença negada, minha e dele, diante da ausência tão evidente? Quanto tempo necessitamos ficar juntos, ainda que apenas fisicamente, para que as ambigüidades possam dar lugar às notações? Cinco ou dez anos serão suficientes para gestar condições de se tolerar ser humano? Se não forem, resta-nos a questão mais dolorosa: será que uma vida, dentro dos limites cronológicos de uma vida humana, seria suficiente?

Enquanto ele voltar para as sessões, poderemos ter tempo de tentar criar condições para que ele se encontre emocionalmente comigo e consigo, encontre e note esses elementos mentais que entendo como sendo um retrato que pode ter várias faces, inúmeras representações, desde a palavra articulada a um grito, um lamento, um gemido, um pranto ou mesmo um urro que pode estar contido em um Hã-hã! Ainda um riso desconcertado, um rito facial, ou o silêncio e a imobilidade, um olhar, ou mesmo o desdém. Quem sabe as formas de representação de sua inexistência poderão ser criadas para que ele possa se fazer notar e continuar assim a existir?

O fato é que, com esse paciente, algumas poucas vezes uma face começou a se apresentar como um sonho noturno sumário que o levava a despertar bruscamente, evidenciando olheiras que significaram para mim a expressão sensorial do que poderia estar contido na formulação que fiz sobre uma melancolia em determinado momento, melancolia da qual ele não tinha percepção. Outras vezes seu rosto se enchia de espinhas. E isso com que podíamos contar era muito precário, pois não era notado por ele como acontecimentos ligados às suas emoções. Continuávamos no escuro, sem uma fresta de luz, quando ele me dizia, por exemplo: “Eu não dormi bem, por isso estou de olheiras”. Ou: “Não posso comer chocolate sem que no meu rosto apareçam espinhas”. Ou ainda: “Ontem de noite comi pizza e tive uma indigestão, por isso sonhei”.

Percebi que sua presença emocional era negada ou simplesmente não era notada e que minha presença, expressa, por exemplo, através da curiosidade a respeito do sonho em busca de alguma fresta de luminosidade, começou a incomodá-lo, o que fazia com que se movimentasse de modo a tentar me colocar ausente e a voltar a se acomodar na posição anterior: quieto e no escuro, ausente e só, sem minha presença.

Assim que entrou na sala em determinada sessão, começou a contar um sonho com bastante disposição e fluidez: “Sonhei que havia um carro e eu. O carro estava ligado e não havia ninguém nele. Eu estava do lado de fora, em pé, na traseira do carro. Assim que ele arrancava… vrrrumm… eu batia com a mão na parte superior traseira do carro e ele parava, retrocedendo ao lugar original. Daí ele arrancava mais uma vez e eu batia nele novamente, e ele parava e retrocedia e daí indefinidamente”.

Nesse momento, um tanto por causa da sua disposição de falar, o que não era usual, tive uma sensação de estranheza, algo como se, ao mesmo tempo que ele se mostrava solícito, trazendo material que poderia me ajudar, caso eu fizesse um movimento de arranque, ele poderia me paralisar. A ideogramatização dessa sensação em minha mente se transformou na imagem de um tapa na minha nuca depois de eu abrir minha boca.

Já que tanto a sensação quanto as imagens eram minhas, guardei-as dentro de mim e me pus a observar qual seria o desdobramento da situação. Estando eu quieta, ele me olhou de maneira diferente; seu rosto estava como que em escorço,9 avançando para fora do pescoço e com os olhos arregalados e os lábios comprimidos num bico. Sua face iluminou-se de expressão, talvez esperando que eu dissesse alguma coisa, fosse lá o que fosse. Confesso que fiquei com medo de dar um arranque, pois já estava esperando o tapa, mas não encontrei outra alternativa melhor senão falar: “Você me parece estar esperando que eu diga alguma coisa!” Rápido como uma flecha que sai do arco do arqueiro sagaz, ele disse: “Não, não estou esperando nada”, e todas as rugas de expressão do seu rosto descansaram.

Segundo minha percepção, o momento em que estava se expressando um espaço mental tridimensional (senso de existência), que poderia conter as emoções em trânsito entre nós, sucumbiu. A perspectiva do aparecimento de um conflito e a possibilidade de que por um flash de tempo ele tenha notado a minha presença e as turbulências geradas nele por essa percepção fizeram com que voltasse suas emoções novamente em direção a um meio bidimensional (senso de inexistência). Para mim, isso tem semelhança com a idéia de que o escorço, expresso numa obra de arte, fosse copiado, naturalmente com a exclusão dessa técnica, esvaziando a obra do seu impacto criativo e original.

A partir da experiência para a qual ele estava me apresentando, dei-me conta de que eu estava me sentindo o carro do sonho, ao vivo e em cores, sem o poder de dirigir meus pensamentos e sendo mobilizada a retroceder. Pensei ainda que isso tudo estava se passando em razão de ele estar com muito medo de notar minha presença e também da notação da própria vida, que, no sonho, se apresentava como mecânica e controlável.

Bem, é claro que, à medida que eu arrancava, levava uma espécie de tapa na cabeça e parava, não tendo como avançar. Pensei em dizer a ele que existia entre nós um movimento que gerava medo e que ele tentava ter sob o seu controle para que não fosse muito assustador, mas resolvi esperar, pois o sonho era um movimento doloroso em direção a uma provável localização subjetiva de sua existência e do nosso vínculo. Ele estava me passando uma idéia que me pareceu mais ou menos assim: “Olha, esse é o máximo que eu posso fazer para localizá-la e notar sua presença. Não se mexa! Mantenha-se quieta, quase imperceptível, porque senão será insuportável para mim!”

O senso de existência, quando sustentado somente pela sensorialidade, é muito precário, pela própria impossibilidade de se viver a descontinuidade, o novo. Ao mesmo tempo, é o lugar conhecido, por onde se transita com segurança e que se reconhece.

Antes de interromper, e para deixar registrado agora o significado que tem para mim a totalidade deste texto, quero citar algumas palavras de Antonio Tabucchi em seu romance Está ficando tarde demais, que me parece propor uma bela formulação a respeito desse contexto que discuti:

É por isso, como diria o meu amigo, que escolheram o silêncio as pessoas que na vida de um modo ou de outro escolheram o silêncio porque intuíram que falar, e sobretudo escrever, é sempre um modo de chegar a um acordo com a falta de sentido da vida.

Falamos do silêncio. Entre o que é dito e o não dito está a construção deste trabalho que, nas mãos de um analista, entende que o implícito pode ser a maior escritura. Vivenciar a imagem materializada em signos verbais e não-verbais é o ofício de quem se propõe à interlocução psicanalítica, mas há de haver espaço para transcender o primeiro arranjo e caminhar, de forma transiente, para o inefável, o intangível, sem tocá-lo, mas sempre em sua direção.

 

Referências

Bion, R. Wilfred. (2000). Cogitações. Trad. S. H. Ester & S. C. Paulo. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1991. Título original: Cogitations.)        [ Links ]

______ (2004). Elementos de psicanálise. 2ª. ed. Trad. S. Jayme. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1963. Título original: Elements of psycho-analysis.)

______ (1997). La tabla y la cesura. 2ª. ed. Trad. A. Stella. Barcelona: Gedisa. (Trabalho original publicado em 1977. Título original: Two papers: the grid and ceasura).

______ (2004). Transformações: Do aprendizado ao crescimento. 2ª. ed. Trad. S. C. Paulo. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1965. Título original: Transformations: change from learning to growth.)

______ (1994). Supervisão com Bion. Supervisão apresentada durante a Jornada W. R. Bion, novembro de 1994, Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ). Publicado também em Ide, 27:60-70, 1995.

_______ (1996). Uma memória do futuro– Livro III: A aurora do esquecimento. Trad. Paulo César Sandler. Rev. Ester Hadassa Sandler. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1991. Título original: A memoir of the future 3: The dawn of oblivion.)

_______ Atenção e interpretação.

Carreira, N. A. J. E. (2000). Os escritos de Leonardo da Vinci sobre a arte da pintura. Brasília: Editora da UnB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado.

Cumming, R. (1996). Para entender a arte. São Paulo: Ática. (Trabalho original publicado em 1995. Título original: Art — Annotated Guides.)

Freud, S (1980). Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Trad. J. Salomão. Vol. 12. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1911.)

Segal, H. (1982). A obra de Hanna Segal: Uma abordagem kleiniana à prática clínica. Trad. Eva Nick. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1981. Título original: The work of Hanna Segal: a Kleinian approach to clinical practice.)

Houaiss, A. (2001). Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva.

Marques, H. T. Thomé (2004). Conjecturando a expressão dos estados mentais primitivos na relação analítica. Revista Brasileira de Psicanálise, 38(4):867-883. (Trabalho original publicado em 2003.)

______ (2005). Observando o trânsito da existência. Trabalho apresentado em Reunião Científica da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto, 1/4/2005.

Shakespeare, W. (1969). Obra completa. Tragédias. Hamlet, Príncipe da Dinamarca. Vol. 1. Rio de Janeiro: Nova Aguilar. (Trabalho original publicado em 1623.)

Tabucchi, A. (2004). Está ficando tarde demais. Trad. Ana L. R. Belardini. Rio de Janeiro: Rocco. (Trabalho original publicado em 1943. Título original: Si sta facendo sempre più tardi.)

 

 

Endereço para correspondência
Thaís Helena Thomé Marques
Rua Dr. Granadino de Baptista, 412– Senador Salgado Filho
17502-180– Marília SP– Brasil
Tel.: +55 14 3454-1637
E-mail: thmarq@terra.com.br

Recebido em 4.9.2007
Aceito em 29.9.2007

 

 

1 Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto SBPRP.
2 Com isso, quero expressar a idéia formulada por Bion de que o pensamento não evolui por razões de causalidade e sim por transformações, a partir do alcance de vários significados.
3 Segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, a palavra “senso” refere-se à capacidade de sentir ou de apreciar, à sensação.
4 A discussão sobre o senso de existência e o senso de inexistência ligados à falta está contida no trabalho “Observando o trânsito da existência” (T. H. T. Marques, 2005).
5 Para fi ns de melhor entendimento dessa situação, conjeturo que, assim como das cores primárias é possível abstrair as secundárias, a emoção também tem qualidades primárias e secundárias, gradações sutis quase imperceptíveis. Nesse sentido, o tremor nas mãos equivale ao esmaecimento de uma emoção, por exemplo, do temor primordial, captado mentalmente. A meu ver, e talvez do ponto de vista do psicanalista no momento em que está trabalhando em direção à mente do analisando, a sensorialidade, nesses casos, pode ser vista como a expressão do esmaecimento de uma intensidade mental, do mesmo modo como a cor rosa é o esmaecimento da vermelha. Assim sendo, as emoções podem adquirir, transitoriamente, qualidades de dimensão corpórea, sensorial e emocional, dependendo da suportabilidade à dor mental. Destaco um trecho de um diálogo de Hamlet que contém elementos do que estou tentando expressar, uma vez que essas formas de captação das gradações emocionais, a meu ver, não acontecem de forma hierarquizada. Quando Guildenstern pergunta a Hamlet a respeito da loucura, este lhe fala: “Só fi co louco com o nor-noroeste; quando o vento é do sul, posso distinguir um falcão de uma garça” (Shakespeare, 1623/1969, p. 562).
6 Sobre isso, Bion formulou em seu texto Cesura a seguinte idéia: “Muitas aparências se salvam pelo infortúnio que as converte em ruína triunfante”.
7 Segundo o Dicionário Houaiss, sensorialidade é a capacidade de apreensão pelos sentidos, a capacidade de percepção a partir dos sentidos; condição de perceber; o uso dos sentidos para a percepção; a dotação dos sentidos capazes de garantir a percepção. Corporalidade é a capacidade que o ser vivo tem de delimitar sua presença física no espaço; assunção de um corpo, materialização como referência para si e para outros. Em Uma memória do futuro, Bion apresenta um diálogo entre Soma e Psique que me parece signifi cativo, a respeito dessa questão: Soma: Esta é a única linguagem que você entende.

Psique: Esta é a única linguagem que você ouve. Tudo o que você fala é dor. Soma: Você só respeita dor ou a falta dela. Só consigo te transmitir alguma coisa quando uso a linguagem direta da dor.
[…]
Soma: Eu me resolvo. Se você tivesse um pingo de respeito pelos meus sentimentos e fi zesse o que eu sinto em você, não estaria metido nessa confusão (Bion, 1991/1996, p. 8).

8 No início do capítulo 5 de Transformações, Bion formula: “Ainda que ‘ausência’ e ‘presença’ sejam, individualmente, características da coluna 2 […]” (p. 70).
9 “Escorço” signifi ca um desenho ou pintura que representa objeto de três dimensões em forma reduzida ou encurtada, segundo as regras da perspectiva. Caravaggio fi cou famoso por sua maestria na técnica do escorço, a ilusão de que um objeto ou parte do corpo se projeta diretamente para fora da tela. Sua obra A ceia em Emaús contém vários exemplos de escorço (R. Cumming, 1995/1996, p. 49).

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