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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.41 n.3 São Paulo set. 2007

 

INTERCÂMBIO

 

O analista trabalhando: modelos e teoria da técnica no momento atual1

 

The analyst working: models and theory of technique in present time

 

El analista en su trabajo: modelos y teoría de la técnica en el momento actual

 

Fred Busch2

Instituto de Psicanálise da Nova Inglaterra, Leste
Instituto de Psicanálise de Boston
Instituto de Psicanálise de Massachusetts, Estados Unidos

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Ter capacidade de insight, e não apenas insight, é apresentado como objetivo central de um novo modo de pensar sobre a técnica psicanalítica. Ele se baseia na observação de que o que muda em psicanálise não é o que os pacientes pensam, mas, sim, o modo como eles pensam sobre o que pensam. São apresentadas várias metáforas que apreendem esse novo modo de trabalho.

Palavras-chave: Insight; Capacidade de insight; Técnica psicanalítica; Auto-observação; Pensamento Pré-consciente.


ABSTRACT

The goal of insightfulness, rather than insight, is presented as central to a new way of thinking about psychoanalytic technique. It is based upon the author’s observation that what changes in psycho­analysis is not what patients think about, but rather how they think about what they think about. Several metaphors are presented that capture this new way of working.

Keywords: Insight; Insightfulness; Psychoanalytic technique; Self-observation; Preconscious thinking.


RESUMEN

El objetivo de tener capacidad de insight, en vez de apenas insight, lo muestra como central en una nueva manera de pensar la técnica psicoanalítica. Con base en la observación del autor sobre lo que muda en el análisis no es lo que los pacientes piensan, más si el modo como ellos piensan sobre lo que ellos piensan. Muestra varias metáforas que aprehenden este nuevo modo de trabajar.

Palabras clave: Insight; Capacidad de insight; Técnica psicoanalítica; Auto-observación; Pensamiento pre-consciente.


 

 

Não podemos ter uma teoria da técnica psicanalítica a não ser que saibamos qual é a nossa teoria de cura. Portanto, iniciarei com o que considero uma transformação essencial no tratamento psicanalítico: a capacidade de ter insights (Sugarman, 2006). É diferente do insight que um paciente possa ter a respeito de determinado conflito ou traço de caráter. Ou melhor, ela inclui uma série de desenvolvimentos na capacidade de pensar psicologicamente que só ocorre em psicanálise, a qual inclui capacidade de auto-observação, auto-reflexão, autoquestionamento e auto-análise– termos que freqüentemente fusionamos. Green (2005) refletiu sobre isso da seguinte forma: “o objetivo de uma interpretação não é produzir insight diretamente, mas, sim, facilitar o funcionamento psíquico que pode ajudar o insight a emergir”.

Embora coerente com a teoria clínica, minha crença na importância do desenvolvimento da capacidade de insight como um fator de cura significativo em psicanálise baseia-se na minha observação clínica, repetida inúmeras vezes, de que o que muda em psicanálise não é o que os pacientes pensam ou sentem, mas como os pacientes pensam sobre o que pensam, e como se sentem a respeito do que sentem. Basicamente, nós não mudamos fantasias inconscientes fundamentais, dissolvemos conflitos inconscientes nem erradicamos medos básicos. O que ocorre em psicanálise– e nenhum outro tipo de tratamento pode fazer essa afirmação–é uma nova habilidade de produzir processos de pensamento mais altamente desenvolvidos para dar conta de conflitos e fantasias inconscientes.

Sob a influência de conflitos e fantasias inconscientes, a mente de um paciente trabalha como a mente de uma criança de três anos que acorda de um sonho ruim. A criança está totalmente imersa na crença do sonho, assim como nossos pacientes estão imersos em percepções baseadas em conflitos e fantasias inconscientes. Como ocorre com uma criança que acorda de um sonho, os sentimentos e pensamentos de nossos pacientes, ao iniciar o tratamento, são a sua realidade, não existe outra. Através do nosso trabalho psicanalítico, nós ajudamos os pacientes a conseguir uma distância necessária dessa posição, de modo que seu mundo interno se torne menos assustador. Essa afirmação apresenta semelhanças com o ponto de vista de Ferro, para quem a psicopatologia resulta de “uma falha do desenvolvimento mental” que deixa os pacientes subjugados a estados mentais primitivos e liga o processo terapêutico à capacidade gradual de o paciente fazer auto-reflexão.

Segue-se um exemplo comum. No primeiro ano de tratamento, um paciente tem a impressão de que percebe que o analista parece estar com problemas. Devido à sua história, o paciente sente que o analista não vai querer que ele perceba a expressão perturbada e, assim, passará a sessão evitando com todo cuidado qualquer indicação do que está prioritariamente em sua mente. No terceiro ano de análise, o paciente pode fazer a mesma observação, mas, então, passar grande parte da sessão no porquê teria focalizado aquele aspecto da expressão do analista. O que mudou? Não foi a observação! O paciente ainda está voltado para a mesma expressão do analista. Entretanto, mudou a habilidade de o paciente considerar o pensamento na presença do analista, sem sentir medo. Isso lhe permite pensar, refletir e lidar com esse pensamento de modo livre, que permite a expansão da mente em lugar da restrição.

É por isso que considero as palavras do analisando “Eu percebi”, assim como suas múltiplas variantes e elaborações (“Eu me peguei pensando”, “Eu imagino” etc.), como alguns dos momentos mais importantes no tratamento psicanalítico.Elas podem indicar, mesmo que só por um momento, uma mudança profunda na relação do analisando com seus próprios pensamentos e sentimentos (isto é,o paciente não está apenasvivenciando seus pensamentos e sentimentos, mas também refletindo sobre eles). Duas mudanças principais são anunciadas por esse desenvolvimento da capacidade de auto-reflexão. Nesse momento, o paciente não é mais o receptor passivo de experiências (internas e externas), e sim o observador ativo, potencialmente capaz de fazer escolhas. Pally e Olds (1998) associaram essa mudança à diferença entre um gravador de vídeo com e sem fita. Sem uma fita, a pessoa só permanece com as imagens passageiras à medida que elas ocorrem. Com uma fita, a pessoa pode estudar, rever, voltar ao início de uma seqüência de qualquer reação.

No tratamento psicanalítico, vemos essa diferença na relação do analisando com seus próprios pensamentos, quando está no início e no final de um tratamento bem-sucedido. No início, a maioria dos pacientes tem a experiência de seus pensamentos e sentimentos como eventos reais momentâneos (ao dizer: “Eu estava triste ontem”, ele mergulha de novo na totalidade desse sentimento). Num período posterior do tratamento, o paciente pode vivenciar uma afirmação assim como uma experiência que pode ser vista sob vários ângulos. Pode-se pensar nela, falar sobre ela e lidar com ela de vários modos a fim de compreender a que se refere aquele sentimento e o que poderia significar dizer aquilo para o analista. Mediante o desenvolvimento de uma capacidade de auto-observação, um sentimento imutável se torna potencialmente o ponto de entrada para possibilidades múltiplas, e seus efeitos liberadores são um ingrediente crucial em psicanálise.

A segunda mudança inerente à capacidade de o paciente se auto-observar é a habilidade de o paciente modular a tendência à ação. Os pacientes vêm até nós aprisionados em atuações repetitivas, de longo tempo e inconscientes (Freud, 1914). Essa é uma das tendências mais destrutivas da neurose. Assim, a segunda mudança importante inerente às palavras “Eu percebi” é o movimento da inevitabilidade da ação para a possibilidade de reflexão (Busch, 1999). Um paciente perceber que suas palavras e seu tom de voz parecem ásperos é, em potencial, a exploração inicial para o porquê de se sentir desse modo, e não um aumento progressivo dos sentimentos.3 Não se examina o precursor da ação sintomática.

Eric, um paciente próximo do fim de sua análise, inicia uma sessão de modo confuso. Referências a pessoas e lugares estavam ausentes, as associações pareciam divagar em várias direções, preposições eram deixadas de lado e sentenças não eram concluídas. Depois de algum tempo, Eric foi capaz de observar que seu modo de falar remetia ao início do tratamento. Naquele momento, compreendemos tal maneira de falar como um desejo de que eu pusesse em ordem as confusões de Eric, e o significado desse sintoma girava em torno de gratificação narcísica e hostilidade.

Depois dessa observação, as associações de Eric se dirigiram ao dia anterior, no trabalho. Eric saiu para pegar um copo de café e, ao retornar, percebeu o conteúdo de seu copo de café anterior derramado no chão, formando um caminho desde a mesa até a máquina de café. Por um breve momento pensou em deixar a sujeira para a faxineira, porém, como os sinais reveladores o identificariam de imediato como culpado, decidiu limpar ele mesmo. Sentiu-se irritado por ter de limpar a confusão, mas, enquanto o fazia, começou a se divertir com “aquele longo rastro de sujeira marrom delineando meus movimentos”. Eric se pegou pensando sobre o seu humor antes da passagem pela situação do café, e percebeu que estivera irritado. Ficou imaginando por que, e riu quando lhe veio o pensamento: “Eu gastei a última hora arrumando as confusões dos outros”. Seu humor se aliviou depois disso. Seus pensamentos então se voltaram para uma interpretação que eu havia feito no dia anterior. Ele pensou muito sobre isso, mas não conseguia realmente entender. Eu disse: “Você se sentiu inclinado a pôr em ordem a minha interpretação confusa”. Eric continuou a dizer que até aquele momento não havia se dado conta de como estava irritado com o meu comentário, que ele sentiu ser “confuso”.4

Embora haja muito a ser explorado nessa rica interação analítica, gostaria de enfatizar a capacidade de Eric para ver seu modo de falar como um evento mental. Ao fazer isso, ele tem acesso a numerosas lembranças, sentimentos e pensamentos, enquanto todo o seu humor se altera. Suas associações nos levam a ver como a transferência inicial na sessão (“Eu quero que você ponha em ordem as minhas confusões”) foi estimulada pela reação dele à minha interpretação do dia anterior, que ele sentiu como uma verdadeira confusão que teve de arrumar ele mesmo. Outro paciente, sem essa capacidade, poderia ter passado a sessão irritado com o quanto tem de fazer pelos outros. Vejo isso como um exemplo típico do momento em que o paciente desenvolve a capacidade de auto-observação. Não são as fantasias inconscientes fundamentais do paciente que mudam; elas permanecem intactas, prontas a serem estimuladas (apesar de menos altamente catexizadas). O que muda é a capacidade de o paciente considerar seus pensamentos e sentimentos como eventos mentais.

Desse modo, ele pode ganhar acesso a seus pensamentos como sendo motivados inconscientemente. Entretanto, quero deixar claro que a capacidade de observar a si mesmo é resultado de um trabalho analítico considerável. Além disso, é uma capacidade que está sujeita à regressão, de modo que, uma vez desenvolvida, nunca estaremos seguros de que ela estará sempre disponível.

 

Técnica

Para demonstrar como vejo a técnica guiada pelas transformações que descrevi acima, apresentarei três metáforas que definem de modo geral a minha técnica. Meu guia para ajudar pacientes a desenvolver a capacidade de lidar com pensamentos e sentimentos previamente afastados pela defesa baseia-se em interpretações dirigidas ao pensamento pré-consciente. Considero o pensamento pré-consciente como algo que vai da borda do pensamento inconsciente à borda do pensamento consciente.

 

Trabalhando “na vizinhança” (Busch, 1993)

Como já falei longamente sobre essa metáfora antes, apenas a mencionarei de forma sucinta. Após participar de várias discussões internacionais sobre material clínico, cheguei à conclusão de que somos peritos em compreender as dinâmicas mais sutis de nossos pacientes, porém muitas vezes confundimos isso com a nossa capacidade de ajudá-los. Em resumo, o conhecimento do inconsciente não é particularmente útil ao paciente, a não ser que seja acompanhado da capacidade, no paciente, de adquirir conhecimento sobre o inconsciente. Como o paciente ganha acesso ao seu inconsciente– esse assunto complexo tem tido pouco espaço em nossas técnicas. Se um maestro escolhe uma peça compatível com a força e a habilidade da orquestra que vai tocá-la, a música será bela e a orquestra ficará satisfeita com seus esforços. À medida que se desenvolve o talento da orquestra, amplia-se o conjunto de músicas que podem ser tocadas. Não levar isso em conta conduz a pouca música e a sentimentos infelizes. O que a psicanálise pode oferecer é a capacidade de ganhar acesso à própria mente, e a construção de estrutura que isso traz.

 

Falando com estranhos (Busch, 2006)

Você está no trem de Viena para Zurique quando alguém ocupa um assento no seu compartimento. A pessoa lhe parece interessante, e vocês se cumprimentam de forma breve enquanto ele se senta. Você está interessado em falar com seu companheiro de compartimento, mas, em consideração ao espaço individual do outro, menciona alguma coisa que não compromete nenhum dos dois a prosseguir a conversa, como o tempo ou as multidões na estação de trem. Então você avalia a reação do companheiro para determinar se sua observação foi o início ou o final de uma conversa. Seu companheiro faz logo um movimento com a cabeça, e se vira rapidamente para encontrar o jornal? Ou ele sorri e oferece um comentário? O sorriso é genuíno ou é o sorriso leve de alguém habituado a ser polido? Como você pode ver, ao interagir com esse estranho, estamos o tempo todo avaliando o grau com que ele protege seu espaço pessoal.

Este é um modo de conceituar a psicanálise: a cada momento, há vários estranhos na sala. Tenho a impressão de que as técnicas usadas por muitos de nós assume uma familiaridade maior com estranhos que não haviam entrado na sala, e assim podem nunca entrar completamente. Acho que não damos atenção suficiente para as necessidades que os pacientes apresentam de se protegerem de estranhos que estão dentro deles. Durante toda a análise, a consciência desses estranhos está associada a perigos psíquicos extremos, como auto-aniquilamento, abandono, perda de amor-próprio, castração etc. Isso contrasta com as primeiras crenças de Freud, quando, baseado em sua primeira teoria da ansiedade, ele acreditava que a consciência desses estranhos, por si mesma, reduziria a ansiedade.

 

Contando histórias (Busch, 2003)

Essa metáfora descreve como ajudamos a elaborar ou interromper as histórias de nossos pacientes através do método da associação livre. Como psicanalistas, nós temos sempre lutado para separar a história do paciente da nossa própria história. Acredito que é importante enfatizar essa luta, na medida em que a intrusão do analista nas histórias do paciente é um problema com que se depara o espectro teórico. De fato, se nós permitirmos, os pacientes nos contam suas histórias– em palavras e ações, em suas negações, contradições e intelectualizações, no relato dos sonhos ou não, na expressão de sentimentos intensos ou não, e nas multiformes expressões disponíveis. Nessas histórias, encontraremos por que eles vieram até nós, assim como o caminho da partida. Nesse meio-tempo, eles nos contarão histórias sobre por que não deveriam nos contar histórias, e negarão de modo veemente que haja qualquer história a ser contada. Em outros momentos, os pacientes se sentirão felizes por ouvirmos e compreendermos histórias, mas estarão desconfortáveis por admitirem as suas histórias. Por longos períodos, só poderão contar suas histórias através de um modo singular de ação, linguagem-ação. Em determinado ponto, nós nos tornaremos parte da história deles.

Não há nada que iniba mais a criatividade do processo analítico do que o paciente e o analista acreditarem que descobriram a história do paciente. Embora a psicanálise ajude a identificar histórias-chave que tenham inibido a trajetória de vida do paciente, o processo deveria continuar com um aprofundamento da compreensão de histórias velhas, uma prontidão para compreender histórias velhas configuradas de formas renovadas e a liberdade de identificar novas histórias.

Em resumo, acredito que há transformações psíquicas específicas que ocorrem na psicanálise em torno da capacidade de ter insights e da diminuição da ação. Espero ter conseguido dar uma idéia de como minha técnica é guiada por esses princípios.

 

Referências

Busch, F. (1993). In the neighborhood: aspects of a good interpretation and a developmental lag in ego psychology. J. Amer. Psychoanal. Assn.41: 151-178.         [ Links ]

______ (1999). Rethinking Clinical Technique. Northvale, NJ: Aronson.

______ (2003). Telling stories. J. Amer. Psychoanal. Assn.51: 25-42.

______ (2006). Talking with strangers. Psychoanal. Rev. 93: 463-476.

Green A. (2005). Issues of interpretations: Conjectures on constructions. Presented at the meetings of the European Federation of Psychoanalysis. March. Vilamoura, Portugal.

Pally, P. & Olds, D. (1998). Consciousness: A neuroscience perspective. Int. J. Psychoanal. 79: 971-989.

Sugarman, A. (2006). Mentalization, insightfulness, and therapeutic action. Int. J. Psychoanal. 87: 965-988.

 

 

Endereço para correspondência
Fred Busch
American Psychoanalytic Association
246 Eliot Street
02467-1447 Chestnut Hill MA– USA
E-mail: drfredbusch@comcast.net

Recebido em 5.6.2007
Aceito em 28.8.2007

 

 

1 Apresentado na I Conferência Internacional de Clínica Psicanalítica, Rio de Janeiro, Brasil, 23-25 de novembro 2006. Tradução: Denia Hukai (membro fi liado de Instituto de Psicanálise da SBPSP), com RBP.
2 Ph.D., analista didata e supervisor do Instituto de Psicanálise da Nova Inglaterra, Leste; professor do Instituto de Psicanálise de Boston e do Instituto de Psicanálise de Massachusetts, Estados Unidos.
3 Refi ro-me aqui a uma capacidade conquistada com esforço através da análise, e não a recuo defensivo ante sentimentos muito potentes. Clinicamente, estas se apresentam de modos muito diversifi cados.
4 “Interpretação confusa” corresponde ao inglês “messy interpretation”. Na situação acima, “longo rastro de sujeira marrom” é tradução de “long trail of brown mess”. Mess e messy podem se referir tanto à noção de “sujeira” como de “confusão”, “bagunça”. [NT]

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