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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.41 n.4 São Paulo dez. 2007

 

EDITORIAL

 

A metáfora da ecologia

 

 

Leopold Nosek

 

 

Por que uma revista psicanalítica estaria se propondo discutir a questão ecológica? Não seria indevido nos debruçarmos sobre problemas característicos de outras disciplinas e, no caso, tão incongruente com as preocupações e projetos da psicanálise? Não estaríamos abandonando nosso território próprio, a “realidade psíquica”?

Em primeiro lugar, faz parte do projeto editorial atual da Revista o debate com outros modos de pensar, outras disciplinas, outros campos do saber. Acreditamos que, diante das transformações vertiginosas do mundo atual, temos de fazer face a desafi os novos, encontrar respostas que não temos. Muitas vezes, nem sequer sabemos formular as perguntas necessárias. O difícil não é descobrir a solução, mas montar a equação: defi nir as constantes e as variáveis e, assim, encontrar as incógnitas. Temos muito a nos fertilizar com as refl exões propostas por outras áreas. Podemos inclusive enriquecer nosso universo metafórico – é nesse território que estão as novas realizações, que precisam ser construídas a cada passo da existência.

A repetição de metáforas não só confi gura um mau gosto poético, como põe a perder uma característica dos sonhos: a de não tolerar repetições a não ser sob a égide da morte do psíquico, sob a égide do traumático, sendo portanto de baixa utilidade para pensar e para existir. Sem dúvida, a psicanálise tem muito o que trazer ao debate atual, mas devemos esperar, ter a humildade de aguardar que nos perguntem para ouvirmos e fazermos parceria com outras linguagens. Assim vem ocorrendo a cada número da Revista.

Sabemos, através da nossa clínica, que o saber se constrói em pares. Assim, é como a fertilidade, e eis aí outra razão para que, à parte os textos que se originam no interior da psicanálise, apresentemos uma entrevista com o portador de um outro conhecimento e o comentário de dois analistas convidados, num rodízio que respeita a presença das sociedades integrantes da Federação Brasileira de Psicanálise.

Freud, num trecho sempre citado do seu texto “O ego e o id”, afi rmava que o caráter do ego era um precipitado de catexias objetais abandonadas. Sem que nos embrenhemos nas discussões acerca das traduções de sua escrita, o que isso quer dizer? O ser, o mundo interno, é habitado, povoado por primitivas relações que já não existem. Carrega a marca de uma história, uma existência de amores e paixões que sofreram o destino de sua efemeridade, de sua morte. As maiores paixões ocorrem na infância, pois o corpo e sua circunstância, seu habitat, têm menos trajetos já percorridos no mundo interno e, assim, suas marcas se fi xam com maior intensidade. Cada experiência é radical, pois as pulsões se apresentam num psiquismo sem patrimônio que as atenue. Paixões que, além disso, terão como destino obrigatório uma perda. Como sobreviver?

Aprendemos, também com Freud, que não existe no inconsciente a morte. Assim, só podemos abandonar nossos amores incluindo-os no mundo interno. Este se torna um território povoado por desejos e modos de relação que continuam vivos, trazendo consolo, confl itos entre si, modos de solução que confi guram o nosso “jeito”. Essa sociedade virtual plena de fantasmas tende a ser o modo como faremos face aos novos momentos que temos diante de nós. Se, de um lado, torna preconceituosas as respostas que damos perante novas situações, de outro sua ausência torna o novo impossível, pois seríamos ofuscados pelo brilho da realidade e estaríamos então no território do traumático.

Entre a presença da tradição da cerimônia preexistente e sua ausência tornada realidade, não teremos alternativa a não ser oscilar do mundo das memórias, área da neurose, e sua ausência, área do traumático. Nesse caminho, às vezes toparemos com alguma criatividade, alguma nova solução, alguma realidade. Essa população interior tem um equilíbrio, relações de poder e hegemonia – uma política, portanto. E, para a nossa metáfora de hoje, uma ecologia.

A maneira como pensamos essas questões tem a marca da nossa época. Não faz tanto tempo assim, a natureza era vista como o inimigo a ser derrotado pela cultura. As cidades eram construídas longe do mar, e as fl orestas, cena de habitação das feras e dos selvagens, tinham de ser substituídas por construções humanas, seres supremos da criação. Hoje há outra percepção que todos compartilhamos, mesmo que a origem dos desequilíbrios e sua solução não sejam assim tão consensuais.

Podemos pensar que o mesmo ocorre com nosso pensamento e nossa prática clínica. Se, de um lado, é legítimo nos preocuparmos com a fi nitude e a carência de recursos hídricos no planeta, de outro seria desejável considerar que também não temos reservas indefi nidas de tempo. Torna-se essencial, portanto, a refl exão acerca do melhor uso desse recurso, mesmo que isso nos coloque diante da indesejável angústia de pensar o caráter efêmero da vida.

Se com Freud aprendemos que possuímos todos os mesmos componentes de ser dos nossos pacientes, a visão terapêutica com defi nições de saúde e patologia tem cada vez menos sustentação. Autores como Searles afi rmam que o analista não poderia estar com seus pacientes não fora ele mesmo, de alguma forma, um borderline. Não teria a permeabilidade para a tarefa. Tornamo-nos terapeutas tendo sido pacientes e, poderíamos dizer, continuando a ser pacientes. A agressão merece sua existência, pois sem ela não teríamos defesas. A pulsão de morte faz parte do viver, pois sem a desconstrução de qualidades psíquicas não teríamos a possibilidade de construir o novo. A onipotência é componente da ilusão criativa, e assim por diante.

O que se põe radicalmente diante de nós é a questão da alteridade e a impossibilidade fi nal de sua apropriação. Ela propõe o esgarçamento dos nossos conceitos, ela ultrapassa nossos saberes, ela nos traumatiza em nossa clínica. Esse infi nito pressupõe uma nova ética: a da bondade de permitir a existência do outro. Em vez da experiência de conhecer, a permissão de existir. Em vez da possessão, a acolhida e a hospitalidade ao estranho, ao outro.

Na nossa prática, o convívio com o mistério – aí nosso projeto editorial, nossa busca de fertilidade. Nossa prática limitada terá como cenário a vastidão dos espaços que nos assombram e que devemos comemorar. E vamos, enfi m, à nossa Revista possível.

L. N.
São Paulo, fevereiro de 2008

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