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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.41 n.4 São Paulo dez. 2007

 

ARTIGOS

 

A responsabilidade ética na transmissão da psicanálise

 

La responsabilidad ética en la transmisión del psicoanálisis

 

Ethical responsibility in the transmission of psychoanalysis

 

 

Ruggero Levy*

Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor faz uma reflexão a respeito da transmissão da psicanálise, enfocando a questão da análise didática. Propõe que a análise pessoal do futuro analista seja chamada de análise de formação ou simplesmente análise pessoal do candidato, como consta nos estatutos da IPA. Adota-se como princípio ordenador do artigo a tese de que há uma invariante em todos os modelos de formação: a preocupação com a qualidade da análise do futuro analista. É salientada a responsabilidade ética dos institutos na formação de analistas qualificados, especialmente zelando em garantir acesso a analistas que se acredita capazes de propiciar processos analíticos consistentes, ou avaliando se já passaram por um processo dessa natureza. Entende-se que é esta experiência de análise pessoal o principal pilar de construção da identidade psicanalítica.

Palavras-chave: Análise didática; Formação psicanalítica; Transmissão da psicanálise.


RESUMEN

El autor hace una reflexión sobre la transmisión del psicoanálisis, enfocando la cuestión del análisis didáctico. Propone que el análisis personal del futuro analista sea llamado de análisis de formación, o simplemente análisis personal del candidato, como consta en los estatutos de la IPA. Es utilizado como principio ordenador del artículo la tesis de que hay una invariante en todos los modelos de formación, cual sea: la preocupación con la calidad del análisis del futuro analista. El autor destaca la responsabilidad ética de los institutos de formar analistas cualificados, especialmente atentos en garantir el acceso a analistas que se crea que puedan propiciar procesos analíticos consistentes, o avaluando si ya pasaron por un proceso de esta naturaleza, entendiéndose que es esta experiencia de análisis personal el principal pilar de construcción de la identidad psicoanalítica.

Palabras claves: Análisis didáctico; Formación psicoanalítica; Transmisión del psicoanálisis.


ABSTRACT

The author reflects on the transmission of psychoanalysis by focusing on the training analysis issue. He proposes that the personal analysis of the future analyst be called training analysis, or simply personal analysis of the candidate, as stated in the IPA statutes. The ordering principle in the article is the thesis that there is an invariable in all education models, which is the concern about the quality of the analysis of the future analyst. He stresses the institutions’ ethical responsibility in training qualified analysts – they must especially grant them access to professionals believed to be able to provide consistent analytical processes, or evaluate whether the candidates have already had such training. The experience of personal analysis is understood as the main pillar in the construction of the psychoanalytical identity.

Keywords: Training analysis; Psychoanalytic training; Transmission of psychoanalysis.


 

 

Introdução

A partir de um honroso convite para escrever sobre análise didática, assumo a tarefa propondo-me uma reflexão guiada por uma pergunta que na verdade está no ar: há sentido em manter ainda a assim chamada análise didática?

Penso que a reflexão deve iniciar pela maneira como denominamos a análise do futuro analista. Será adequado chamá-la de análise didática? Essa expressão consagrada tem gerado mal-entendidos, pois carrega um sentido pedagógico, como se essas análises incluíssem algum tipo de ensinamento, alguma didática além da própria análise, o que já não ocorre mais (Amati Mehler, 2000). No último Newsletter da IPA foi proposta a expressão “análise de capacitação” (Bolognini, 2007; Silverman, 2007). Entretanto, concordo com Barros quando afirma que “a psicanálise é um processo de subjetivação e, portanto, se opõe a qualquer prática de ‘capacitação’” (Barros, 2001); cita então Mezan para justificar sua predileção pela denominação “formação analítica”:

De todas as fórmulas, me parece que “formação” – desde que seja interpretada a partir de sua marca de origem – concentra a maior riqueza de conotações, em extensão e em intensidade: abarca a dimensão pedagógica, o aspecto estratégico e normativo, a questão da herança e, sobretudo, a natureza profundamente conflitiva de chegar a ser analista.

Talvez devêssemos chamá-la simplesmente “análise do futuro analista” ou “análise de formação”, ou ainda, como consta nos atuais estatutos da IPA, simplesmente “análise pessoal do candidato”. Entretanto, ao longo deste texto, utilizarei, entre outras denominações, também “análise didática”, sempre para me referir ao tratamento pessoal do futuro analista por um colega mais experiente credenciado pelo instituto de psicanálise para conduzir essas análises.

Como se tem visto, o tema da análise de formação é controverso, havendo posições divergentes. Em alguns modelos de formação analítica, especialmente no assim chamado modelo francês, foi suprimida a figura do analista didata e, portanto, a análise didática. Há questionamentos importantes e bem fundamentados (Meyer, 2003) a propósito da própria natureza da análise didática que, inclusive, consideram que ela carrega em si mesma uma contradição irreconciliável. Meyer, por exemplo, considera que a análise didática envolve uma submissão a regras formais que contradiz o próprio projeto da psicanálise.

Penso, entretanto, que este tema – deve, ou não, existir análise didática? – precisa ser encarado como uma pergunta à espera de questionamentos, de estudos. Talvez não haja ainda uma única resposta à pergunta. Parafraseando Bion, a discussão neste momento talvez seja mais importante do que a resposta.

Mas o debate deve ser uma discussão substantiva. Devemos poder discutir – como vários colegas já o fizeram – com argumentos teóricos, princípios técnicos, conceitos psicanalíticos, e não fazer uma discussão adjetiva que apenas qualifica os debatedores. Não cabe discutir o assunto em termos de que tal ou qual modelo de formação, ou que a adoção (ou não) da análise didática, ocorre porque tal instituto é aberto, flexível, rígido, conservador etc. Ora, isso em termos psicanalíticos diz muito pouco. Essa é mais uma discussão ideológica do que psicanalítica – assim como dizer que quem defende a análise didática é conservador, ou quem prega o seu fim é aberto ou democrático. Ou o contrário: dizer que quem prega o fim da análise didática quer destruir a psicanálise e quem a defende são os que realmente zelam pelo desenvolvimento do projeto psicanalítico.

Partirei de uma tese, de um princípio ordenador. Considero que, acima do modelo de formação adotado, há uma responsabilidade ética dos institutos de psicanálise, qual seja: formar analistas qualificados. Essa responsabilidade ética tem múltiplas facetas. Ela existe para com a comunidade, com a psicanálise e com os próprios candidatos. Os institutos têm a missão de formar e oferecer à comunidade psicanalistas capazes de exercer a psicanálise ética e tecnicamente adequada. Perante a própria psicanálise, os institutos têm a missão de preservar, transmitir, expandir, qualificar o conhecimento e a técnica psicanalítica. E, diante dos próprios candidatos, devem oferecer-lhes uma formação pessoal, ferramentas conceituais e técnicas para bem exercer a psicanálise. Mas, acima de tudo, devem lhes garantir uma análise suficientemente boa que assegure sua saúde mental ou que lhes permita verificar se possuem ou não condições psíquicas de serem psicanalistas.

E aí temos uma especificidade que torna a análise do futuro analista diferente da análise de um paciente “comum”. (Há que cuidar para não contrapor ao “comum” o “especial”, o que implicaria uma conotação adjetiva. Por “comum”, entenda-se os que não serão analistas no futuro.) Então, com pacientes que não serão analistas, é natural a aceitação, ao final da análise, da manutenção de certas defesas e pontos cegos a fim de manter o equilíbrio psíquico do paciente. Certamente com o candidato também será assim, mas com diferenças significativas. O futuro analista, ao invés de afastar-se da patologia, seguirá mantendo-se muito próximo do conflito psíquico, da dor psíquica, e terá sua mente constantemente invadida de ansiedades dos pacientes que atenderá. Logo, ao término de sua análise deverá ter atingido uma permeabilidade psíquica, uma superação dos pontos cegos e uma função analítica da personalidade que o habilite a essa árdua tarefa, garantindo uma certa estabilidade psíquica, o que não ocorre com o paciente que não será analista. Sabemos, é claro, que não há possibilidade de superação absoluta de pontos cegos, nem de obtenção de um ideal em termos psíquicos, mas a resolução obtida deverá ser suficiente para capacitação ao trabalho analítico, o qual se espera que ocorra em ambiente emocional de alta densidade.

Evidentemente, as indagações que se colocam são estas: o que é uma análise adequada ao futuro analista? Quem serão os analistas indicados para proporcionarem essa análise aos futuros analistas? Como se avalia isso?

 

Que caminhos têm sido traçados pelos institutos?

A IPA, após muitos anos de labor realizado por diversos comitês de educação, finalmente conseguiu elaborar um relatório final (Erlich, 2006). Esse relatório possui o mérito de ter chegado à abstração de três modelos formativos, depois do estudo dos diversos programas de formação nos vários institutos espalhados pelo mundo. Constata-se que há três grandes modelos de formação, cada um deles contemplando de modo diferente as questões acima, não obstante as inúmeras variações: o modelo Eitingon, o modelo francês e o modelo uruguaio. À parte todas as diversidades encontradas, existem algumas invariantes: nos três modelos a análise do futuro analista merece uma atenção especial – e não poderia ser diferente.

Estou plenamente de acordo com Giovannetti (2000) quando este diz que as feridas narcísicas de nossos institutos são provocadas pelo fato de que, por mais que nos esforcemos em formar bons analistas, os resultados nem sempre são satisfatórios. Problemas de seleção, de avaliação, de qualificação estão sempre denunciando que nenhum modelo de formação é ideal. Não podemos crer – e penso que nenhum psicanalista de bom senso o faria – que haja um modelo superior a outro. Cada um deles tem virtudes e problemas próprios. Cada instituto de psicanálise foi enfrentando, ao longo de sua história, problemas educacionais, institucionais, políticos, e foi encontrando soluções específicas para a situação. Por isso, a simples “importação” de modelos torna-se artificial e, por vezes, arbitrária. Cada comunidade psicanalítica deve detectar seus problemas e as soluções para eles, o que não impede aprender com as soluções de outras comunidades (Michels, 2000).

O que importa é que em todos os modelos a análise do analista é considerada essencial, e, como veremos, em todos há uma preocupação com os resultados dessa análise. No modelo Eitingon acredita-se que analistas experientes, identificados com a psicanálise e com a instituição, são os mais indicados para conduzir essas análises. No modelo uruguaio, quem conduzirá a análise didática será um membro titular credenciado pelo instituto para a função. Tanto no modelo Eitingon como no uruguaio, existe a crença de ser importante que essa análise ocorra ou durante a formação, ou por um bom período ao longo dela.

Em ambos existe também a idéia de que o analista deve ser indicado pelos institutos, embora haja no modelo uruguaio uma grande preocupação com a questão da concentração de poder. (A questão dos problemas institucionais de concentração de poder e exclusão serão abordados posteriormente.) Já no modelo francês não existe a figura do analista didata. Considera-se que “qualquer div㔠da sociedade psicanalítica em questão ou “qualquer divã da IPA” pode analisar o futuro analista. Entretanto, a preocupação com a qualidade da análise do analista também existe, sendo apenas enfrentada de outro modo. É durante o processo de seleção, bastante demorado e criterioso, que se pretende avaliar a análise. Procura-se avaliar na seleção o estado mental e a capacidade analítica do candidato, ou seja, se sua análise foi exitosa ou não.

Adiante discutirei virtudes e problemas de cada modelo, mas queria sublinhar que em todos se considera essencial que o futuro analista passe por uma análise consistente que redunde numa identificação com o método analítico e em capacidade para uma atitude analítica. Em suma, que adquira uma sólida identidade psicanalítica.

 

O método psicanalítico como “objeto estético”

Na tentativa de alguma precisão, vou explicitar a que me refiro quando falo em método e atitude analítica. O método, no dizer de Meltzer (1973/1979),

consiste em estabelecer uma relação entre duas pessoas num contexto muito controlado e estudar os acontecimentos que transpiram quando o analista, pessoa especializada em ter uma sensibilidade em relação às outras pessoas e que possui um contato profundo com seu inconsciente, limita sua atividade tanto quanto possível à interpretação da transferência (p. 23).

Evidencia-se que Meltzer, ao dizer que o analista limita “tanto quanto possível” sua atividade à interpretação da transferência, está admitindo, implicitamente, que há atividades do psicanalista que vão além da interpretação da transferência. Mas também se deduz de sua afirmação que “monitorar” a transferência, compreendê-la e, se adequado, interpretá-la, é a atividade primordial do psicanalista. Claro, as contribuições mais contemporâneas da psicanálise, todos sabemos, estenderam essa conceituação. “Os acontecimentos que transpiram” na dupla passaram a ser entendidos como provocados não só pela transferência, mas também pela mente do analista presentemente ativa no campo relacional, e, assim, o interesse de compreensão e de interpretação ampliou-se: não importa mais apenas a transferência, mas também a “tempestade” (Bion, 1979/1994) resultante do encontro das subjetividades de paciente e analista. Sabemos que o interesse passou a ser não apenas as representações inconscientes, mas também aquilo que ainda não foi representado, os “fatos psíquicos não digeridos” (Bion, 1962/1991), ou o que Botella denominou “o irrepresentável” (Botella, 2002).

Ao final da análise, espera-se que o futuro analista também seja capaz de uma atitude analítica, bem descrita por Virgínia Ungar, importante estudiosa de Meltzer: “O essencial da atitude analítica é a receptividade, a disposição à observação, a tolerância ao mistério e ao desconhecimento e a inclinação a refletir mais do que atuar” (p. 6).

O conflito estético para Meltzer (1988/1995) consiste na experiência do encontro com um objeto estético. Usando o modelo da relação mãe/bebê, ele cria a seguinte imagem. O bebê, confrontado com a riqueza de estímulos sensoriais e sensuais de seu encontro com a mãe, fica maravilhado com a beleza do mundo. Entretanto, em contraste com a beleza do exterior, o bebê se depara também com o mistério indecifrável do interior desse objeto deslumbrante. Não sabe se ele é fonte de vida e prazer ou se carrega consigo a dor, o sofrimento e a ameaça de morte. Até porque ele se transmuta em um ou outro com facilidade.

Da mesma forma, Meltzer (1988/1995) acredita que os analistas têm um conflito “estético em seu caso amoroso com o método analítico” (p. 45). Diz ele que o método (e a aceitação de fazer um exame da transferência/contratransferência) – com sua intimidade, privacidade, ética, atenção, tolerância, postura não julgadora, continuidade, abertura, prontidão implícita por parte do analista, compromisso em reconhecer erros, senso de responsabilidade em relação ao paciente – torna-o um objeto estético. A teoria, entretanto, em que se baseia o método está aberta a suspeitas: é atual, científica, burguesa? Pois cada uma dessas suspeitas – ou calúnias, no dizer de Meltzer – tem um grão de verdade.

Proponho tomarmos a transmissão da psicanálise à luz do conflito estético de Meltzer (1988/1995): nós apresentamos aos candidatos um objeto complexo, de profundo interesse, atraente, com seu conjunto de conceitos e teorias. Um belo objeto, diríamos, pela sua riqueza em estímulos. Mas, ao mesmo tempo, esse objeto-método psicanalítico é enigmático, misterioso, pois seu funcionamento e sua internalização não são apreensíveis pelos sentidos. Sua apreensão deverá ser pacientemente construída através de um longo processo mental vivido na análise do futuro analista. A identidade psicanalítica, o desenvolvimento da capacidade negativa, será o fruto de um misterioso trabalho inefável que envolve a ampliação da capacidade de continência das emoções, da capacidade de rêverie, da função simbólica, se quisermos dar um nome a esses processos inconscientes.

Será preciso que, ao final de seu processo analítico, o futuro analista tenha desenvolvido a capacidade de tolerar o encontro apaixonado com outro ser humano, com toda a brutalidade e crueza que por vezes se vive no campo analítico, podendo prevalecer nele os processos de transformação, sobre os de cisão, projeção e criação de mentiras. Dizendo de outro modo: espera-se que, ao final da análise de formação, o futuro analista tenha desenvolvido a capacidade de depender de sua mente como se depende de um objeto continente, para conter, transformar e, assim, compreender e conhecer suas experiências emocionais. Evidentemente, quando assim falo, quero dizer, novamente inspirado em Meltzer (1998), que o futuro analista deverá ter descoberto que possui dentro de si objetos internos – o próprio método psicanalítico, diversas teorias e identificações – que virão “socorrê-lo” quando precisar compreender uma experiência emocional, sua ou de seu paciente.

Entretanto, o método analítico desenvolve-se dentro de um setting. Entendo o setting psicanalítico como algo que vai muito além dos aspectos formais (número de sessões, horários, honorários etc.), abarcando também os aspectos substanciais (Levy, 2006), os quais precisam ser bem entendidos. É preciso manter o “sentido substancial” do setting, pois, se o perdemos, surge a tentação de dizer “que o diabo o carregue”, como bem expressou Laplanche (1992). Diz ainda esse autor que variações ou reformulações podem ser necessárias, mas é preciso poder explicá-las à luz dos conceitos psicanalíticos – não de argumentos político-ideológicos. “Na falta da luz, cai-se-me qualquer coisa e a situação analítica dissolve-se até nos seus limites espaciais e temporais” (p. 164). Laplanche (1992) considera que a situação analítica se constrói a partir do setting e de suas regras. Define, então, o que denomina os pontos cardeais que criam a situação analítica: a instauração/reinstauração do contrato; a criação de uma estrutura espaço/tempo que permite o aparecimento das fantasias libidinais; a reinstalação da sedução originária; e o estabelecimento de uma situação continente, baseado nos conceitos de Bion (continência) e Winnicott (holding).

Antonino Ferro (1997), de modo similar a Laplanche, define o setting a partir de quatro quadrantes; como se verá, apenas uma parte dele é acordada com o paciente – boa parte diz respeito apenas ao psicanalista. Descreve assim os quadrantes do setting: como um conjunto de regras formais; como condição mental do analista; como objetivo a ser atingido; e como algo que pode sofrer rupturas causadas pelo analista. Ferro faz uma diferenciação interessante entre os elementos formais e os substanciais. Os elementos formais são as regras e as combinações explícitas de espaço e tempo acordadas pela dupla. Já os elementos substanciais são aqueles relacionados à função analítica, ao estado mental do analista, que pode estar realizando suas funções ou não, que pode estar ou não determinando a existência do setting como ambiente de trabalho analítico.

Então, pensando desse modo, pode-se dizer que, para o analista em formação, será fundamental que seu analista e ele sejam capazes de instaurar um setting analítico adequado, preservando os elementos essenciais, de maneira a permitir uma internalização e uma identificação com o método e com o setting analítico, enquanto atitude e espaço mental capaz de acolher e transformar emoções em representações simbólicas. Com um paciente que será analista no futuro, talvez se possa dizer que a afirmação de Meltzer segundo a qual temos com o paciente o compromisso ético de fazer o máximo de psicanálise possível, torna-se ainda mais verdadeira, na medida em que a identificação com o método é o objetivo.

Mas essa transmissão depende da existência do analista didata?

 

Analista didata: ter ou não ter?

Como sabemos, há posições divergentes.

No modelo Eitingon, largamente o mais utilizado pelos institutos da IPA em todo o mundo, a figura do analista didata e a exigência da análise didática é prevalente. Há diversas variações institucionais na forma com que a condição de didata é conferida: convite, postulação, seleção, votação, tempo de exercício da psicanálise etc. (Michels, 2000; Bianchedi, 2000). Mas esses institutos consideram que a análise de um candidato deve ser conduzida por psicanalistas experientes, credenciados pelo instituto em que o candidato realiza sua formação e capazes de lidar com a situação complexa que é analisar um futuro analista. O trabalho deveria ser profundo o suficiente para analisar ansiedades psicóticas e primitivas, para habilitar o futuro analista a lidar com o maior número possível de situações (Amati Mehler, 2000); deveria focalizar adequadamente ansiedades fomentadas pelo próprio processo de formação e de supervisão, as quais, se bem analisadas, podem conduzir a uma atitude analítica e, se não, a uma anti-analítica (Michels, 2000); deveria ser promotor de crises identificatórias, colocar em crise a formação, a instituição, a psicanálise e o próprio desejo de formação (Giovannetti, 2000).

Além dessas questões importantes, eu colocaria outra, nuclear, já mencionada. A análise do futuro analista deverá proporcionar uma sólida identificação com a função analítica e com o método analítico. Deverá também proporcionar ao analista uma função continente (Bion, 1962/1991), ou um aparelho de pensar, capaz de dar continência ao maior número possível de experiências emocionais de um processo analítico sem adoecer. Para isso, é essencial, me parece, que o futuro analista se analise com um analista altamente qualificado. Avaliar o resultado dessa análise, a aquisição de uma sólida identidade psicanalítica, deve ser responsabilidade dos institutos de psicanálise, independentemente do modelo de formação adotado.

Um grande risco das análises didáticas seria o futuro analista identificar-se não com o método analítico, mas com a pessoa de seu analista (Hardt, 2000; Bianchedi, 2000). Luiz Meyer (2003) acredita ser o que ocorre nas análises didáticas, a identificação com a pessoa do analista por todo o contexto institucional da análise. O alerta de Meyer é fundamental, pois facilmente pode haver distorções na análise em que, por ânsia de poder institucional, o didata deseje, inclusive, que o candidato se identifique com ele, garantindo sua “eternização” através de uma “prole” ou uma “base de apoio” para sua hegemonia institucional.

O risco, adequadamente mencionado por Meyer (2003; 2007), de que, ao final da análise de formação, o candidato se identifique com a pessoa do analista e não com a função analítica tem sido muito encontradiço, a ponto de se formarem verdadeiros comboios analíticos em muitas instituições. Do analista que conduz análises de formação, espera-se que possa analisar com muito mais cuidado a terminação do processo, com vistas a auxiliar o futuro analista a elaborar a separação, o luto e a desidealização de sua pessoa. Serão colegas, e deverá ser assegurado pela análise que o futuro analista faça a identificação com a função analítica de seu analista e outras identificações teóricas e técnicas com professores e supervisores, coincidentes, ou não, com as daquele que conduziu a análise. Esse seria um final adequado para uma análise de formação.

Seria uma distorção grave a situação em que o didata perdesse de vista o processo analítico do candidato e se preocupasse com a manutenção de seu poder institucional. Quando isso ocorre, estamos frente a uma patologia da análise que, no entanto, pode se dar em qualquer análise. Claro, poderíamos argumentar que, sendo uma análise de formação e conduzida por um analista credenciado por um instituto de psicanálise, a situação é mais grave. E realmente é, do meu ponto de vista. Talvez por isso seja importante que a condição de analista didata não seja vitalícia e, sim, renovável periodicamente, procurando-se garantir, através de avaliações regulares, a função e a atitude analítica do profissional que conduz análises de formação. Bianchedi (2000), embora não saiba como isso seria feito, acredita que deveria ser assim. Jeniffer Johns (2000) propõe, inclusive, que a condição de didata seja mais fluída, a ponto de, por exemplo, a função didática ser outorgada a cada análise. Ou seja, para determinado paciente, o analista solicitaria ao instituto a concessão da função didática. Mas isso remete a outra questão que abordarei em outro tópico: a distinção entre a função didática e as questões institucionais vinculadas a isso.

Antes gostaria de enfrentar uma importante questão levantada por Luiz Meyer (2003; 2007), que apresenta uma crítica nuclear à existência da análise didática. Diz ele que, em sua proposição, há uma contradição essencial que a transforma num fetiche e numa formação ideológica. Ela seria um fetiche porque

se oferece como a harmonização da incongruência, empenhando-se em conformar a prática analítica a concepções que negam sua essência. A submissão que impregna as regras formais inerentes à organização da análise didática está em oposição ao projeto implícito da psicanálise. A análise didática cria e mantém (apoiada em relações institucionais) um gênero de transferência idealizada que justamente a análise tout court, enquanto prática, tem como meta resolver. Ela procura ocultar de maneira acrítica, sob o pretexto da necessidade, a contínua dicotomia que lhe é implícita. Para isso ela se vale, no seu modo de operar, de pressupostos e ações conflitantes, divergentes e irreconciliáveis (Meyer, 2007, p. 10).

Ele vai adiante e afirma:

No caso do analista, esta ameaça é representada pela percepção inaceitável dos limites da própria análise, daquela a que se submeteu e que pratica, da de seus colegas, de suas dificuldades pessoais, de seus sintomas e de suas idiossincrasias. A análise didática, enquanto fetiche, surge como produto da recusa, por parte dos analistas, dos limites da ação da análise. A história da análise didática é, pois, a história da “legalização” de uma dissociação patológica. Esta afirmação situa com mais clareza a instituição da análise didática no campo da perversão. Esta não reside (ou não somente) no caráter estranho da prática ou mesmo na violência que a impregna. O que a caracteriza, fundamentalmente, é apresentar o verso como reverso, o desvio como norma, criando falsas equivalências que corroem a capacidade de julgamento e o discernimento de valores (p. 11).

Ao lado dos alertas fundamentais de Meyer, a maioria dos autores revisados (Michels, 2000; Bianchedi, 2000; Giovannetti, 2000; Bolognini, 2007) parece também atenta aos limites da análise didática. Bianchedi, por exemplo, embora acredite que as análises de candidato devam ser conduzidas por analistas experientes, alerta que não existe a condição de analista como algo definitivamente conquistado – que ser analista é sempre um “vir a ser analista”. Ou seja, que é sempre uma condição transitória e transitiva. Qualquer um, didata ou não, pode não ser psicanalista no sentido substantivo do termo, a qualquer momento. Dependerá de uma atenção permanente. Ora, quem afirma isso não está negando os limites da análise e muito menos dos analistas.

Giovannetti chega a afirmar que “um didata é aquele que tem uma trajetória especial na psicanálise e em sua instituição e que se dedica a tentar compreender com uma reflexão constante e crítica a estranheza deste ato de transmissão”. Está explícita a necessidade permanente de crítica e reflexão sobre esse ato de transmissão “estranho”. Ou seja, parece ser possível defender a prática de uma análise de formação sob a égide de um instituto de psicanálise e também refletir sobre suas contradições, limites e riscos. Esse é um desafio de todos os psicanalistas. Todos estamos sujeitos a perder a função analítica e deixar de fazer psicanálise. Meltzer (1967/1971) nos alerta nesse sentido e diz que temos o compromisso ético de fazer o máximo de análise possível a cada momento.

O psicanalista, na verdade, vive uma constante revolução paradigmática (Cruz Roche, 1989), pois em sua atividade clínica contraria uma tendência natural da mente e das percepções humanas: a mente tende a manter o inconsciente reprimido, enquanto as percepções, através dos órgãos dos sentidos, tendem a se orientar face ao exterior. Pois, no exercício da psicanálise, as nossas percepções deverão se voltar para o interior da mente dos nossos pacientes e da nossa própria mente. Esta acessibilidade ao inconsciente, o contato com as experiências emocionais que aí se situam, é possível a partir da análise pessoal e do treinamento permanente em supervisão. De acordo com Rafael Cruz Roche (1989), ela não é adquirida de uma vez e para sempre:

Utilizar-se de seu próprio processo mental de uma forma especial é resultado de um aprendizado contínuo que a qualquer momento poderá ser perdido, caso não houver uma atenção permanente a esta tendência. O risco de perder a função analítica, todos corremos. Entretanto, quanto mais sólida a nossa identidade psicanalítica, menor ele será e com mais facilidade poderemos recuperá-la.

A impressão que dá é que a maioria dos autores que defende a existência da figura do analista de formação acredita ser esta a melhor forma de garantir boas análises aos futuros analistas, apesar dos problemas que cercam a prática.

É importante não cair em atitudes idealizadas, pois, se a extinção da figura do analista didata terminaria com as contradições próprias da situação, certamente criaria outras. No modelo francês, por exemplo, a título de eliminar o poder demasiadamente concentrado nas mãos dos didatas, extinguiu-se a figura do didata. Entretanto, a fim de cumprir sua missão ética de avaliar a condição psicanalítica e o grau de preparo do futuro analista, hipertrofiaram-se as funções dos supervisores, que passaram a concentrar boa parte do poder antes localizado nos analistas didatas. Ao mesmo tempo, na medida em que as análises pessoais são realizadas antes do ingresso na formação, isso traz algumas conseqüências: os analistas que iniciam a formação são mais velhos; a seleção tem de ser extremamente acurada, para verificar quem realmente passou por um bom processo analítico e o concluiu com uma identidade psicanalítica sólida; as supervisões, na medida em que o candidato já não está em análise, acabam tendo de “analisar” muitas vezes a contratransferência, criando-se, em algumas situações, transferências com os supervisores difíceis de resolver, estabelecendo-se aí um risco de confusão de setting.

Ou seja, o modelo francês elimina toda a problemática inerente à questão do didata, mas – como não poderia deixar de ser – traz consigo toda uma gama de problemas inerentes ao novo modelo. Isso não o torna pior do que o modelo Eitingon; talvez seja até melhor e mais avançado, mas traz problemas novos que devem ser mais bem estudados e avaliados nas suas conseqüências. Não existem ainda estudos que evidenciem que determinado modelo forma analistas com identificações mais sólidas com o método analítico.

Ainda em relação ao modelo francês, algumas considerações sobre o fato de também serem aceitas análises praticadas por “qualquer div㔠da IPA ou da sociedade. Embora seja uma proposta “mais democrática”, talvez candidatos de “alguns divãs” sejam mais aceitos que outros, visto que determinados analistas podem ser mais prestigiados que outros. Robert Michels (2000) alerta:

Quando o instituto fica à margem do processo de acompanhamento das análises, abre caminho para a interferência de outras pessoas. Uma pessoa que, por exemplo, tem contato com muitos postulantes, poderá ser aquele que indica quem será o “analista didata” [no sentido de indicar com quem o candidato deverá se analisar].

Há o risco de se formarem comboios clandestinos à margem da possibilidade de ingerência do instituto. Assim, se a norma – imprescindível a qualquer situação de ensino/aprendizagem – cria problemas, pior é não haver norma, pois aí podem passar a prevalecer interesses totalmente alheios à formação e fora do alcance do instituto.

 

O analista de formação e a instituição psicanalítica

Stefano Bolognini (2007) reconhece que na Sociedade Psicanalítica Italiana, sem idealizações, admite-se que nem todos os analistas são capazes de analisar futuros analistas. Reconhecem-se qualificações diferenciadas, cujos critérios devem repousar em aspectos científicos e não políticos, a saber: qualidade da produção científica e número de análises concluídas, além da comprovação de uma atividade científica e institucional permanente e freqüente na sociedade psicanalítica. Amati Mehler (2000), mais contundente, afirma que, no sentido de “democratizar” e de eliminar focos de poder em determinados institutos, tem sido preconizado que qualquer psicanalista titulado poderia analisar candidatos, o que não lhe parece justo. Acredita que existem diferenças de qualidade, talento e excelência e que não se deve considerar que todos são iguais. Há que ter cuidado com a eliminação das diferenças e com a postura totalizante que equaciona a todos.

Entretanto, existem diversas dificuldades vinculadas à existência do analista de formação. Uma delas tem sido a excessiva concentração de poder, dado que esses analistas passam a selecionar, analisar, supervisionar e ensinar os futuros analistas. Soma-se ainda o fato de que, em algumas sociedades, apenas estes poderão ocupar cargos administrativos. O problema vem sendo enfrentado de diversas maneiras, mesmo onde é mantida a crença de que o futuro analista deva se analisar com um analista credenciado pelo instituto. Na APU, do Uruguai, por exemplo, foram desmembradas as várias funções do analista didata. Diferenciaram-se as funções de análise, supervisão, ensino teórico e pesquisa psicanalítica, devendo cada colega solicitar o credenciamento para uma ou duas delas. A preocupação maior era evitar a concentração de poder e funções na figura do didata.

Essa atitude vem ao encontro do que é preconizado por Michels (2000), com o que estou amplamente de acordo. Diz ele que devemos desenvolver vários caminhos de ascensão institucional, identificar as funções vitais da instituição e os atributos necessários para cada uma delas. Assim, teríamos, por exemplo, professores de seminários, supervisores, pesquisadores, coordenadores de comissões, diretoria, presidência, direção do instituto e analistas de formação. Haveria caminhos diversos de realização pessoal e profissional dentro da instituição. Isso evitaria que o único caminho de ascensão profissional fosse tornar-se didata, deixando excluídos membros que poderiam sentir-se realizados caso fossem oferecidos múltiplos caminhos de crescimento na instituição. Essa preocupação parece-me essencial: que os membros de uma sociedade sejam contemplados com diversas possibilidades de ascensão e realização na instituição, não apenas aqueles credenciados a analisar futuros analistas. É fundamental, repito, para a saúde da instituição, evitar a criação de uma “casta” que detenha todo o poder na sociedade e que ocupe o “topo” de um único caminho de desenvolvimento institucional.

Outro problema central nos institutos do modelo Eitingon é como designar quem poderá conduzir a análise de futuros analistas. O desafio é definir critérios justos, igualitários, baseados na excelência psicanalítica e não políticos. A maioria dos autores consultados e que acreditam dever existir a figura do analista de formação, credenciado pelo instituto (Amati Mehler, 2000; Michels, 2000; Giovanetti, 2000; Bianchedi, 2000; Bolognini, 2007; Britton, 2007), concorda em que o processo de outorga de funções didáticas deve ser transparente e baseado na avaliação da capacitação profissional e pessoal. O ideal seria os institutos estabelecerem critérios psicanaliticamente embasados para definir que analistas serão credenciados. Seria necessário criar meios de avaliar quais desenvolveram solidamente sua identidade psicanalítica – e estes seriam responsáveis pela condução das análises das futuras gerações de analistas.

Jürgen Hardt (2000) acredita ser necessário que quem acompanha o processo de treinamento tenha domínio seguro do método, conhecimento da tradição da comunidade e um compromisso com a psicanálise no interior de determinada cultura. Giovanetti (2000) postula que a seleção do didata ocorra mediante solicitação do postulante, através do exame de seu currículo psicanalítico, questionado e debatido publicamente por três colegas mais experientes.

Bianchedi (2000) procura definir critérios para designar analistas credenciados pelos institutos. Pensa que os passos deveriam ser os seguintes: depois da solicitação do postulante, este deveria ter alguns anos como membro titular, ou pelo menos oito anos como membro associado; o instituto deveria enviar uma pesquisa a todos os didatas sobre o postulante; o instituto nomearia quatro didatas para manter uma série de colóquios com o postulante, com inclusão de material clínico atual; depois dos colóquios, o grupo apresentaria um relatório com os aspectos positivos e negativos. Terminados esses procedimentos, o instituto tomaria a decisão de aceitar o candidato, adiar por mais um ano a decisão ou recusá-lo, o que significaria que o postulante não poderia se reapresentar nos cinco anos seguintes. Bianchedi sugere que o processo seja transparente e que o postulante seja posto a par dos motivos de cada decisão. Acredita também que a condição de didata deve ser reavaliada periodicamente, mas salienta não saber como se deveria proceder.

Parece atualmente haver uma tendência, em alguns institutos que adotam o modelo Eitingon, de evitar que a condição de didata seja vitalícia. Por exemplo, na Sociedade Psicanalítica Italiana (Bolognini, 2007), a cada sete anos o analista de qualificação deve reencaminhar uma solicitação de novo credenciamento para o exercício dessas funções. Na dinâmica Sociedade Psicanalítica de Caracas (Informação pessoal, artigo 95 dos estatutos da SPC), a cada cinco anos o analista didata precisa reconfirmar suas funções didáticas para poder tomar novos pacientes ou supervisionandos, passando pelo mesmo processo inicial de obtenção das funções didáticas. O procedimento parece-me saudável, especialmente se considerarmos que a atitude analítica não é conquistada de uma vez e para sempre. Como dissemos, ser analista é uma condição transitiva, e, com o passar do tempo, quando já não supervisionamos, não nos analisamos ou, em alguns casos, nos dedicamos a outras psicoterapias – com suas escutas diferenciadas –, corremos o risco de perder a escuta do inconsciente.

 

Comentários finais

A situação é complexa, sem dúvida, mas existe um elemento que me parece ser a essência da discussão: há uma responsabilidade ética dos institutos na tarefa de transmissão da psicanálise, qual seja: garantir que o futuro analista tenha uma análise pessoal consistente. No modelo francês, como o candidato procura a formação já tendo se analisado, a seleção é altamente criteriosa e busca avaliar a consistência dessa análise. No modelo Eitingon e uruguaio, o instituto assume a responsabilidade de indicar analistas de formação, os quais acredita terem uma identificação suficientemente sólida com o método analítico, capaz de propiciar ao futuro analista uma análise consistente.

Ao final deste debate, concluo que, no processo de formação, o fato de estar prevista a análise do futuro candidato com analistas credenciados pelo instituto não abala o projeto da psicanálise, desde que o analista de formação não seja informante; que essa análise, como processo analítico, ocorra totalmente à margem da interferência da instituição; e que o analista tenha suficiente experiência e integridade para manter a mente voltada para sua experiência emocional com o paciente, futuro analista. Essa proposta, todos sabemos, tem vários pontos vulneráveis que, se afetados, podem perverter o processo analítico – perda da neutralidade, uso do paciente em benefício do prestígio ou poder político do analista etc. –, mas qualquer processo analítico está exposto a essas vicissitudes. Além disso, como já foi discutido, a escolha dos analistas credenciados deverá ocorrer com base em critérios psicanalíticos e não políticos. Sabemos o quanto estes interferem, o que entretanto pode ocorrer em qualquer modelo formativo. É desafio, para as instituições psicanalíticas, encontrar meios de impedir que eles subvertam a tarefa de transmissão da psicanálise. E talvez outro desafio seja os institutos desenvolverem meios de avaliar até que ponto, ao final do processo formativo, o futuro analista construiu uma identificação com o método analítico.

Como vimos, tanto um modelo quanto outro têm problemas implícitos, os quais devem ser solucionados mantendo-se a coerência do modelo e a partir da história da instituição. Penso que devemos evitar idealizações e a tentação de importar modelos criados em outros ambientes psicanalíticos, visando solucionar questões específicas daqueles meios.

As instituições saudáveis são vivas. São organismos em constante evolução e transformação, que buscam, a partir de suas crises, experiências e problemas, encontrar formas mais aperfeiçoadas de funcionamento. Entretanto, essas mudanças devem ser consubstanciadas na teoria psicanalítica, como procurei fazer ao longo deste trabalho. Não podemos perder de vista nossa tripla responsabilidade ética na transmissão da psicanálise, como frisei no início: “com o futuro analista, com a psicanálise e com a comunidade à qual vamos oferecer psicanalistas, clínicos. Compete a nós preservar e transmitir o rico método que herdamos às novas gerações, com a maior profundidade possível”.

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Endereço para correspondência
Ruggero Levy
Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre SPPA
Rua Itaqui, 98/203
90460-140 – Porto Alegre RS – Brasil
Tel.: +55 51 3332-9009
E-mail: ruggerol@terra.com.br

Recebido em 9.12.2007
aceito em 18.12.07

 

 

* Membro efetivo da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre SPPA.

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