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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.41 no.4 São Paulo Dec. 2007

 

ARTIGOS

 

A problemática do falso self em pacientes de tipo borderline: revisitando Winnicott1

 

El problema del falso self en pacientes de tipo borderline: revisitando Winnicott

 

The problem of false self in borderline patients: revisiting Winnicott

 

 

Alfredo Naffah Neto2

Pontícia Universidade Católica de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo articula a teoria winnicottiana do falso self cindido à experiência clínica do autor com pacientes de tipo borderline. Desse encontro nasce uma proposta teórica de distinção de dois subtipos de borderline: a personalidade esquizóide e a personalidade “como se”. A partir da descrição da sintomatologia dos quadros, o autor propõe diferentes etiologias para as patologias em questão e descreve sua singularidade nas modalidades transferenciais do trabalho psicanalítico.

Palavras-chave: Borderline; Esquizóide; “Como se”; Etiologia; Modalidade transferencial.


RESUMEN

El ensayo presente articula la teoría del falso self escindido de Winnicott a la experiencia clínica del autor con pacientes de tipo borderline. Ese encuentro produce una propuesta teórica de distinción de dos subtipos de borderline: la personalidad esquizoide y la personalidad “como si”. El autor empieza con la descripción de la sintomatología de esas patologías y, entonces propone etiologías diversas para ellas y también describe su singularidad en las modalidades de la transferencia del trabajo psicoanalítico.

Palabras claves: Borderline; Esquizoide; “Como si”; Etiología; Modalidad de transferencia.


ABSTRACT

This essay articulates Winnicott’s theory of the split false self to the author’s clinical experience implicating borderline patients. This encounter generates a theoretical proposition of two kinds of borderline patients: the schizoid personality and the “as if” personality. The author starts from the description of the symptomatology of these pathological diseases and, then, proposes different etiologies for them, and also describes their singularity in the modalities of transference they produce in psychoanalytical work.

Keywords: Borderline; Schizoid; “As if”; Etiology; Modality of transference.


 

 

O falso self

A temática do falso self apareceu pela primeira vez, dentre os textos de Winnicott, no artigo “Mind and its relation to the psyche-soma”, publicado em 1949 (Winnicott, 1949/1992c). Entretanto, o conceito só viria a ganhar seu estatuto teórico definitivo em 1960, com o aparecimento de “Ego distortions in terms of true and false self” (Winnicott, 1960/1990).

De fato, como o próprio Winnicott reconhece, o conceito em si não era propriamente novo, já tendo sido mencionado anteriormente em psiquiatria, em sistemas filosóficos e em literatura. Na forma patológica relacionada à esquizofrenia, já fora descrito em sua sintomatologia, inclusive no âmbito da própria psicanálise, num artigo de Helen Deutsch, de 1942, sob a forma de “personalidade como se” (Deutsch, 1942). E, antes de Helen Deutsch, em 1932, Sandor Ferenczi anotara no seu Diário clínico: “A esquizofrenia é uma reação de mimikry (= mimetismo) […] no lugar de uma afirmação de si mesmo (revanche, defesa). (Ou seja: os esquizofrênicos são afetados pelo trauma, de fato, antes que tenham uma personalidade)” (Ferenczi, 1932/1985, p. 212). Aí já aparecia, pois, uma primeira idéia da esquizofrenia como reação traumática de mimetização de figuras ambientais, no lugar do si mesmo, descrição esta bastante próxima daquela que Winnicott faria, mais tarde, do falso self cindido como defesa esquizofrênica.

Entretanto, em que pesem todos esses antecedentes, o fato é que o conceito só ganharia sua forma mais acabada e seu sentido maior no âmbito da clínica psicanalítica – gerando mudanças importantes na técnica – a partir dos trabalhos de Winnicott.

Mas, como ele mesmo afirma, Freud já dera as bases primeiras para a formulação dessa distinção entre falso e verdadeiro self, quando propôs uma divisão do ego “em uma parte que é central e potencializada pelos instintos [ou pelo que chamou de sexualidade, pré-genital e genital], e uma parte que é voltada para fora e relacionada com o mundo” (Winnicott, 1960/1990, p. 140). Essa parte voltada para fora seria aquela responsável pela função adaptativa do ego à realidade. Seria exatamente essa proposta freudiana que inspiraria a formulação winnicottiana do falso self em indivíduos normais:

Na saúde, o falso self está representado pela organização total da atitude social polida e amável, de “não demonstrar abertamente seus sentimentos”, como se poderia dizer. Muito se passa até advir a habilidade do indivíduo para renunciar à onipotência e ao processo primário, em geral; o ganho é o lugar na sociedade, que nunca pode ser conseguido e mantido somente pelo self verdadeiro (Winnicott, 1960/1990, p. 143).

Nessa direção, Winnicott chega mesmo a formular a idéia de uma parte central do self, destinada a permanecer para sempre solitária e incomunicável, nos indivíduos saudáveis; aquilo que se poderia chamar de “foro íntimo”, do qual emana toda a espontaneidade e criatividade próprias. Ao falso self caberia toda a tarefa de contato com o mundo, funcionando como uma ponte entre o self verdadeiro e a realidade exterior.

Meu objetivo aqui, porém, não é discorrer sobre o falso self em indivíduos normais, mas justamente descrever sua ocorrência patológica, como defesa esquizofrênica, em pacientes de tipo borderline: aquilo que podemos denominar de falso self cindido.

 

O falso self cindido

A formação do falso self cindido, como defesa esquizofrênica, segundo a descrição de Winnicott, ocorre sempre que o bebê tem de interromper a sua continuidade-de-ser, para reagir a uma mãe insuficientemente boa, ou seja, incapaz de garantir que as suas necessidades básicas sejam atendidas nas formas e tempos conformes à sua singularidade. Ou seja, sempre que o infante não encontra, no ambiente, suporte suficiente para a criação de um mundo subjetivo, expressão de seu gesto espontâneo. Mas o falso self cindido também se faz necessário quando esse mundo subjetivo é criado e, enquanto tal necessita ser protegido desse ambiente, devido ao caráter caótico, inesperado, e ameaçador do mesmo.

Na concepção winnicottiana, a produção do mundo subjetivo dá-se por meio da criação do objeto subjetivo, quer dizer, do objeto na medida do infante, que se constitui ao longo do tempo, quando – reiteradas vezes – o bebê experimenta o seio como sendo criado pelo próprio impulso de fome que o atravessa, vindo, então, saciá-la. Ou vivencia a massagem do ventre (pela mão da mãe) surgindo como um desdobramento da própria dor de barriga que o retesa, gesto que diminui a intensidade da dor e permite algum relaxamento. Esses aparecimentos “mágicos” criam uma ilusão de onipotência, na medida em que é a própria sensação vital do bebê que se metamorfoseia no objeto, quando dele necessita. Ou, pelo menos, é dessa forma que o rebento experimenta tais acontecimentos. Nesse período de vida, ele não sabe que, por trás de tal dinâmica, existe uma mãe-suficientemente-boa, capaz de prover o objeto no momento exato e na sua medida. Somente mais adiante – se tudo correr bem nessa fase – poderá ser desiludido e perceber a existência de um ambiente distinto de si próprio, mantendo, ao mesmo tempo, contato com seu potencial espontâneo-criativo.

Mas, nem sempre o ambiente é suficientemente responsivo às suas necessidades e, quando essa não-responsividade vai além de uma certa medida, pode vir a ter um efeito traumático; quando isso acontece, o bebê tem de interromper a sua continuidade-de-ser e sair da sua ignorância saudável, reagindo ao ambiente para se proteger. Então, perceberá, precocemente, a existência de um ambiente da pior forma possível.

Explico-me melhor: sempre que o ambiente do bebê estiver em excesso ou em falta frente às suas necessidades e sempre que esse excesso ou essa falta ultrapassarem um certo nível de suportabilidade, o bebê tenderá a formar um falso self, como uma barreira frente ao meio ambiente ou frente aos seus impulsos vitais ameaçadores, barreira esta destinada a proteger o self verdadeiro daquilo que Winnicott denominou angústias impensáveis3.

Um ambiente em excesso é um ambiente basicamente intrusivo, que se impõe à subjetividade do bebê, fazendo-o descobrir a alteridade num período em que não tem condições próprias para lidar com ela; esse é o tipo de ambiente que impede a criação do objeto subjetivo por meio de uma presença impositiva. Nesse caso, o falso self forma-se entre o self verdadeiro e as intrusões ambientais.

O ambiente em falta é aquele que deixa o bebê à mercê dos seus impulsos vitais (como uma fome, uma dor intensa etc.), que nessa fase ainda não são experimentados como próprios e que – quando atingem um nível de intensidade excessiva, por um tempo também excessivo – são vividos como uma ameaça eminente de colapso. Nesse caso, a criação do objeto subjetivo é impedida pela falta de presença do adulto e o falso self forma-se entre o self verdadeiro e os impulsos vitais do bebê, ameaçadores.

Mas, essas duas dinâmicas descritas de forma assim distinta têm apenas um cunho didático, nunca se realizando de forma absoluta. Na verdade, o ambiente intrusivo também deixa, em algum nível, a criança à mercê dos impulsos vitais, já que impõe formas e padrões que pouco tem a ver com as necessidades reais do bebê: seu ritmo e tempo de mamadas etc. De forma análoga, o ambiente que não atende às necessidades mínimas do bebê também acaba levando à criação de barreiras protetoras contra o ambiente, já que gera uma total desconfiança do bebê sobre o que pode esperar dele. Isso significa dizer que o falso self sempre se forma como uma barreira, em parte frente ao ambiente, em parte, frente aos impulsos vitais ameaçadores, em maior ou menor grau.

Acontece, então, uma cisão entre os dois selves, caso contrário a função protetora do falso self não teria eficiência. Isso significa dizer que, tudo aquilo que o falso self recebe como impacto, seja do ambiente ou dos impulsos vitais ameaçadores, não chega ao self verdadeiro ou chega intensamente filtrado, não podendo, pois, ser processado como experiência, ou sendo processado de forma parcial e lacunar.

Esse funcionamento, aplicado aos impulsos sexuais, dificulta sobremaneira a apropriação dos mesmos, impedindo a formação da sexualidade ou, no melhor dos casos, gerando uma sexualidade incipiente.4 Isso, na medida em que a experiência, tal qual Winnicott a entende, implica necessariamente um contato direto, uma relação de trocas, entre o self verdadeiro – o gesto espontâneo do bebê – e o meio ambiente. É em função do holding recebido desse ambiente, que o self torna-se capaz de, gradativamente, ir experienciando e integrando os impulsos sexuais/agressivos, transformando estímulos físicos em sensações próprias, no âmbito corporal e psíquico. E é somente na medida em que essas sensações possam ir se integrando ao self, que se pode formar uma sexualidade e uma agressividade em condição de serem utilizadas e dirigidas para fins vitais.

Quando ocorre a clivagem entre os dois selves, todo esse processo é interrompido. Seu grau maior define, justamente, a dinâmica básica do paciente borderline.

É preciso, entretanto, definir o uso que estou dando aqui ao termo borderline.5 Entendo por essa designação, indivíduos que vivem nas bordas, ou seja, nas fronteiras entre a neurose e a psicose, podendo – em períodos mais saudáveis, quando o falso self cumpre seu papel defensivo, adaptativo, de forma mais íntegra – apresentarem uma dinâmica que se assemelha à do neurótico. Mas é importante não nos deixarmos enganar por essa aparência, pois noutros períodos mais críticos – quando o falso self malogra, sofrendo desintegrações –, esses mesmos indivíduos podem ser literalmente invadidos pelo mundo e afundar em sintomas esquizofrênicos de tipos variados. Penso que é justamente nessa acepção mais ampla que Winnicott emprega o termo borderline.

Dentro desse uso, pretendo, pois, distinguir dois sub-tipos de paciente borderline: aquele que – seguindo os usos vigentes – chamei de personalidade esquizóide e uma segunda categoria que – seguindo Helen Deutsch – denominei personalidade “como se”. Ambos os tipos apresentam formas diferentes de falso self, que pretendo descrever aqui, e que se relacionam da mesma forma, a etiologias diferentes das patologias em questão.

Também, conforme já sugeri, pretendo dar algumas indicações importantes sobre a clínica desses tipos de paciente.

 

A personalidade esquizóide

As falhas de adaptação do ambiente ao bebê podem atingir diferentes níveis, com conseqüências diversas. A descrição que Winnicott faz, a seguir, indica o que acontece com o bebê quando essas falhas ocorrem num grau relativo ou num ambiente caótico, que se apresenta ora de um jeito, ora de outro. Ou seja, quando as falhas ambientais ainda permitem algum tipo de constituição de objeto subjetivo e de ilusão de onipotência, mas não num nível suficiente para impedir a formação do falso self cindido, como defesa. Diz Winnicott:

Quando há um certo grau de falha de adaptação, ou uma adaptação caótica, o infante desenvolve dois tipos de relacionamento. Um tipo é o relacionamento silencioso e secreto com um mundo interno de fenômenos subjetivos, essencialmente pessoal e privado, e é somente esse relacionamento que parece real. O outro é o relacionamento de um falso self com um ambiente externo ou fixado, obscuramente percebido. O primeiro contém a espontaneidade e a riqueza; o segundo é um relacionamento de submissão mantida para ganhar tempo até que, talvez, o primeiro possa conseguir o seu direito (Winnicott, 1988, p. 109; versão alternativa em rodapé).

Essa dinâmica descreve, a meu ver, justamente a formação da personalidade esquizóide.

Um exemplo bastante eloqüente desse tipo de formação é o paciente descrito por Winnicott num livro bastante conhecido: Holding and Interpretation (Winnicott, 1986/1989a).6 Esse paciente, diagnosticado por Winnicott como um esquizóide-depressivo (Winnicott, 1954/1989c, p. 187),7 havia, justamente, sofrido as falhas de uma mãe que achava que tinha de ser perfeita e que, nesse sentido, não tinha qualquer flexibilidade quando amamentava seu filho. Tentava produzir uma mamada perfeita, mas curiosamente, isso acontecia sempre no final da alimentação. Sabemos disso, justamente porque o paciente apresentava, como sintoma, quando adulto, medo de completar experiências (por exemplo, medo de chegar ao fim da análise).

Podemos supor, então, que, no início das mamadas e durante certo tempo – tempo em qual, justamente, a mãe permitia uma relação mais livre –, o bebê tinha condições suficientes, ainda que de forma precária, de criar o seio segundo suas necessidades, constituir um objeto subjetivo e uma zona de ilusão. Entretanto, quando chegava ao fim da mamada e a mãe atuava seus modelos perfeccionistas, o bebê era subitamente arrancado do seio-subjetivo – que desaparecia subitamente – e colocado em contato com um seio-objetivo, desconhecido e aterrorizante. É justamente essa a reconstrução do acontecimento dada por Winnicott ao paciente, como interpretação, numa das sessões, quando falou do pavor que ele tinha “do conteúdo violentamente hostil da satisfação no final da refeição, o que significava aniquilação do desejo e do seio subjetivo, seguido da hostilidade ao seio objetivo que subsistia” (Winnicott, 1986/1989a, p. 10).

A reiteração dessa dinâmica nas mamadas acabou por criar, então, no psiquismo do bebê, duas formas de relação objetal cindidas. A relação com o objeto subjetivo foi protegida e colocada fora de contato com o ambiente, permanecendo circunscrita a uma dinâmica onipotente. Para funcionar como pára-choque frente ao seio aterrorizante foi criado um falso self por hipertrofia e cisão da função mental, que passou então a vigiar e controlar, por vias intelectuais, os acontecimentos ambientais.

Winnicott relata que, numa primeira fase da análise, somente tinha contato com esse falso self do paciente: “Seu discurso era deliberado e retórico”, ele comenta (Winnicott, 1986/1989a, p. 20). Até que, após longos meses, o paciente disse que, agora, ele mesmo estava vindo em pessoa para o tratamento e, pela primeira vez, sentia-se esperançoso. A interpretação mais descritiva da dinâmica desse paciente foi aquela formulada por Winnicott na sessão de 22 de junho, quando lhe disse: “Suas alternativas são: ser um indivíduo que não dá valor ao ambiente ou estar disponível a ele e perder a identidade individual” (Winnicott, 1986/1989a, p. 157).

Também tenho um paciente de dinâmica esquizóide, com um falso self formado por hipertrofia intelectual. Rapaz bastante inteligente era estudante universitário quando iniciou a sua análise. Apesar disso, como sua função intelectual funcionava dissociada do todo, ela costumava falhar nos momentos mais decisivos: quando tinha de realizar um trabalho para ganhar nota ou fazer uma prova. Por isso, demorou muito mais tempo para concluir a universidade e só conseguiu o intento graças ao desenvolvimento do processo de análise.

Esse paciente evitava, como todo paciente esquizóide, contatos muito longos com as diferentes exigências adaptativas ambientais, pois sabia, de alguma forma, que seu falso self intelectual era bastante precário; vivia recolhido num mundo fechado, quase autista. Dizia que o sol fazia mal à sua vista; por isso, quase só saía de casa à noite. E, durante os períodos de colapso maior do falso self, esse indivíduo fechava-se na sua bolha, num funcionamento ilusório e onipotente: permanecia durante dias sentado em frente da televisão ligada, chupando o dedo, ou seja, alucinando o objeto subjetivo; acabava o dia, começava a noite e o ciclo temporal se repetia sem qualquer mudança de sua parte. Levantava-se somente para as necessidades básicas e retomava a posição inicial.

Nas relações de namoro, como não podia se restringir ao funcionamento intelectual cindido e necessitava expor seu precário funcionamento afetivo-sexual, vivia em relações fusionadas, simbióticas e regidas por sua área de onipotência. O uso de drogas, especialmente cocaína, durante esse período, era bastante freqüente.

Seu processo analítico implicou (e ainda implica, algumas vezes) um esforço gigantesco para conseguir desfazer a cisão entre os dois mundos e conseguir relacionar-se com as demandas da realidade, conservando, ao mesmo tempo, a sua criatividade originária.

Pode-se dizer, sem sombra de dúvida, que a característica maior da personalidade esquizóide é usar como eixo de sobrevivência preferencial a relação de objeto subjetiva, pessoal, privada, restrita à sua área de onipotência e habitar, somente quando estritamente necessário, a relação do seu falso self com a realidade externa. Isso porque o esquizóide pôde conquistar, ainda que precariamente, a formação de um mundo subjetivo, que é aquele que contém a sua espontaneidade e lhe parece real. O grande problema é que é um mundo subjetivo fechado à realidade; por essa razão, só pode processar como experiência os filetes precários de contato com o mundo que escapam à filtragem do falso self. Por isso, o seu desenvolvimento fica, em larga escala, bloqueado e congelado no tempo.

 

A personalidade “como se”

À diferença da esquizóide, a personalidade “como se” não conseguiu atingir, minimamente, a constituição de um objeto subjetivo, nem de uma ilusão de onipotência. Nesse caso, as deficiências ambientais foram muito mais incisivas, levando à formação de um único tipo de relacionamento: o do falso self com o ambiente, funcionando como uma barreira que protege, através de uma cisão bastante radical, o isolamento do self verdadeiro.

Nesse sentido, esse tipo de indivíduo não pode contar – tal qual o esquizóide – com uma realidade subjetiva, tendo de viver colado ao seu falso self – portanto, colado ao mundo e em total submissão às demandas ambientais, pelo medo da perda de contato objetal. Seu self verdadeiro permanece, pois, oculto e isolado dele próprio, sendo muito difícil – quase impossível – qualquer contato com suas necessidades mais pessoais.

Nesse caso, como tem de servir como o único eixo de sobrevivência do indivíduo, o falso self exibe uma formação muito mais sofisticada. Embora seja muito comum que o seu arcabouço principal seja também formado pela função intelectual hipertrofiada e cindida, ele se preenche de formas humanas: uma espécie de amálgama, formado através de múltiplas mimetizações, identificações e introjeções de traços recortados do seu ambiente originário: a mãe, a tia, a babá etc. Essa colagem pode ter a forma exterior de uma verdadeira personalidade e, à primeira vista, enganar o observador externo, já que exibe uma capacidade de adaptação ambiental exemplar. Entretanto, pode-se dizer que se trata de uma personalidade sem alma, cuja característica maior é a aparência pura, destituída de sentido existencial: tudo parece ser, sem sê-lo verdadeiramente, daí o nome “como se”.

Alfredo J. Painceira (1997, p. 160) comenta, nessa direção, que os fragmentos múltiplos desse tipo de falso self (formados pelos traços ambientais internalizados), freqüentemente funcionam de forma auto-suficiente e independente uns dos outros, cada um deles ocupando alternadamente a consciência, em cada período, como se fossem “múltiplas personalidades” que tomam conta do indivíduo. Isso acontece em maior ou menor grau e em diferentes níveis de gravidade, dependendo do caso; mas é esse fenômeno que produz a labilidade emocional e ideacional desse tipo borderline. Quando ocorre num grau muito intenso, pode-se ver a alternância, na personalidade do paciente, com muita rapidez, de personagens dissociados entre si, como o “paranóico”, “o paciente exemplar”, “o detonador” etc.8

Já o falso self do esquizóide apresenta uma estrutura em geral mais homogênea, menos facetada, menos sofisticada do que o da personalidade “como se”, pois não constitui o eixo de sobrevivência preferencial do esquizóide, mas somente uma forma provisória de contato com o mundo externo, à espera de condições ambientais melhores para o descongelamento da relação self verdadeiro – objeto subjetivo.9

Já o falso self da personalidade “como se” tem de funcionar como a única fonte de “relações objetais”, daí a sua sofisticação. Suas características aparecem muito bem descritas por Helene Deutsch, no artigo já citado. Ela diz:

É como a performance de um ator tecnicamente bem treinado, mas a quem falta a centelha necessária para tornar suas personificações verdadeiras à vida. […] O mesmo vazio e a mesma falta de individualidade que são evidentes na vida emocional também aparecem na estrutura moral. Completamente sem caráter, inteiramente desimbuída de princípios, no sentido literal do termo, a moral dos indivíduos ‘como se’, seus ideais, suas convicções são simplesmente reflexos de outra pessoa […]. Ligando-se com grande facilidade a grupos sociais, étnicos e religiosos, eles buscam, por adesão ao grupo, dar conteúdo e realidade ao seu vazio interno e estabelecer a validade de sua existência por identificação (Deutsch, 1942, p. 303-5).

Também não conseguem constituir uma verdadeira história de vida, apresentando grandes falhas de memória, nesse aspecto, de forma bastante semelhante aos indivíduos esquizóides. Assim me disse uma paciente de tipo “como se” (já referida num outro texto):

Quando encontro amigas da infância e conversamos, rememorando situações de jogo, situações em que estávamos juntas e, segundo elas, expressando emoções intensas, elas acabam sempre ficando muito surpreendidas – e eu muito envergonhada –, porque nunca me lembro de nada. É como se as lembranças não grudassem em mim, como se não houvesse cola capaz de fazê-las grudar em mim (Naffah Neto, 2005, p. 452).

Ou, num outro momento: “Até agora, eu só tinha pré-história; sinto que, agora, estou começando a criar uma história” (ibid., p. 452-3).

Esses indivíduos, quando vêm procurar análise, apresentam como queixas principais: a sensação de que a sua vida é inteiramente falsa, sem sentido de realidade, sem lastro afetivo. Muitos têm a sensação de serem atores de um enredo estrangeiro, não próprio, e de não terem qualquer acesso às suas necessidades e desejos.10

A clínica winnicottiana dos casos de tipo borderline

A psicanálise dos pacientes de tipo borderline – sejam eles esquizóides ou “como se” – envolve, em primeiro lugar, a criação de um vínculo terapêutico de confiança. Esta é, talvez, a condição mais necessária, fundamental e, ao mesmo tempo, a mais difícil de ser alcançada. Trata-se de pessoas que desenvolveram um alto grau de desconfiança em relação ao ambiente e, geralmente, é necessário muito tempo – e muitos testes – para que o analista passe nas provas.

Mas é somente quando se consegue esse feito, que o falso self desses pacientes podem começar a abaixar a guarda, a perder a sua função basicamente defensiva, e que as cisões podem se tornar mais porosas, criando canais para que o ambiente terapêutico possa atingir o self verdadeiro dos indivíduos, e fazer com que possam experienciar – agora, por meio da transferência – acontecimentos da sua história de vida que permaneceram lacunares. A regressão aos acontecimentos traumáticos dos estágios de dependência e a revivência transferencial dos mesmos de forma reparadora constitui, para Winnicott, a grande ferramenta terapêutica.

Na minha experiência pessoal, pacientes de tipo “como se” constituem casos mais graves e difíceis do que esquizóides, com maior grau de desconfiança e, também, maior grau de desesperança. Mas não tenho certeza de que isso se possa generalizar; seria necessária uma pesquisa entre diferentes psicanalistas para se chegar a um resultado menos parcial.

De qualquer forma, o que pude avaliar, na minha prática, é que os pacientes de tipo “como se”, ao longo do processo de cura, têm de constituir – por meio da transferência – um mundo subjetivo e, quando o conseguem, entram numa dinâmica bastante semelhante à do tipo esquizóide. Ou seja, como “gatos escaldados que têm medo de água fria”, ao conseguirem o grande feito, recolhem-se nos seus mundos pessoais, tais quais os esquizóides, temendo terem de novamente se escravizar frente às exigências do ambiente ameaçador. Portanto, de forma geral, pensando-se no processo analítico como um todo, é como se o esquizóide – quando comparado ao tipo “como se” – já estivesse a meio caminho da cura.

Creio, entretanto, que generalizações desse tipo podem ser bastante perigosas, já que é possível, também, encontrar pacientes esquizóides altamente difíceis e resistentes ao contato terapêutico, demandando do analista uma grande dose de paciência. Também, conforme já disse anteriormente, não se podem desconsiderar as grandes dificuldades do esquizóide – ao longo do processo analítico – para vir a se adaptar razoavelmente às demandas ambientais, sem perder contato com sua criatividade originária.

Com ambos os pacientes de tipo borderline, durante os períodos de em que predominam produções psíquicas narráveis (sonhos, relatos verbais variados), é possível trabalhar com interpretações, desde que com muito tato e muito cuidado, para não repetir o ambiente intrusivo original (se esse for o caso). De qualquer forma, é importante sempre lembrar das recomendações de Winnicott, já no final de sua carreira de psicanalista, quando descobriu que interpretar tudo o que tinha possibilidade de ver muitas vezes não havia sido bom. Considera, então, que teria sido muito mais produtivo ter deixado seus pacientes caminharem no ritmo próprio e chegarem, eles mesmos, às suas interpretações (Winnicott, 1989b, p. 581-2).

De qualquer forma, convém sempre lembrar que, para esse tipo de patologia, a interpretação não constitui a ferramenta psicanalítica-mor e, sim, a criação de um ambiente terapêutico de confiança que abra caminho para regressões aos estágios de dependência, por meio da transferência.

É importante assinalar também que, na minha experiência clínica, o trabalho com pacientes “como se” implica uma lenta desconstrução do falso self, como conseqüências drásticas, no plano da realidade. No caso da paciente já citada, implicou, por exemplo, a perda do emprego e um período em que teve de ser sustentada pela família. No plano da análise, houve até mesmo um período em que tive de atendê-la sem cobrar honorários, e que fez parte do processo de regressão a estágios de dependência, que viveu comigo transferencialmente. Tudo isso, entretanto, foi fundamental para que mais adiante ela pudesse conquistar um outro trabalho, com um tipo de funcionamento psicossomático mais integrado, envolvendo a sua criatividade originária.

 

Peculiaridades da transferência, com pacientes de tipo borderline

Num artigo de 1955, intitulado “Clinical Varieties of Transference”, Winnicott traçou as diferenças que considera fundamentais entre as formas típicas de transferência de pacientes neuróticos e as de pacientes com defesas esquizofrênicas. Primeiramente, ele nos faz uma recomendação sobre a melhor forma de se atuar clinicamente, com ambos os tipos de pacientes:

No trabalho que estou relatando, o analista segue o princípio básico da psicanálise, que diz que é o inconsciente do paciente quem dirige e que deve-se ir no seu encalço. Ao lidar com uma tendência regressiva, o analista deve estar preparado para seguir o processo inconsciente do paciente, se não quiser lançar mão de uma forma diretiva e, então, sair fora do papel de analista. Eu descobri que não é necessário sair fora do papel de analista e que é possível seguir a direção do inconsciente do paciente nesse tipo de caso, tal como na análise das neuroses (Winnicott, 1955/1992a, p. 297).

Posto esse solo comum, Winnicott começa a nos falar sobre as diferenças entre os dois tipos de trabalho clínico. A primeira delas é aquela sobre a qual já falei brevemente aqui: que, na análise de neuróticos, o ambiente analítico tem uma importância relativamente pequena – sendo a principal ferramenta a interpretação – ao contrário do trabalho com pacientes de tipo borderline, no qual ele possui uma importância decisiva. E Winnicott avisa:

Por ambiente (setting) estou entendendo a soma dos detalhes do manejo. […] O comportamento do analista – representado pelo que chamei de ambiente (setting) – de ser suficientemente bom na questão da adaptação à necessidade é gradualmente percebido pelo paciente como algo que aumenta a esperança de que o self verdadeiro possa, finalmente, correr os riscos envolvidos nesse seu começar a viver a experiência (Winnicott, 1955/1992a, p. 297).

Aí começam a ser descritas, mais especificamente, as diferenças entre os dois tipos de transferência. A primeira delas é assim posta:

Enquanto que, na neurose de transferência, o passado vem para o consultório, nesse tipo de trabalho é mais verdadeiro se dizer que é o presente que volta ao passado. Então, o analista vê-se confrontado com os processos primários do paciente no ambiente em que foram primeiramente validados. […] Há, então, pela primeira vez, para o paciente, a oportunidade para o desenvolvimento de um ego, para a sua integração a partir dos núcleos desse ego, para o estabelecimento de um ego corporal, e também para o seu repúdio a um ambiente externo, simultâneo ao início de um relacionamento com objetos. Pela primeira vez, o ego pode experienciar impulsos do id, e sentir-se real ao fazer isso, como também ao descansar do ato de experienciar (Winnicott, 1955/1992a, p. 298).

A diferença posta, de que é o passado que habita o presente – na neurose de transferência –, enquanto que é o presente que se desloca para o passado – na psicose de transferência –, não é pura retórica. Diz Winnicott, falando sobre os elementos do ambiente psicanalítico:

O divã e os travesseiros estão lá para o uso do paciente. Eles aparecerão em idéias e sonhos e, então, representarão [will stand for] o corpo, os seios, os braços, as mãos etc. do analista, numa variedade de modos. Mas enquanto o paciente está regredido (por um momento ou uma hora ou um longo período de tempo), o divã é o analista, os travesseiros são os seios, o analista é a mãe numa certa era passada (Winnicott, 1954/1992b, p. 288).

Ou seja, o que para o neurótico é símbolo, para o borderline regredido é pura realidade. Por fim, na análise de pacientes desse tipo,

[…] constrói-se uma habilidade do paciente para usar o sucesso limitado do analista à adaptação, de tal forma que o ego do paciente torna-se capaz de começar a recordar os fracassos originais, todos os quais tinham sido gravados e mantidos em prontidão. Essas falhas tiveram um efeito disruptivo naquela época, e o tratamento que estou descrevendo terá percorrido um grande caminho, quando o paciente for capaz de assumir um exemplo da falha original e sentir raiva por causa dela. Somente quando o paciente atinge esse ponto, entretanto, pode ter início o teste de realidade. Parece que algo como uma repressão primária recolhe esses traumatismos recordados, uma vez que tenham sido usados no tratamento (Winnicott, 1955/1992a, p. 298, meus grifos).

Ou seja, é somente então que pode ter início uma dinâmica normal/neurótica. Winnicott continua:

Nessas fases do trabalho analítico, aquilo que seria chamado de resistência num trabalho com pacientes neuróticos, indica que o analista cometeu um erro, ou, em algum detalhe, comportou-se mal; de fato, a resistência permanece até que o analista descubra o seu erro, preste contas dele e o utilize. Se ele se defende, o paciente perde a oportunidade de sentir raiva pela falha passada, justamente quando a raiva estava se tornando possível pela primeira vez. Há, aqui, um grande contraste entre este trabalho e o trabalho com pacientes neuróticos, com o ego intacto. […] A transferência negativa da análise de neuróticos é substituída pela raiva objetiva pelas falhas do analista […] (Winnicott, 1955/1992a, p. 298-99).

Mas se toda essa descrição pode levar a crer que esses dois tipos de análise – de pacientes neuróticos e de tipo borderline – se excluem mutuamente, para Winnicott não é bem assim. Diz ele:

No meu trabalho clínico, provei, pelo menos para mim mesmo, que um tipo de análise não exclui a outra. Eu me descubro deslizando de uma para outra e voltando à primeira, de acordo com a inclinação dos processos inconscientes do paciente. Quando um trabalho dessa natureza a que me referi se completa, ele leva naturalmente para o trabalho analítico comum, a análise da posição depressiva e das defesas neuróticas do paciente com um ego, um ego intacto, um ego que é capaz de experienciar os impulsos do id e assumir as suas conseqüências. O que precisa ser feito, agora, é o estudo em detalhe dos critérios pelos quais o analista possa saber quando trabalhar com uma mudança de ênfase, como perceber que uma necessidade que está emergindo é do tipo que eu descrevi como tendo de ser recebida (pelo menos, num sentido simbólico) com uma adaptação ativa, sendo necessário o analista manter todo o tempo em mente o conceito de identificação primária (Winnicott, 1955/1992a, p. 299).

O que o texto de Winnicott mobiliza em mim, de saída, é a associação entre deslizar entre diferentes formas de análise e o ato de dançar. Dançar ao som do inconsciente, dos seus ritmos, das suas melodias desconhecidas. Talvez por isso se diga que esse tipo de trabalho não é para principiantes.

 

Referências

Deutsch, H. (1942). Some forms of emotional disturbance and their relationship to schizophrenia. Psychoanalytic Quarterly, 11:301-321.         [ Links ]

Ferenczi, S. (1985). Journal Clinique: Janvier-Octobre 1932. Paris: Payot. (Trabalho original publicado em 1932.)

Naffah Neto, A. (2005). Winnicott: uma psicanálise da experiência humana em seu devir próprio. Natureza Humana, 7(2):433-454.

Painceira, A. J. (1997). Análise estrutural da patologia fronteiriça. In J. Outeiral & S. Abadi (orgs.), Donald Winnicott na América Latina: Teoria e clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Revinter.

Winnicott, D. W. (1988). Establishment of relationship to external reality In D. W. Winnicott, Human Nature, parte 4, cap. 1. London: Free Association Books.

______(1989a). Holding and interpretation. London: Karnac. (Trabalho orginal publicado em 1986.)

______ (1989b). Postscript D. W. W. on D. W. W. In D. W. Winnicott, Psycho-analytic explorations. Cambridge, Mass.: Harvard University Press.

______ (1989c). Withdrawal and regression. In D. W. Winnicott, Holding and interpretation, p. 187-193. (Trabalho original publicado em 1954.)

______ (1990). Ego distortions in terms of true and false self. In D. W. Winnicott, The maturational processes and the facilitating environment. London: Karnac. (Trabalho original publicado em 1960.)

______ (1992a). Clinical varieties of transference. In D. W. Winnicott, Trough paediatrics to psychoanalysis. London: Karnac. (Trabalho original publicado em 1955.)

______ (1992b). Metapsychological and clinical aspects of regression within the psycho-analytical set-up. In D. W. Winnicott,Trough paediatrics to psychoanalysis. (Trabalho original publicado em 1954.)

______ (1992c). Mind and its relation to the psyche-soma. In D. W. Winnicott, Trough paediatrics to psychoanalysis. (Trabalho original publicado em 1949.)

 

 

Endereço para correspondência
Alfredo Naffah Neto
Rua Dr. Alceu de Campos Rodrigues, 309/73 – Vila Olímpia
04544-000 – São Paulo SP – Brasil
Tel.: +55 11 3045-3082
E-mail: anaffah@giro.com.br

Recebido em 19.5.2007
aceito em 21.8.2007

 

 

1 Este artigo contou com a leitura crítica inicial do colega psicanalista Luis Cláudio Figueiredo, a quem agradeço.
2 Psicanalista, mestre em filosofia pela USP, doutor em psicologia clínica pela PUC-SP, professor titular da PUC-SP no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica.
3 Winnicott define como agonias impensáveis: retornar a um estado de não-integração; cair para sempre num vazio sem fundo; o estranhamento em relação ao próprio corpo, sentido como não-próprio; a perda do sentido de realidade; a perda da capacidade de relacionar-se com objetos; o completo isolamento, sem qualquer forma de comunicação.
4 Winnicott entende que, inicialmente, o id é exterior ao núcleo de onde se desenvolverá o self; portanto, que a sexualidade só poderá vingar, efetivamente, se o ambiente der sustentação para que o bebê possa experienciar e se apropriar paulatinamente dos impulsos sexuais que o atravessam (uso aqui um neologismo em português: o verbo experienciar, já que nenhum outro pode expressar esse processamento da experiência, tal qual Winnicott o propõe).
5 O termo borderline poderia ser traduzido pelos equivalentes em português “fronteiriço” ou “limítrofe”, mas o uso clínico instituído leva-me a preferir manter o termo no original inglês.
6 Este livro contém o relato da segunda análise do paciente, além de trazer em anexo um texto sobre a sua primeira análise, ambas realizadas com Winnicott, em épocas diferentes. Esse segundo texto é “Withdrawal and regression”.
7 O diagnóstico duplo – esquizóide e depressivo – envolve duas etiologias diferentes, que se somaram nesse caso. Para um aprofundamento da questão, é necessário acompanhar as sessões descritas em Holding and interpretation e o desvelamento gradativo de ambas as etiologias, decorrentes de insuficiências ambientais.
8 Cabe ressaltar aqui a equivalência – ainda que não ponto a ponto – entre o quadro que denominei personalidade “como se” e o que Painceira chama de patologia fronteiriça.
9 A maior homogeneidade e coerência do falso self do esquizóide – quando comparado ao do “como se” – constitui um item em que concordo com Painceira, no texto citado. Entretanto, discordo também quando, no mesmo texto, ele afirma que o falso self do esquizóide apresenta “uma excelente adaptação às exigências da realidade, a tal extremo que Liberman os denominou de sobreadaptados” (ibid.). Na minha experiência clínica, não é isso que tenho observado. Também não concordo com as etiologias propostas por esse autor: ambiente organizado e previsível nas falhas – na geração da esquizoidia – e ambiente desorganizado e caótico – na geração da patologia fronteiriça (ou personalidade “como se”). Ora, o ambiente caótico, conforme o próprio Winnicott assinala (1988, p. 109; versão alternativa em rodapé), permite algumas vezes, pelas suas alternâncias, a criação de um mundo subjetivo e de duas relações objetais cindidas, dinâmica que, justamente, designei como pertencente ao esquizóide. Reafirmo, pois, o que considero decisivo na diferenciação etiológica dos dois tipos: a possibilidade (ou não) de criação de um mundo subjetivo.
10 Nesse ponto especial, discordo de Helene Deutsch, quando diz que os indivíduos de personalidade “como se” não percebem os seus distúrbios. Ela, na verdade, faz uma distinção entre personalidade “como se” – caso em que o paciente, segundo seu relato, não percebe os próprios distúrbios – e o que ela chama de processos de despersonalização – na qual os indivíduos estariam conscientes dos distúrbios (cf. Deutsch, 1942, p. 301-302). Não creio que essa distinção se justifique. A meu ver, a consciência dos próprios distúrbios acomete os indivíduos de personalidade “como se” em função das falhas do falso self e dos períodos de colapso provocados por elas.

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