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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.41 no.4 São Paulo Dec. 2007

 

ARTIGOS

 

Experiência estética: na sala de análise e no cinema

 

Experiencia estética: en la sala de análisis y en el cine

 

Aesthetic experience: in the analysis room and in the cinema

 

 

Cíntia Buschinelli1

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A finalidade deste trabalho é examinar como Bion – psicanalista que propõe uma teoria sobre o pensar – e Aleksander Sokúrov – o “cineasta-pintor”, que instaura um cinema de observação baseado na semântica das imagens – podem se aproximar. A aproximação se dará no modo de abordagem do mundo mental em Bion, assim como das imagens em Sokúrov. Nesse sentido, a experiência emocional do espectador das imagens-tela de Sokúrov estará em destaque, tanto quanto a experiência emocional do analista imerso no contato com seu paciente. O ponto em comum é a experiência estética, seja ela vivida pelo espectador das imagens cinematográficas, seja ela vivida no encontro entre analista e paciente.

Palavras-chave: Capacidade negativa; Experiência estética; Imagens cinematográficas; Encontro analista-paciente.


RESUMEN

La finalidad de este trabajo es examinar como Bion – un psicoanalista que propone una teoría sobre el pensar – y Aleksander Sokúrov – el “cineasta-pintor”, que instaura un cine de observación que se basa en la semántica de las imágenes – se aproximan. La aproximación ocurrirá en el modo de abordaje tanto del mundo mental en Bion, cuanto de las imágenes en Sokúrov. En este sentido, la experiencia emocional del espectador de las imágenes-tela de Sokúrov estará en destaque, así como la experiencia emocional del analista inmerso en el contacto con su paciente. El punto común de esta aproximación es la experiencia estética, sea ella vivida por el espectador de las imágenes cinematográficas como vivida en el encuentro entre analista y paciente.

Palabras clave: Capacidad negativa; Experiencia estética; Imágenes cinematográficas; Encuentro analista-paciente.


ABSTRACT

The aim of this work is to examine the parallel between Bion – a psychoanalyst who proposes a theory of thinking – and Aleksander Sokúrov – the “painter-filmmaker” who introduces a cinema of observation based on the semantics of images. The intended approximation takes place in the approach mode of Bion’s mental world and that of the images in Sorúkov. As a result, the emotional experience of Sorúkov’s canvas-images’ viewer will be highlighted, as well as that of the analyst’s immersed in the contact with the patient. The meeting point of this approach is the aesthetic experience, be it the one undergone by the viewer of the cinematographic images, or the one that occurs in the encounter between the analyst and the patient.

Keywords: Negative capability; Aesthetic experience; Cinematographic images; Encounter between analyst and patient.


 

 

O livro foi escrito para ser lido até o fim, de uma vez, sem reexame das partes, à primeira vista obscuras.Bion, Aprender com a experiência

A frase em epígrafe encontra-se nas primeiras linhas da introdução do livro Aprender com a experiência. O autor, Bion, alerta para o que encontraremos nas páginas que se seguirão – “partes obscuras” – e, curiosamente, sugere que o leitor vá adiante e que se deixe impressionar por aquilo que, “à primeira vista”, estiver fora do alcance de nossa compreensão. Prosseguindo a leitura das páginas seguintes, habituados que estamos a procurar “compreender” tudo que esta a nossa volta, abandonamos de imediato a sugestão de Bion. A cada frase mal compreendida iniciamos um “reexame” das partes obscuras. E somente no momento em que somos tomados por um desalento produzido pela insistência em compreendê-las, sem sucesso algum, nos lembramos da sugestão proposta pelo autor nas primeiras linhas do livro.

Enfim, com o passar do tempo, à medida que caminhamos mais adentro nas idéias de Bion, percebemos que aquela frase reconhecida inicialmente como um guia para a leitura de um livro complexo carregava em si uma proposta bem mais ambiciosa, qual seja, a de um certo “modo de estar” do psicanalista no encontro com seu paciente. Foi a partir desse ponto – da sugestão desse “modo de estar” proposto por Bion para compor a cena psicanalítica – que encontrei a afinidade com o cineasta russo Aleksander Sokúrov.

A finalidade deste trabalho, portanto, é discutir o modo como Bion – psicanalista que propõe uma teoria sobre o pensar – e Sokúrov – o “cineasta-pintor” que instaura um “cinema de observação baseado na semântica das imagens” (Machado, 2002, p. 19) – podem se aproximar.

Como se verá a seguir, a intenção, aqui, não é apresentar uma “leitura psicanalítica” dos filmes de Sokúrov, ou seja, abordar a narrativa apresentada em busca de explicações sobre as motivações inconscientes dos personagens por ele construídos. A aproximação pretendida se dará no modo de abordagem tanto do mundo mental em Bion, quanto das imagens em Sokúrov. Nesse sentido, a experiência do espectador das imagens-tela de Sokúrov terá tanto destaque quanto a experiência emocional do analista imerso no contato com seu paciente. O ponto comum dessa aproximação é a experiência estética, quer seja ela vivida pelo espectador de imagens cinematográficas, quer no encontro entre analista e paciente.

 

Situando Sokúrov: breves pinceladas de história pessoal

É a Rússia Ocidental ou Oriental? A interrogação é colocada por Sokúrov enquanto sua câmera percorre as paredes do Museu Hermitage,2 em São Petersburgo, em A arca russa, filme de 2002. Esta pergunta recai sobre a Rússia, sobre os russos, e se quisermos, também sobre Aleksander Nikoláievitch Sokúrov que “estreou na direção já no limiar dos anos 80, numa Rússia a caminho da abertura para o Ocidente” (Machado, 2002, p.13). A questão da identidade russa pode ter se singularizado desde muito cedo nas vivências de Sokúrov que nasceu em Podorvikha, Sibéria Oriental em 1951. A família segue o pai, militar de carreira, para a Polônia e o Turquestão, onde o futuro diretor faz seus primeiros estudos. A formação escolar irregular do diretor (iniciada na Polônia e retomada no Turquestão) deu-se, portanto, não nos centros de idéias do país, aqueles dos espetáculos e museus, mas à margem, em condições econômicas difíceis.

Em 1974, obtém a primeira graduação em história, na Universidade Gorki. Em 1978 termina o curso de direção na academia estatal de cinema de Moscou, mas as autoridades proíbem a exibição de seu trabalho de conclusão universitário – A voz solitária do homem –, acusando-o de formalismo e pontos de vista anti-soviéticos. Este mesmo filme é premiado em 1987, em Locarno. “Sokúrov estava destinado a ficar conhecido só dez anos após ter finalizado seu primeiro filme e a tornar-se, portanto, um cineasta pós-soviético” (Machado, 2002, p. 14).

Enfim, sua produção nesta ainda curta carreira de direção cinematográfica é extensa. São 41 filmes, entre documentários e ficção, que compõem sua obra até o momento.

Não há como deixar à parte deste pequeno roteiro da trajetória pessoal, nesta busca de reconhecimento dos pontos de partida para a construção desta original linguagem cinematográfica, o caldo cultural dentro do qual o cineasta se encontrava imerso. Sokúrov pertence ao mesmo território geográfico e cultural de grandes mestres da arte cinematográfica russa. A originalidade do cinema russo está plantada sobre o mesmo terreno do potente desenvolvimento tanto da pintura quanto das coreografias da arte da dança: “Sob o influxo criativo da pintura construtivista e dos balés de Diághilev, os russos introduziram processos fundamentais na arte de enquadrar, tratar e montar seqüências de imagens” (Machado, 2002, p. 10).

O construtivismo, vale dizer, é uma tendência artística que se desenvolveu no princípio do século XX, entre artistas soviéticos, e sua intenção era abolir a arte contemplativa por excelência e valorizar, em contrapartida, a construção da obra de arte através da utilização de materiais diversos, visando dar forma a objetos realmente funcionais. “O procedimento construtivista operará, portanto, sobre a dimensão social das práticas artísticas.” Nenhum artista russo do período de 1917 a 1921 ficou de fora dos intensos acontecimentos políticos e sociais que emergiram em seu país (Albera, 2002, p. 169). Para lembrar alguns deles: Chagall, Kandinski, Malevitch, Maiakovski.

Antes de irmos a diante, vamos nos deter um só instante em Kazimir Malevitch (1878-1935), artista que revoluciona sua pintura com a decomposição do espaço e do tempo. O tempo, em Malevitch, passa a ser pintado como se fosse um processo (Simmen & Kohlhoff, 2002, p. 28) e o espaço não só se decompõe, como também se aplana. Vejamos como tempo e espaço se organizam Amolador: princípio da animação,3 obra de 1913:

Não se trata de reter um instantâneo, mas de reproduzir a rotação permanente da pedra de afiar e dos movimentos do trabalho. Além disso, o fundo é dinamizado e o quadro não tem nenhum um único ponto estático ou fixo. Com o abandono do fundo como pólo estático, Malevitch afasta-se do futurismo, que o conserva, mostrando, por exemplo, um automóvel em andamento sobre um fundo imóvel. O título do quadro, Princípio da animação, remete para a abolição do objeto. A representação do trabalho e do trabalhador surge dinamizada como a sucessão de imagens de um filme. Na mesma altura, desenvolveu-se a teoria física das ondas, que demonstra que o universo não é estático (Simmen & Kohlhloff, 2002, p. 29).

É importante observar, nessa descrição do quadro de Malevicth, o interesse do artista em representar a dinâmica do movimento, ou seja, de um organismo em atividade. Uma tela imóvel representando o movimento. Podemos pensar em Malevitch como um pintor-cineasta, tal qual a denominação composta que Sokúrov recebeu de cineasta-pintor. Vejamos as considerações sobre a tela Mulher ao lado de uma coluna de anúncios,4 de 1914:

O fundo é liso com retângulos monocromáticos. Por cima, estratificam-se elementos de colagem e pintura, que traem a influencia do cubismo. A “mulher” mencionada no título do quadro só é identificável pelo cabelo, em cima à esquerda, e pela disposição figurativa de azul e preto. Os retângulos rosa e amarelo remetem tudo para trás, estruturando a composição do quadro: os elementos formais substituem a figura humana. De forma associativa, o quadro compõe-se dentro da cabeça do observador (Simmen & Kohlhoff, 2002, p. 39).

Interessa-nos particularmente este ponto: a intenção do artista é que sua obra se coloque à disposição do observador em uma interação na qual o sentido da pintura só se realize na mente daquele que a observa. Esta presença viva do observador para dar sentido à obra é o que encontramos em outro precursor de Sokúrov desse mesmo período, Serguei Eisenstein.

O Eisenstein (1898 a 1948) de o Encouraçado Potemkim se destaca não só como cineasta originalíssimo, mas sobretudo como um teórico da arte cinematográfica, ao se dedicar ao desenvolvimento do enquadramento e montagem de imagens, esteio da arte cinematográfica.

O terreno semeado por Eisenstein sobre o qual Sokúrov caminhará a passos largos possui uma área de irrigação comum: é a Freud que Eisenstein recorre para desenvolver suas idéias sobre aquilo que considera a essência da arte cinematográfica: a montagem.5 No artigo com o sugestivo título de “A palavra e a imagem” (1947), é possível reconhecer, na descrição passo a passo de Eisenstein a respeito do processo de montagem de um filme, ou seja, de sua alma cinematográfica, a proposição de Freud6 sobre a formação do processo onírico. Vejamos o que Eisenstein diz:

[…] dois pedaços de filme de qualquer tipo, colocados juntos, inevitavelmente criam um novo conceito, uma nova qualidade que surge da justaposição. Esta não é de modo algum uma característica peculiar do cinema, mas um fenômeno encontrado sempre que lidamos com justaposição de dois fatos, dois fenômenos, dois objetos (Eisenstein, 1947/2002, p. 14).

Vejamos o que Freud tem a dizer sobre o mesmo fenômeno no âmago do exercício do inconsciente: “[…] nos sonhos, em que os modos de pensamento do inconsciente são de fato manifestos, não há conseqüentemente nada como – ou, apenas, justaposição simultânea” (Freud, 1905/1980, p. 232). Ou seja, Freud considera que na formação dos sonhos, dois elementos que aparentemente se excluem, na verdade, estariam produzindo um elemento novo. Esta noção é a mesma que Eisenstein apresenta em sua teoria sobre a constituição da montagem cinematográfica. Vejamos o que ele nos diz:

A justaposição de dois planos isolados através de sua união, não parece a simples soma de um plano mais outro plano –, mas o produto. Parece um produto – em vez de uma soma das partes – porque em toda justaposição deste tipo o resultado é qualitativamente diferente de cada elemento considerado separadamente. A esta altura ninguém ignora que quantidade e qualidade não são propriedades diferentes de um fenômeno, mas apenas aspectos diferentes do mesmo fenômeno (Eisenstein, 1947/2002, p.16).

Ainda neste mesmo artigo, Eisenstein procura especificar qual seria o sentido tanto da imagem quanto da representação na arte cinematográfica. Para tanto, utiliza uma cena do romance Ana Karenina, de Tolstoi, na qual um homem olha para os ponteiros de um relógio, mas não vê as horas. Vejam que Eisenstein recorre às palavras de um escritor para servir de guia para a construção da idéia que deseja transmitir sobre as imagens. O fato de o personagem olhar para o relógio e “não ver” as horas é explicado do seguinte modo:

A imagem das cinco horas é composta de todas essas representações particulares. Esta é a seqüência completa do processo que ocorre deste modo na etapa da assimilação das representações formadas pelos números que suscitam as imagens das horas do dia e da noite.

Em seguida, as leis da economia da energia psíquica entram em funcionamento. Ocorre uma “condensação” no interior do processo acima descrito: a cadeia de vínculos intermediários desaparece e se estabelece uma conexão instantânea entre o número e nossa percepção do tempo ao qual corresponde. O exemplo de Vronsky7 nos mostra que uma forte perturbação mental pode destruir esta conexão, e a representação e a imagem se separam (Eisenstein, 1947/2002, p. 20).

Não fosse a certeza que o trecho acima fora construído por um cineasta é bem possível que sua autoria fosse atribuída a um psicanalista que procura explicitar os meandros de um funcionamento mental sob o impacto de um trauma. A ligação visceral entre palavras e imagem, solo da construção da psicanálise, está novamente aqui explicitamente pontuada.

Mas é neste momento, ao propor a relação íntima entre palavra e imagem que Eisenstein acrescenta o elemento aglutinador, aquele que oferece vida, ou, se quiser, realidade psíquica aos elementos primordiais da película cinematográfica: a emoção. Cabe dizer que as emoções não são expressas nas imagens cinematográficas, mas resultam da experiência do espectador. É esta primorosa idéia sobre a experiência do espectador de um filme que nos lança de um só golpe na essência do exercício da psicanálise, a experiência emocional a qual está submetido tanto o psicanalista quanto o paciente.

 

Um filme é um sonho? É a pergunta que desponta de imediato.

A partir da sugestão de Eisenstein, nos bastidores da construção de um filme, no qual a montagem da película seguiria os passos da construção onírica, com a lógica do inconsciente em ação chegaríamos a responder sim, um filme é um sonho. Subitamente, vem à lembrança a experiência que está a nossa disposição quando nos encontramos diante da tela de projeção de um cinema. Também como espectadores podemos “sonhar” o filme.

E Eisenstein continua: “Uma obra de arte entendida dinamicamente, é apenas este processo de organizar imagens no sentimento e na mente do espectador” (Eisenstein, 1947/2002, p. 21). E conclui então seu pensamento com a seguinte afirmação:

Na realidade, todo espectador, de acordo com sua individualidade, a seu próprio modo, e a partir da urdidura e trama de suas associações, todas condicionadas pelas premissas de seu caráter, hábitos e condição social, cria uma imagem de acordo com a orientação plástica sugerida pelo autor, levando-o a entender e sentir o tema do autor. É a mesma imagem concebida e criada pelo autor, mas esta imagem, ao mesmo tempo, também é criada pelo espectador (Eisenstein, 1947/2002, p. 29).

Podemos por aqui retomar o interesse primordial deste artigo: que experiência é esta que está à disposição do espectador de um filme, cujas imagens são organizadas em sua mente? Para respondê-la poderíamos partir do ponto que desencadeou a reflexão sobre o tema deste artigo, qual seja, das imagens-tela de Sokúrov para caminharmos a seguir sobre a condição mental necessária para tal experiência.

Imagens-tela8: o tempo, o som, a cor

“[…] de onde emana a luz com a qual esse novo corpus cinematográfico projeta figuras situadas entre a realidade e o sonho?” (Machado, 2002, p. 9) Tomemos para nós esta mesma interrogação como um guia para adentrar no “planeta”9 Sokúrov. No que diz respeito às imagens Sokúrov, na condição de herdeiro de Eisenstein, confere a elas uma força quase corporal (Machado, 2002, p. 13). A adesão a tempos longos, que tem como finalidade potencializar os sentidos do espectador, se constitui em uma das técnicas de construção das imagens deste cineasta. “Eu vejo o tempo em sua totalidade, um presente contínuo. É preciso estar dentro dele, sentir-se integral como o espaço artístico, esta arquitetura indizível.”10

Ao retirar as marcas do tempo de suas imagens-tela, Sokúrov elimina também a importância do enredo da história que pretende contar. A cronologia das imagens não obedece a um tempo compartimentado pela seqüência temporal. A idéia do presente contínuo empurra o enredo da história para um segundo plano. Assim, o espectador dos filmes de Sokúrov se encontra imerso em uma vivência insólita, na qual os recursos mentais próprios da lógica do consciente lhe serão de pouca utilidade para se situar nesta experiência de espectador.

A apresentação das imagens em tempos longos, segundo Álvaro Machado, “afugentou das salas de cinema parte das platéias ocidentais” (Machado, 2002, p. 13). Aqui, nos interessa particularmente pensar qual seria a disposição mental do espectador para não sair em disparada da sala de cinema, mas, ao contrário, se dispor a mergulhar nessas imagens tal qual num sonho, no qual se mergulha sem proteção.

Além da utilização do tempo, sem começo e muito menos fim, outra marca da poética de Sokúrov está no uso não realista das cores que compõe as imagens de seus filmes, bem como de trilhas sonoras de cunho notadamente expressionista. É comum que surjam sons que não se ajustam às imagens projetadas, quer sejam ruídos, trechos harmoniosos de músicas clássicas, respirações e principalmente longos silêncios.

O trabalho de sincronização da imagem com a trilha sonora suprime, por via de regra, a maioria das palavras dos atores. Em lugar da semântica verbal, introduzem-se os mais variados materiais sonoros: gritos e murmúrios, zumbidos de inseto, vento, ruídos de demolição, fragmentos musicais (distorcidos ou não), etc. Essa dissociação induz forçosamente o espectador a um estado no qual é obrigado a desvincular-se da ilusão literária e encarar a pura contradição da matéria (Machado, 2002, p. 31).

O fato é que o cinema sokúroviano atira o espectador em solo onírico, região na qual é de pouca valia a lógica consciente. Vejamos uma sinopse do filme Elegia oriental (1996):

[…] viagem meditativa em direção a um insólito vilarejo japonês, onde a paisagem, casas, objetos e pessoas surgem turvos, quase imateriais, deixando-se levar pela névoa. Mais uma vez, Sokúrov volta sua câmera para pessoas simples. […] A marginalidade destas almas reside em certa aderência aos modelos do passado, ao cotidiano e às cores locais. Contudo, seus espíritos vibram em uma freqüência muito própria, em que a poesia e mitologia significam muito mais do que esmolas da realidade contemporânea. Na tela, ocidente e oriente são apenas facetas diferentes de um todo indizível. Nas anotações pessoais que precedem cada roteiro, o cineasta escreveu: “Que sonho mais estranho… Os contornos das casas escoam lentamente através das sombras brancas. Depois, novamente se aconchegam, dançando na neblina… Parece então que toda a cidade é uma pequena ilha, flutuando no espaço de um gigantesco oceano” (Fioravante, 2002).

A disposição mental que o cinema sokuroviano solicita ao espectador, se supõe, seja a mesma, a qual o psicanalista lança mão quando escuta as imagens que despontam da narrativa de seu paciente. O analista se vê lançado na incerteza do que está por vir, onde presente, passado e futuro se condensam num momento único. Seria este permanecer na incerteza uma capacidade nova a ser conquistada? É o que caberia perguntar.

 

Experiência estética: gênese

Capacidade negativa – é assim que Bion11 denomina a disposição mental necessária para que se possa permanecer na incerteza sem procurar a substituição, de pronto, de uma dúvida qualquer por uma certeza razoável. Na epígrafe do capítulo 13 de Atenção e interpretação, ele parafraseia John Keats para clarificar essa aptidão que, como vemos, ocupa a mente tanto de psicanalistas como de poetas:

Não discordei de Dilke, mas discorremos assuntos vários: temas combinam-se em minha mente e, aí, me ocorre a qualidade que plasma o Homem que Alcança, mormente em literatura, e Shakespeare revela-o de modo muito amplo, ou seja, a Capacitação Negativa, isto é, o home que tolera incertezas, mistérios, dúvidas, sem a busca desesperada pelo fato ou motivo. John Keats (Bion, 1970/1991, p. 136).

Vejam que a idéia encravada nessa proposição constitui uma espécie de inclinação para o novo, experiência possível desde que se possa desativar as defesas que entram em ação tão logo uma vivência não habitual esteja presente. Não há como deixar de reconhecer nesta noção – capacidade negativa– uma continuidade da proposição de Freud para a escuta psicanalítica: “atenção flutuante”. Vejamos o que ele nos diz a respeito em seu artigo “Recomendações aos médicos que exercem psicanálise”:

A técnica é, contudo, simples. Como se verá, ela rejeita o emprego de qualquer expediente especial (mesmo de tomar notas). Consiste simplesmente em não dirigir reparo para algo específico e em manter “a atenção uniformemente suspensa” (como a denominei) em face a tudo que escuta.

Mais adiante, Freud continua: “A regra para o médico pode ser assim expressa: ele deve simplesmente escutar e não se preocupar se está se lembrando de alguma coisa” (Freud, 1911-1913/1980, p. 149).

O que parece tão natural, nas palavras de Freud – “simplesmente escutar e não se preocupar” –, sabemos, representa um grande desafio para o psicanalista no exercício do contato com seu paciente. Poderíamos então retomar a nossa pergunta, ainda sem resposta: seria este modo “despreocupado” de o psicanalista ouvir a narrativa de seu paciente, uma capacidade nova a ser desenvolvida?

Na tentativa de responder a questão, voltemos nosso olhar para as primeiras experiências a que os bebês são submetidos ao nascer. O nascimento, ou, mais especificamente, o início da vida exterior, tem sido pensado sob os mais diferentes ângulos. Seguramente o “trauma do nascimento” tem sido um dos pontos de vista mais enfatizados sobre este momento crucial da vida de todos nós. As profundas transformações que se dão nesta transição de feto a recém-nascido costumam ser alvo das mais diversas considerações. Independentemente de qual seja o ângulo sob o qual se pensará essa experiência, ela é reconhecida como a experiência, por excelência, do novo. Não há escolha, o nascer é o inexorável salto em direção ao desconhecido. Podemos supor que estaria aí, nessa radical experiência do não-familiar, para a qual se é lançado sem rede de proteção, a vivência extrema da incerteza, do estranho, ou da angústia proveniente não do limite, mas ,pelo contrário, do nada absoluto sobre o qual se construirá a existência. Nesse átimo de vazio muito pode acontecer, ou melhor, tudo irá acontecer.

Na totalidade das experiências presentes nesse momento está a experiência estética original, ou seja, o conflito estético que, segundo as palavras de Donald Meltzer, “pode ser enunciado em termos do impacto estético do exterior da “linda mãe” disponível aos sentidos, e do enigmático interior que precisa ser construído por meio da imaginação criativa” (Meltzer e Willians, 1994, p. 44). E Meltzer continua: “Tudo na arte e na literatura, e toda e qualquer análise testemunha sua perseverança através da vida” (Meltzer e Willians, 1994, p. 44).

Para o bebê não há escolha (se é que se pode falar em escolha nesse momento da vida). A qualidade da experiência a que está submetido, a natureza desse modo de estar é a presença inflexível da incerteza inundando a vida mental in natura. Estar a descoberto, nesse momento, é parte de sua condição. Não por acaso, Meltzer qualifica essa experiência como um conflito por excelência:

Afinal de contas, o bebê veio para uma terra estranha onde ele desconhece a linguagem e também as indicações e comunicações não verbais costumeiras. A mãe lhe é enigmática: ela exibe um sorriso de Gioconda a maior parte do tempo, a música de sua voz fica constantemente mudando de tom maior para to menor. Como K. (o de Kafka, não o de Bion), o bebê precisa esperar por definições advindas “do castelo” – o mundo interno de sua mãe (Meltzer & Willians, 1994, p. 44).

Bem, poderíamos pensar que o conflito estético não encontra seu desfecho ao findar o crescimento da criança. É possível supor que ele permaneça atuante naquilo que chamamos mundo mental ocupando algum lugar deste vasto, fluído e flexível território. Mas pode ser que, no decorrer da expansão psíquica e em consonância com suas inúmeras vicissitudes, o embate entre o belo e o atemorizante tenha se fixado num território distante, estabelecendo-se em região de difícil acesso. Não é difícil compreender que se costume evitar qualquer experiência que carregue em si um tanto de angústia. Porém, fica mais fácil compreender que se evite menos um contato com algo não só angustiante, mas igualmente belo. E aqui retornamos então à condição sine qua non para a abertura às experiências dessa natureza: a recuperação da capacidade negativa, possivelmente a condição primeira do psiquismo em constituição.

Inúmeras são as circunstâncias que solicitam esse “modo de estar” sobre o qual Bion alerta o leitor de seus livros: um tanto de “estar aí sem se preocupar em compreender” é necessário para ir adiante em seus escritos. Em outras palavras, ele nos diz que o conflito estético estará a nossa disposição logo nas primeiras linhas. Já os bilhetes de ingresso dos filmes de Sokúrov não estão acompanhados de tal conselho, mas o espectador de seus filmes, no apagar das luzes, poderá se oferecer uma experiência de natureza estética.

A nós, psicanalistas, o contato cotidiano com nossos pacientes intima a um mergulho incondicional no novo, onde a permanência na incerteza se impõe como substância do próprio encontro. Ter isso em mente pode ser um bom começo.

 

Referências

Albera, F. (2002). Eisenstein e o construtivismo russo. São Paulo: Cosac Naify.         [ Links ]

Bion, W. R. (1991). O aprender com a experiência. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1962.)

______ (1991). A atenção e interpretação. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1970.)

Eisenstein, S. (2002). O sentido do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1947.)

Fioravante, C. (org.) (2002). Catálogo da 26a. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Freud, S. (1980). Os chistes e sua relação com o Inconsciente. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 8. Trad. J. Salomão. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1905.)

______ (1980). Recomendações aos médicos que exercem psicanálise. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 12. Trad. J. Salomão. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1911-1913.)

Machado, A. (2002). Aleksander Sokúrov. São Paulo: Cosac Naify.

Meltzer, D. & Willians, M. H. (1994). A apreensão do Belo: O papel do conflito estético no desenvolvimento, da violência e na arte. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1988.)

Muniz, R. (1993). Bion e o futuro da psicanálise. São Paulo: Papirus.

Simmen, J. & Kohlhoff, K. (2001). Kazimir Malevitch: Vida e obra. Porto: Könemann.

 

 

Endereço para correspondência
Cíntia Buschinelli
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Rua Alcides Pertiga, 82
054131-000 – São Paulo SP – Brasil
E-mail: cintiab@uol.com.br

Recebido em 18.10.2007
aceito em 6.11.2007

 

 

1 Membro associado da SBPSP.
2 “Um museu como um ser vivo, uma entidade que respira e tem personalidade própria. Sokúrov empresta alma ao colossal palacete, um dos maiores museus do mundo, testemunho da saga russa ao longo dos séculos” (Fioravante, 2002).
3 Óleo sobre tela, 79,5 × 79,5 cm, Yale University Art Gallery, New Haven.
4 Óleo e colagem sobre tela, 71 × 64 cm, Stedelijk Museum, Amsterdã.
5 “[…] nossos filmes enfrentam a missão de apresentar não apenas uma narrativa logicamente coesa, mas uma narrativa que contenha o máximo de emoção e de vigor estimulante” (Eisenstein, 1947/2002, p. 14).
6 Não há necessidade de grandes esforços interpretativos do texto de Eisenstein para reconhecermos Freud em suas considerações. Sua preferência por Freud é explicitamente colocada , quando descreve o efeito cômico que se pode construir na justaposição de determinadas cenas (Eisenstein, 1947/2002, p. 15).
7 Personagem de Tolstoi que aparece na cena mencionada no exemplo.
8 “Sokúrov recusa a ilusão da tridimensionalidade e o simulacro da realidade e encara a imagem de cinema como algo plenamente horizontal e plano, à maneira de uma tela de pintura. Em vez de reproduzir de forma concreta a natureza, ele a recria como pintor” (Machado, 2002, p. 19).
9 Palavras utilizadas por Álvaro Machado no título de seu artigo sobre o cineasta.
10 Sokúrov, em entrevista publicada no catálogo da 23a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 2002.
11 “Até os oito anos Bion ficou na Índia, e só então foi para a Inglaterra, para estudar em Oxford e Londres.” E Antonio Muniz de Rezende (1993, p. 20) continua: “Se a Índia é o Oriente, Oxford é o Ocidente. E o Ocidente ilha que o canal da Mancha separava do Continente, criando uma espécie de clima cultural concentrado. Durante a guerra, porém, Bion fez serviço militar numa companhia de tanques, na França. Talvez fosse bom lembrar que o seu nome completo é Wilfred Ruprecht Bion: um inglês da Índia com nome alemão e francês. Este homem internacional foi finalmente para os Estados Unidos, à Califórnia, outro grande centro cultural. Assim, completou-se a síntese do velho e do novo mundo”.
12 Experiência estética: na sala de análise e no cinema Cintia Buschinelli

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