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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.41 n.4 São Paulo dez. 2007

 

DIÁLOGO

 

Paulo Nogueira-Neto: entrevista

 

Interview: Paulo Nogueira-Neto

 

Entrevista: Paulo Nogueira-Neto

 

Paulo Nogueira-Neto, paulistano nascido em 1922, desenvolveu sua trajetória acadêmica na Universidade de São Paulo; graduou-se em ciências jurídicas e sociais (1945) e em história natural (1958), possui doutorado em zoologia (1963) e é professor titular emérito de ecologia geral no Instituto de Biociências. Foi o primeiro secretário da sema/Secretaria Especial do Meio Ambiente (1974-1986), depois transformada em ministério. Foi membro da Comissão Brundtland para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (onu), presidente do Conama/Conselho Nacional do Meio Ambiente, presidente do Conselho de Administração da Cetesb/Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental de São Paulo e presidente da Ademasp/Associação de Defesa do Meio Ambiente, a mais antiga entidade de defesa do meio ambiente do país. Foi também presidente da Fundação Florestal e vice-presidente da sos Mata Atlântica.*

RBP Dr. Paulo, conhecemos um pouco de sua trajetória de primeiro ambientalista brasileiro. Gostaríamos de ouvi-lo sobre sua carreira, sobre sua luta pela preservação do meio ambiente, tema que hoje está em primeiro plano no mundo todo.

PAULO NOGUEIRA-NETO Bem, a essa altura eu me qualifico como um fóssil vivo. Já estou com 85 anos e acompanhei o movimento ambientalista desde o começo. Parte dos parques nacionais já existia desde 1934; na época havia três ou quatro parques, mas nem a expressão “meio ambiente” se usava, e muito menos “biodiversidade”. Quando começamos aqui em São Paulo, em 1953, por aí, havia no máximo uma dúzia de pessoas realmente interessadas no tema – entre elas, algumas preocupadas com a poluição do ar, o que mais tarde daria origem à Cetesb. Já naquele tempo, a última grande floresta ainda existente era a do Pontal do Paranapanema, a mesma região que vive hoje uma situação bastante tensa. Na época, sobrevoei o Pontal e ele era uma floresta única, pertencente ao estado, a terra estava inteiramente coberta de florestas, inteiramente! Era uma maravilha!

O Jânio Quadros, governador naquele período, queria criar lá o que se chamava reserva florestal, quer dizer, oficializar a posse do estado e proteger a floresta. A idéia tinha o apoio dos jornais O Estado de S. Paulo e da Folha de S. Paulo. Na Folha escrevia o Mário Mazzei Guimarães, que quase todos os dias publicava um texto sobre o assunto. Mas, na verdade, o respeitável público, como se dizia antigamente, não ligava para isso, e já havia uma grande pressão para a ocupação da área. No fim o Jânio não conseguiu uma maioria para criar essa reserva. Só foi possível salvar uma parte, que hoje é o Parque Estadual do Morro do Diabo.

A área total de floresta do Pontal era de 150 mil hectares e área que foi salva é de 34 mil hectares. E isso, o que sobrou, escapou por pouco de ser ocupado, porque já havia até data marcada para a invasão. Havia uns quatro ou cinco estudantes de diferentes faculdades – eu era um deles – interessados na preservação da natureza; nós formávamos um grupinho e resolvemos apoiar a idéia do Jânio. Inventamos alguns nomes de associações bem pomposos e mandávamos cartas de apoio em nome delas para os jornais. Nós usávamos uns blocos comuns e, um dia, vimos um deputado fazer um discurso usando uma das cartas. Vendo que a coisa estava ficando séria, resolvemos fundar uma associação verdadeira, e criamos uma entidade que no início se chamou Associação de Defesa da Flora e da Fauna. O primeiro objetivo era a questão do Pontal, mas pretendíamos cuidar de outras coisas também.

RBP Vocês eram todos estudantes então?

PAULO NOGUEIRA-NETO Sim, estudantes! Aliás, eu já estava me formando – me formei em 1945, na Faculdade de Direito da usp – e não havia ainda cursado história natural. Nós formávamos aqui um grupo de uma dúzia de pessoas. No Rio de Janeiro havia a Fundação Brasileira de Conservação da Natureza, que existe até hoje; em Belo Horizonte havia também um grupo de interessados, outro no Rio Grande do Sul e, digamos, um “meio grupo” em Pernambuco. Eram todos grupinhos assim, mínimos, mas nos comunicávamos entre nós. Penso que a época maior de ocupação do solo ainda não tinha terminado; as pessoas não queriam saber de defender as florestas, essa não era uma preocupação politicamente importante. Mas então houve a Conferência de Estocolmo, que foi fundamental não só para o Brasil, mas para o mundo.

RBP Em que ano foi essa conferência?

PAULO NOGUEIRA-NETO Foi em 1972. Dezesseis dos países presentes já tinham instituições governamentais em nível central para cuidar do meio ambiente. O Brasil não tinha nenhuma. Nada! E a delegação brasileira que foi a Estocolmo era contrária a qualquer medida maior em defesa da natureza. Henrique Brandão Cavalcanti, que foi ministro do Meio Ambiente anos depois, era o secretário da delegação. Ele agiu com muita habilidade durante a conferência, conseguiu mudar um pouco a opinião do pessoal, porque a delegação, na verdade… Não vou dizer “interesse nenhum” porque talvez seja exagero, mas o fato é que ela não tinha maior interesse em tratar com mais rigor os problemas ambientais. Isso se deu já no final do governo Médici.

RBP Qual a formação das pessoas que compunham essa delegação?

PAULO NOGUEIRA-NETO Do grupo de pessoas ligadas naquele momento à questão ambiental, ninguém foi convidado. Alguns eram do Itamaraty, outros eram funcionários administrativos de algum órgão federal remotamente ligado ao meio ambiente. Em 1973, recebi um convite do Henrique Brandão Cavalcanti, que eu havia visto apenas uma vez. Nós tínhamos amigos comuns, inclusive americanos. Ele tinha ouvido falar que eu era uma pessoa interessada no meio ambiente, me convidou para esse encontro em Brasília e me mostrou o decreto, já aprovado, que criava o primeiro órgão federal encarregado de cuidar das questões ambientais. Era a sema, a Secretaria Especial do Meio Ambiente. A palavra “especial” estava ali para dar assim um prestígio maior. Mas o decreto, tal como estava, não teria força alguma, não tinha nenhum poder de multar. Seu objetivo era apenas fazer estudos sobre o meio ambiente, verificar que problemas existiam, com uma ação mais missionária e exploratória do que outra coisa. Fiz essas críticas e no final ele me convidou para ser o secretário.

Eu estava longe de pensar isso, tinha minhas raízes em São Paulo, mas imediatamente percebi que ali havia questões importantes em jogo, das quais dependiam o futuro do meio ambiente. Acabei aceitando e indo para Brasília. Só depois eu soube que Henrique me convidara sem consultar o general Costa Cavalcante, o titular do Ministério do Interior, pasta a que a secretaria estava subordinada. No fim ele acabou aceitando a indicação. Minha permanência no cargo deveria ser curta, pois dentro de dois meses haveria uma troca de governo, mas o presidente seguinte, o Geisel, me convidou para ficar. Sobrevivi então ao autoritarismo e só deixei o cargo já em pleno regime democrático, no meio do governo Sarney.

Tenho uma formação profundamente democrática. Meu pai fez oposição ao governo do Getúlio e acabou exilado, junto com o Armando Sales de Oliveira, fundador da usp, e o Julio Mesquita. Acabamos vivendo oito anos em Buenos Aires, e o Ruy Mesquita e eu nos tornamos amigos a partir do exílio. Acho que o meio ambiente é uma causa que pode unir as pessoas, não me envolvo com a política. Naquela época, consegui interessar o Geisel, que era muito centralizador, em alguns problemas criados por uma fábrica de cimento em Belo Horizonte; conseguimos obrigar que ela controlasse a grande poluição que causava. Mas uma ação desse tipo era pouca coisa, precisávamos de uma estrutura melhor. Como disse antes, havia os parques nacionais, mas estavam ligados ao Ministério da Agricultura, que não tinha nenhum interesse em preservação. Ao contrário, o interesse era a ocupação da terra. Então nós criamos novos tipos de unidades de conservação – entre elas, as estações ecológicas –, para tentar atrair o interesse da universidade.

RBP Como surgiu seu interesse pelo meio ambiente, pela idéia de conservação?

PAULO NOGUEIRA-NETO Sou neto de fazendeiros. Meu avô paterno era um fazendeirão clássico, mas gostava da natureza (até criava patos do mato) e tinha uma inclinação favorável à proteção ambiental. A Universidade de São Paulo foi fundada em 1934, e, no fim dos anos 30, quando fui para a faculdade, havia basicamente três opções: medicina, a Escola Politécnica e direito. Estudei no Colégio São Bento, e meus colegas de lá foram todos para as “ciências jurídicas”. Na minha família havia vários advogados, meu avô materno tinha sido professor na São Francisco, e acabei indo também. Oito anos depois de formado, já na luta ambiental, escrevendo artigos sobre o tema, fiz vestibular para história natural, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Foi um conselho de Lucia, minha mulher, já falecida, e do Paulo Vanzolini, meu amigo até hoje. Fiz o exame com um medo danado de levar bomba, porque competia com gente recém-formada em física e química. A universidade deve ser principalmente um lugar pra gente aprender a aprender. Porque o hábito de aprender cria facilidades para aprender mais, talvez crie alguns caminhos no nosso cérebro que facilitam a aprendizagem. Mas não considero perdidos os meus anos de direito, ao contrário, inclusive porque muita coisa que aprendi foi útil quando cuidei da legislação ambiental.

RBP Hoje existe uma especialidade no direito voltado para o meio ambiente, não é?

PAULO NOGUEIRA-NETO Sim. O direito ambiental vem se tornando cada vez mais importante. A primeira lei brasileira referente ao meio ambiente, que é de 1981, foi discutida num grupo do Ministério do Interior do qual eu fazia parte. A preocupação era com uma legislação que disciplinasse a ocupação do solo e combatesse a poluição, mas não poderíamos fazer um projeto de lei muito forte, muito rigoroso, porque aí o risco de não ser aprovado seria alto. Mesmo antes do Juscelino, o establishment era favorável à rápida industrialização do país. Roberto Simonsen e seu grupo se preocupavam em desenvolver a indústria local, protegendo-a através da limitação da importação de produtos que tivessem similar nacional. Eram contra o fortalecimento da preocupação com a questão ambiental, que poderia levar a exigências que dificultariam a industrialização. Havia mesmo entre os militares e os membros do Itamaraty uma idéia, não claramente verbalizada, segundo a qual o Brasil era um país sitiado: o resto do mundo queria nos invadir, se apossar da Amazônia, e nosso dever era defender o país. Até hoje encontrarmos resquícios dessa idéia, que na época era muito forte. Eu podia compreender o pensamento do Roberto Simonsen, a industrialização brasileira precisava de uma proteção especial de mercados para se desenvolver. Mas já trabalhávamos com noção das questões ambientais que surgiriam (como de fato surgiram) num futuro não muito distante.

Tivemos então uma surpresa: o governo encaminhou nosso projeto fraco e o Congresso resolveu tomar a sério a questão. Foi constituída uma comissão com cinqüenta membros da Câmara e do Senado, representantes dos dois partidos que existiam na época, a Arena e o MDB. Estávamos sob o governo militar, com grandes restrições, ato institucional e tudo, mas algumas instituições ainda funcionavam. Bem ou mal, estavam lá. Foi uma grande surpresa para nós ver que as pessoas haviam sido sensíveis à questão ambiental e melhoraram enormemente nosso frágil projeto. Eu me via numa posição curiosa: tinha uma sólida formação democrática, trazida de casa, e era amigo chegado do grupo da oposição em São Paulo, especialmente do Franco Montoro e do Ulysses Guimarães, com os quais me identificava ideologicamente. Em relação ao tema ambiente, assessorava tanto a oposição como o governo, e foi possível trabalharmos juntos nessa questão.

Quando o projeto foi votado, só recebeu dois votos contra; foi uma aprovação quase unânime. Na véspera da votação, um líder do governo me procurou dizendo que o projeto previa pena de prisão para quem poluísse e que, se isso fosse mantido, eles votariam contra. Fizemos uma reunião de emergência com o Montoro e resolvemos retirar esse item, engolir esse sapo. Precisávamos da aprovação do resto do projeto, que era muito bom, e a questão da prisão não faria tanta diferença assim. Cerca de dois anos depois, com o país já democratizado, Fabio Feldmann apresentou um projeto que restabeleceu a pena de prisão. Acho que só umas duas ou três pessoas já foram presas por poluírem, mas de todo modo esse projeto reparou o passo atrás que fomos forçados a dar.

RBP Que pontos o senhor considera mais importantes no projeto aprovado?

PAULO NOGUEIRA-NETO Talvez o mais importante seja a estrutura dada aos órgãos ambientais. Nessa estrutura temos o Sistema Nacional do Meio Ambiente/sisnama, constituído pelos órgãos e entidades da União, dos estados, do Distrito Federal, dos municípios e das fundações instituídas pelo Poder Público. O Conselho Nacional do Meio Ambiente/Conama é o órgão consultivo e deliberativo. Até hoje faço parte desse pequeno parlamento, que é uma estrutura única no mundo. Não existe nada parecido, e tem excelentes resultados. Recebeu do Congresso o poder de dispor e regulamentar sobre tudo que se refira ao uso de recursos naturais, e, por ter uma força própria muito grande, já foi alvo de várias tentativas de extermínio. Ali se tem o poder de fazer o que o Congresso não pode fazer. Por exemplo, examinar detalhes técnicos: quais os poluentes que não devem ser admitidos num rio, que não devem ser admitidos no ar, qual é a porcentagem dos que são aceitáveis etc. O Conama tinha inicialmente 35 membros, hoje são 115, e ainda assim, apesar desse grande número, funciona muito bem.

Houve um episódio engraçado na primeira reunião do Conama. O ministro Mario Andreazza estava presente, e, quando foi a minha vez de falar, eu disse uma provocação: “Acho que pela primeira vez o governo federal está em minoria num conselho federal”. Ele ficou perplexo: não tinha feito as contas, mas eu tinha! Uma vez, na véspera de uma reunião que ia examinar um projeto de lei para restringir o uso de agrotóxicos, ele me ligou e disse: “O que foi que você fez? Convocou uma reunião contra o governo dentro do meu ministério!” Bem, na época o Delfim Netto, ministro da Agricultura, que não gostava muito do meio ambiente – aliás, não gostava nada mesmo –, representando os interesses do setor, pressionava contra a reunião. Eu respondi: “Senhor ministro, vamos então fazer a nossa reunião fora do ministério, e se mesmo assim o senhor discordar, pode me demitir”. Todos nós, membros do conselho, tomamos um ônibus e realizamos a reunião fora do ministério. E a restrição que examinávamos foi aprovada.

O Conama tem um trabalho tão reconhecido hoje, que o Banco Interamericano, que de dois em dois anos realiza uma reunião em países diferentes, no encontro em Fortaleza estabeleceu como objetivo apresentar aos membros estrangeiros como funciona o Conama. O Brasil, com essa legislação, se tornou de longe o país que cuida melhor do meio ambiente na América Latina, sem dúvida nenhuma. A ponto de o pessoal de fora às vezes não acreditar no que a gente faz aqui, achando que é exagero. As resoluções do Conama estão reunidas num volume de 800 páginas. Temos resolução para quase tudo. Fui eleito presidente da câmara técnica que estuda questões ligadas à biodiversidade e à fauna e então estou até hoje em plena atividade lá. Continuo indo a Brasília com muita freqüência.

RBP O senhor sempre acreditou na idéia das unidades de conservação, não é? Como o senhor as vê hoje?

PAULO NOGUEIRA-NETO Os parques nacionais existem há muito tempo, mas criamos novos tipos de unidades de conservação, novos até em relação ao mundo – é o caso, por exemplo, das estações ecológicas. Criamos dezoito estações com 3,2 milhões de hectares. Cada milhão de hectares é um Líbano, ou seja, a área é grande, e nenhuma delas foi invadida. Estiveram um pouco enfraquecidas porque as universidades, que trabalham nelas, perderam parte dos recursos de que dispunham para isso. Mas é um projeto que agora vem ganhando nova força.

RBP Como foram escolhidas as áreas que se transformaram em unidades de conservação?

PAULO NOGUEIRA-NETO Bem, vou escandalizar vocês dizendo que uma dessas áreas eu escolhi lendo jornal. Todos pensam que são necessários estudos muito profundos para isso, e eu, professor de ecologia, não posso negar que deve ser assim, mas nem sempre é o que acontece. Um dia, abri o Estadão e li: “O governo federal vai entregar ao governo do Piauí as terras que foram confiscadas dos jesuítas no tempo do Marquês de Pombal”. No dia seguinte eu estava lá, pedindo ao governador do Piauí uma parte daquelas terras. Ele havia ganhado aquilo de presente, estava sem saber muito o que fazer com elas, e nos deu 130 mil hectares, quase a área do Pontal do Paranapanema. Hoje ali é a estação ecológica Urussuí. Ma não é que eu não tivesse nenhuma informação prévia sobre o lugar; sabíamos que era uma área de transição entre o cerrado e a caatinga, o que por si só a tornava ecologicamente, interessante. Ali há inclusive um bosque primitivo de carnaúba, uma raridade.

Às vezes aproveitávamos estudos locais, principalmente feitos por universidades, ou às vezes um vôo de teco-teco feito por um garimpeiro na Amazônia podia ajudar na escolha. Outro exemplo é o de uma bacia hidrográfica inteira existente numa região que o PauloVanzolini conhecia e que achava importante preservar. Os projetos de novos tipos de unidade de conservação foram implementados através de leis. De Portugal eu trouxe a idéia do que na Europa é chamado de parque natural; existem alguns muito bons perto de Lisboa. Também criamos aqui as apas, as áreas de proteção ambiental, que hoje somam mais de 6 milhões de hectares municipais, estaduais e federais. Havia um certo ciúme do lado do ibdf [Instituto Brasileiro do Desenvolvimento Florestal, do Ministério da Agricultura], que cuidava dos parques nacionais. Para evitar conflitos, eu fazia uma coisa que pode parecer o fim da picada. Dizia para o meu pessoal: “Nunca usem a palavra floresta, tentem substituí-la por outros termos, porque dessa eles se consideram os donos”. Até fui chamado no Congresso para explicar essa história, mas a coisa acabou passando.

RBP O senhor foi membro da Comissão Brundtland, formada pela onu. Como ela funcionava e que importância teve?

PAULO NOGUEIRA-NETO Fui convidado, em 1981, a fazer parte da Comissão Mundial sobre Ambiente e Desenvolvimento, a Comissão Brundtland, das Nações Unidas. Éramos 23 membros, presididos por Gro Harlem Brundtland, primeira-ministra da Noruega, uma pessoa muito determinada, muito forte. Aliás, há três dias estive aqui em São Paulo com ela; veio fazer uma palestra promovida pelo Banco Real. Um dos objetivos da Comissão era estudar a área fronteiriça, a interface entre economia e meio ambiente. Essa comissão a cada três meses visitava um país diferente, onde fazíamos audiências públicas sobre o tema. Assim, corremos todo o mundo, e o resultado foi um relatório publicado com o nome de Nosso futuro comum. Esse trabalho deslanchou o tema meio ambiente pelo mundo, dando origem à Conferência Rio 92. A Conferência de Estocolmo havia sido o ponto de partida, mas foi a Comissão Brundtland que conseguiu realmente um grande avanço da questão como algo de essencial para o mundo.

De início, a grande preocupação nossa na Comissão Brundtland era a questão demográfica, porque o mundo estava crescendo naquela época 2,5% ao ano e, segundo os cálculos, a população da Terra dobraria no curtíssimo espaço de 36 anos, o que por vários fatores não se confirmou, felizmente. Na época, a Comissão consultou os demógrafos sobre esse tema e a resposta foi que a população explode nos lugares onde há miséria. Então, resolvemos dar prioridade total à erradicação da miséria no mundo. Isso foi muito importante, porque até então, para nós, ambientalistas, bastava a dedicação à nossa causa; os problemas sociais eram outro departamento. Não que não fossem importantes – apenas não eram conosco. Mas, a partir daí, passaram a ser!

Então: será exeqüível erradicar a miséria? E o que fazer para isso? Consultamos as Nações Unidas, que têm departamentos técnicos muitos bons, e a resposta foi: gastando 200 bilhões de dólares por ano, dentro de quinze, vinte anos seria possível erradicar a miséria. Achávamos que isso seria perfeitamente possível, porque o mundo naquela época da guerra fria estava gastando 1 trilhão de dólares numa coisa que é melhor não usar: armamento. E isso representava quatro vezes mais dinheiro do que o necessário para erradicar a miséria. Hoje se gasta no mundo algo como 600, 700 bilhões de dólares por ano em armamentos, gasto ainda mais estimulado pelos problemas da guerra do Iraque. É muito dinheiro, muito mesmo. E a miséria continua aí.

RBP O senhor está dizendo que a preservação do meio ambiente se liga intimamente à erradicação da miséria no mundo?

PAULO NOGUEIRA-NETO Intimamente. Se você não estabilizar o mundo demograficamente, não há tatu que agüente, como dizem os caipiras. Estamos caminhando para uma população de 7 bilhões, e as Nações Unidas calculam que o máximo a que poderíamos chegar seria 10, 12 bilhões, e olhe lá. Se mantivermos o mesmo padrão de consumo que os países desenvolvidos têm hoje, vamos precisar de um outro planeta, porque os recursos naturais não serão suficientes. Felizmente a medicina descobriu que a gordura faz mal à saúde, que precisamos emagrecer; isso ajuda na diminuição do consumo.

Estamos usando extensivamente os recursos naturais desde a Revolução Industrial, em meados do século xix: primeiro o carvão em grande quantidade, depois o petróleo, também em grande quantidade. Assim, tiramos o carbono de debaixo da terra e jogamos na atmosfera. Todos os estudos, inclusive com climas do passado, mostram o seguinte: sempre que há bastante carbono na atmosfera, o calor na face da Terra aumenta. Pesquisas realizadas por russos e franceses na Estação Vostok, através de perfurações de quase 2 quilômetros de profundidade, permitiram analisar bolhas de ar no gelo, bolhas do mesmo tipo daquelas que encontramos nas pedras de gelo da nossa geladeira. E o resultado mostrou qual era a composição do ar na Terra nos períodos glaciais e também nos períodos mais quentes. Foi assim que se descobriu que o aquecimento climático está muito ligado à quantidade de carbono na atmosfera. Sempre ocorreram alterações climáticas, mas o homem acelerou violentamente o ritmo dessas transformações. O que levaria bilhares de anos para se alterar agora acontece em dezenas de anos, o que não permite a adaptação gradativa das formas de vida na Terra, como ocorria antes. Agora, temos então pela frente uma luta contra o tempo.

Os estudos dos geógrafos e geólogos ingleses e franceses que trabalharam na África, pesquisando muito bem os climas que existiram ali no passado, mostram que, há 50 mil, 60 mil anos atrás, no Congo Belga, atual República do Congo, no lugar onde existem florestas equivalentes à Amazônia existiu o deserto de Kalahari, um dos maiores desertos do mundo. Esse deserto migrou para o sul da África quando o clima mudou. São mudanças climáticas profundas, gerais, que desencadeiam mudanças locais. Hoje poderíamos pensar que, se as enormes áreas existentes perto do Pólo Norte chegarem a ser quentes, elas se tornarão cultiváveis. Claro, o solo está muito ligado ao clima e pode mudar quando há mudança climática. Mas em condições normais isso leva cem, duzentos anos. Num ritmo acelerado, não haverá tempo para uma nova formação do solo. Tudo isso vai complicar tremendamente o sustento da população do planeta.

O controle do aquecimento climático é realmente fundamental. Vocês viram o filme do Al Gore [Uma verdade inconveniente]? Ele expressou muito bem o problema e mereceu o Prêmio Nobel. Sabemos que a causa do aquecimento é o carbono: mais carbono na atmosfera é igual a mais energia na atmosfera que é igual a tempestades cada vez mais violentas. Surgiu um ciclone em Santa Catarina, coisa que nunca tinha acontecido na história do Brasil. E o de Nova Orleans? A cidade foi arrasada, nunca se esperaria uma violência assim naquele lugar. Hoje temos bons conhecimentos técnicos sobre essas questões. O próprio Bush possui essas informações e está mais ou menos convencido sobre elas, mas não quer dar o braço a torcer e insiste em que as mudanças tecnológicas é que vão solucionar a questão. Mas não será assim. É preciso que toda a humanidade acorde para o problema. Temos pela frente, mais ou menos, uns trinta anos em que ainda poderemos lutar. Depois…

RBP De onde veio o conceito de “desenvolvimento sustentável” e como o senhor o compreende?

PAULO NOGUEIRA-NETO A expressão “desenvolvimento sustentável”– e não sustentado, como dizem por aí: dá a impressão de algo sustentado por alguém de fora – surgiu na Comissão Brundtland. O sentido é o de um desenvolvimento que satisfaz as necessidades da geração presente, mas permitindo também que as gerações futuras possam usar os recursos naturais para suprir suas próprias necessidades. Isso significa saber que os recursos naturais são finitos, que não podem ser esgotados por uma geração, pois toda a humanidade depende e dependerá sempre deles. É preciso compatibilizar desenvolvimento econômico e conservação ambiental. O desenvolvimento sustentável é uma grande ferramenta para o combate à miséria.

RBP Qual a importância da atribuição do Prêmio Nobel a Al Gore e ao Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas?

PAULO NOGUEIRA-NETO Importância enorme. Foi uma grande ajuda, no sentido de estimular a reflexão sobre o tema em âmbito mundial. Al Gore vem trabalhando na direção mais correta para tratar do problema, que é crucial à nossa sobrevivência. A eleição para a presidência dos Estados Unidos de um candidato com essas posições será fundamental para o mundo. Tem havido um grande aumento no número de estudos sobre mudança climática, inclusive aqui no Brasil. Estive recentemente numa reunião técnica no Rio de Janeiro em que se discutiu o que é possível prever sobre o que acontecerá aqui. Carlos Nobre, do inpe [Instituto de Pesquisas Espaciais de São José dos Campos], nosso cientista mais informado sobre o tema, tratou de algumas dessas possibilidades. Na Amazônia, entre Manaus e o Atlântico, é provável que surja um cerradão, com a queda da pluviosidade, como já foi no período glacial. Entre Manaus e os Andes, haverá aumento da pluviosidade e a área permanecerá mais ou menos como está hoje, composta de terra inadequada à agricultura. O estado de São Paulo possivelmente terá um acréscimo de chuva de uns 10%. No sul do Brasil, a situação deverá permanecer mais ou menos a mesma. O grande problema será realmente o Nordeste, que de semi-árido chegará a deserto.

RBP E a questão do etanol, da monocultura da cana na Amazônia?

PAULO NOGUEIRA-NETO A cana-de-açúcar no Brasil vai muito bem perto do litoral do Nordeste. Não creio que haja perigo, felizmente, de plantarem cana na Amazônia, por uma razão muito simples: a colheita precisa de cinco meses secos, e esse tempo de seca não existe lá. Portanto, não seria econômico. E o Brasil tem como aumentar a produção de cana no sul, onde também há um clima adequado. Acho o etanol uma boa solução, uma vez que o álcool produzido pela energia solar, através da fotossíntese, é um combustível mais limpo. Mas é preciso tomar muito cuidado, pois a concentração excessiva numa cultura leva ao aumento do preço de outros produtos, com conseqüente encarecimento dos alimentos, o que já vem acontecendo. Há necessidade de um bom gerenciamento da questão. Durante vinte, trinta anos, o etanol será útil, mas a partir daí teremos problemas com a produção de alimentos. Penso que a grande fonte de energia do futuro será a energia nuclear da fusão nuclear, não da fissão. A fusão nuclear é a energia do Sol, de baixa radioatividade; pode ser controlada, diferentemente da fissão, esta, sim, perigosíssima. Acho que chegou a hora do mundo pensar seriamente na fusão nuclear. Ela vem sendo pesquisada na França, na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos e no Japão, que estão gastando alguns bilhões de dólares no projeto. Isso significa que ele já é viável, porque perder dinheiro, nenhum país gosta.

RBP O que se espera do 13.º Encontro da Conferência da Organização das Nações Unidas sobre Mudança Climática que será realizada em Bali em 2008?

PAULO NOGUEIRA-NETO Bem, o protocolo que resultou da conferência mundial realizada em Kioto, em 1997, vai se extinguir em 2012. O grande mérito desse documento foi chamar a atenção do mundo para o problema das mudanças climáticas. Mas os países industrializados se sentiram injustiçados ao serem obrigados a reduzir sua emissão de carbono, enquanto os países em desenvolvimento não teriam esse compromisso. A não-adesão dos Estados Unidos, da Austrália, do Canadá, prejudicou os resultados de Kioto. Muitos dos poluidores até hoje não reconhecem suas responsabilidades.

Com a queima das florestas, o Brasil é o quarto maior poluidor do mundo em carbono, mas argumenta que esse tipo de emissão não conta porque não vem da indústria. Está errado! É preciso que o Brasil reconheça a necessidade de também fazer um grande esforço para diminuir a poluição. Não pode esperar que só os países industrializados se empenhem na tarefa. Por aqui nós temos a posição da coruja: visitando um amigo que tem uma coruja, alguém diz: “Que ave bonita, essa”. Responde o amigo: “É, falar não fala, mas presta uma bruta duma atenção…” No momento, estamos prestando uma bruta atenção e, modestamente, procurando ver o que poderá acontecer com o Nordeste, por exemplo, que será o maior prejudicado. Se a grande fonte de produção de carbono é a queimada da Amazônia, precisamos diminuir drasticamente o desmatamento. Conheço bem a ministra Marina Silva e sei que ela faz tudo o que é possível, mas ainda é pouco.

Em Bali teremos muitas questões a discutir – entre elas, os vários mecanismos de defesa limpa existentes. Por exemplo: a manutenção das florestas poderá ser subvencionada, e em Bali será este o grande pedido do Brasil para a Amazônia. Estou notando no Acre, onde tenho mais contato, que ali a derrubada diminuiu. Chico Mendes morreu por causa disso, para evitar que tudo virasse um grande pasto. Mas agora os seringueiros estão começando a criar gado, porque não conseguem viver da seringueira. Temos de aprender com a Europa, que subsidia seu agricultor, uma vez que ele, além de produzir, ocupa e guarda o território. Sem subsídios, o agricultor vai para a grande cidade e o território fica abandonado. É preciso fazer a mesma coisa aqui: subsidiar os trabalhadores das reservas de desenvolvimento sustentável, pois assim eles cuidarão da floresta. Não se pode querer que o seringueiro fique numa espécie de jardim zoológico para todo mundo ver como se tira o látex, para fotografar. Tem de haver interesse econômico. Eles podem ter uma vida subsidiada, humana, digna. Subsídio não é vergonha.

RBP Como vem sendo a política conservacionista no Brasil em relação à população indígena brasileira?

PAULO NOGUEIRA-NETO Os índios já têm uma prática conservacionista. Eu vôo muito por aí. Quando se vê uma área grande de floresta, pode escrever: é reserva indígena. Porque o índio defende a sua floresta, não é bobo. Tem dificuldades econômicas, é explorado, corrompido por madeireiros, mas não deixa derrubar a floresta. Sem eles, talvez tudo já tivesse sido derrubado. Eles ocupam 20% da Amazônia e não há nenhuma derrubada significativa nesses 20%. Então, eles têm um papel importante na manutenção da floresta.

RBP E como é a questão da compensação ambiental?

PAULO NOGUEIRA-NETO Essa foi uma idéia minha. Quando se faz uma hidroelétrica, os proprietários são indenizados, constroem-se escolas, hospitais etc. Mas não se paga a perda ecológica; em geral, nessas regiões estão as melhores florestas, as que estão próximas da água e tudo aquilo é simplesmente destruído, some debaixo d’água. A idéia é que o empreendedor que constrói a hidroelétrica pague uma compensação ecológica por isso. O Conama gostou da idéia, ampliou-a para outras situações e criou uma lei para implementá-la. Funciona bastante bem. A compensação paga fica em torno de 0,5% do empreendimento. Em São Paulo já existe uma Câmara de Compensação Ambiental e eu faço parte dela; fiz questão de participar, porque acho extremamente importante que o dinheiro seja bem usado, não desperdiçado. Com esses recursos, compramos terras valiosas ecologicamente e as transformamos em unidades de conservação.

RBP E a educação ambiental, como anda? Estamos cuidando das gerações futuras?

PAULO NOGUEIRA-NETO Esse aspecto é fundamental. É a educação que nos permite ampliar a conscientização e o envolvimento de todos nos projetos de conservação do meio ambiente. E o esperar a idade adulta da criança para termos os benefícios da educação. A criança educa os pais, os adultos. Sou professor, sempre fui, tenho grande crença na educação. Vejam a Coréia do Sul: seu grande desenvolvimento econômico é resultado dos pesadíssimos investimentos feitos na educação. Com todas as dificuldades, nós também, aos poucos, vamos progredindo na educação ambiental. Quando começamos, o respeitável público que se interessava pelo tema, como dizíamos no começo dessa conversa, cabia numa Kombi! Muita gente me dizia e ainda diz: “Puxa, você dever ter sofrido nessa luta!” Não sofri nada, pelo contrário. Estava fazendo o que eu mais gostava e gosto. Na verdade, fui criando uma atmosfera de confiança que foi muito útil ao nosso trabalho. Mas também fui ajudado pelo fato de que no mundo todo, principalmente agora, a preocupação ambiental finalmente ganhou corpo.

 

 

* Entrevista realizada na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo em 30 de outubro de 2007, com a participação de Inês Zulema Sucar, Maria Ângela Moretzsohn, Maria Aparecida Nicoletti e Thaís Blucher.

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