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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.41 n.4 São Paulo dez. 2007

 

INTERCÂMBIO

 

A "inversão de papéis" e o âmbito dos fatores curativos1

 

La "inversión de roles" y el ámbito de los factores curativos

 

"Role reversal" and the framework of curative factors

 

 

Franco Borgogno2

Società Psicoanalitica Italiana

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Num âmbito clínico-histórico em que se destaca o freqüentemente conflituoso binômio encenação da cura/cura pela fala, o autor focaliza a inversão de papéis, processo inter/intrapsíquico primitivo que, embora ocupe o primeiro plano na prática psicanalítica, ainda não foi adequadamente teorizado na literatura. O fenômeno da inversão de papéis é apresentado clinicamente e discutido nos seus dois aspectos principais - a identificação inconsciente com os pais e com sua cultura psíquica e, portanto, a concomitante dissociação da parte infantil do self -, através da apresentação de material analítico relativo a um paciente esquizóide e carente. O autor considera algumas das razões pelas quais os analistas não exploraram essa forma particular de repetição, a qual se reapresenta regularmente na dinâmica de transferência-contratransferência na análise de pacientes que experimentaram no passado um trauma cumulativo, e focaliza também os principais fatores curativos no tratamento desse tipo de paciente.

Palavras-chave: Inversão de papéis; Dinâmica da transferência-contratransferencia; Pacientes esquizóide-deprimidos; Fatores curativos; Encenação da cura falando da cura.


RESUMEN

En un ámbito clínico-histórico, en el cual se destaca el frecuente binomio conflictivo "escenificación de la cura/cura por la palabra", el autor resalta la "inversión de roles": un proceso inter-intrapsíquico primitivo que ocupa el primer plano en nuestra práctica, pero que aun no fue adecuadamente teorizado en nuestra literatura. El fenómeno de "inversión de roles" lo presenta clínicamente y lo discute en sus dos aspectos principales (la identificación inconsciente con los padres y con su cultura psíquica y, por lo tanto, la concomitante disociación de la parte infantil del self), a través de la presentación de material analítico relativo a un paciente esquizoide y carente. Además de eso, el autor considera algunas de las razones por las cuales es regularmente recolocada en la dinámica de la transferencia-contratransferencia en el análisis de pacientes que experimentaron en el pasado un trauma acumulativo; considera aún los principales factores curativos en el tratamiento de ese tipo de paciente.

Palabras claves: Inversión de roles; Dinámica de la transferencia-contratransferencia; Pacientes esquizoide-deprimidos; Factores curativos; Escenificación de la cura hablando de la cura.


ABSTRACT

Within a historical-clinical framework, in which the often conflicting binomial acting cure/talking cure is underlined, the author focuses on "role-reversal": a primitive inter-intrapsychic process, at the forefront in our practice, but not adequately theorized in our literature. The phenomenon of "role-reversal" is clinically presented and discussed in its two main aspects (the unconscious identification with the parents and with their psychic culture, and, therefore, the concomitant dissociation of the infant part of the self) through the presentation of analytical material regarding a schizoid-deprived patient. Furthermore, the author considers some of the reasons why analysts didn't explore this particular form of repetition, which is regularly re-enacted in the transference-countertransference dynamics in the analysis of patients who have experienced in their past a cumulative trauma, and the principal curative factors in the treatment of this kind of patients.

Keywords: Role-reversal; Transference-countertransference dynamics; Schizoid-deprived patients; Curative factors; Acting cure-talking cure.


 

 

Com estas reflexões, gostaria de oferecer uma contribuição à investigação daqueles pacientes que, na análise, parecem funcionar através da inversão de papéis, uma forma específica de repetição constituída essencialmente por dinâmicas intrapsíquicas em que os pacientes estão inconscientemente identificados com o agressor (com freqüência, nesse caso, um caregiver privado3 e que inflige privação), enquanto o analista personifica o self infantil deles, completamente dissociado, e não as imagens parentais tradicionais a que habitualmente nos referimos. Para esse tipo de pacientes - e será este o tema principal do meu trabalho -, a interpretação "mutativa" do analista não é em absoluto aquela clássica, mas, sim, toda a ação de interpretar e literalmente viver "no lugar deles" uma parte da vida psíquica que para eles é simplesmente desconhecida ou foi expulsa, em virtude do sofrimento psíquico a ela associado (Borgogno, 1999; Borgogno & Vigna-Taglianti, 2007). Um sofrimento psíquico muito intenso - quero frisar - que no passado os próprios pais, como caregivers não adequados, não puderam tolerar, freqüentemente porque também eles não possuíam os instrumentos cognitivos e afetivos para reconhecê-lo e administrá-lo.

Em outros termos, gostaria de destacar que esses pacientes necessitam, antes de mais nada, encontrar no tratamento analítico um analista que testemunhe com o próprio corpo os sentimentos e as angústias que eles experimentaram quando crianças, sem negar sua dor mental e suas experiências catastróficas; necessitam, além disso, de um analista que saiba sobreviver e permanecer vivo (Winnicott) - capaz, portanto, de sentir (Ferenczi) e de pensar (Bion) - num ambiente analítico que inevitavelmente se tornará, em muitos sentidos, bastante parecido com o ambiente que eles tiveram na infância (Ferenczi, 1929, 1931, 1932ab, 1920-32; Winnicott, 1963-74, 1967; Borgogno, 2005).

Por outro lado, penso ser exatamente o que Bion queria dizer em Cogitations ao afirmar: "Creio que um paciente assim [.] jamais aceitará uma interpretação, não importa o quão correta seja, a menos que sinta que o analista atravessou essa crise emocional como parte essencial do ato de interpretar" (Bion, 1992, p. 318). Penso também que, sessenta anos antes de Bion, foi o que Ferenczi designou como o necessário "contraste" que o paciente precisa viver repetidas vezes na longa onda da análise para poder recordar o passado e eventualmente mudá-lo no presente e no futuro, em vez de continuar a repropor, em sua vida a própria e dolorosa história. O contraste de que falava Ferenczi surgia essencialmente pelo fato de que todo paciente deve encontrar, no curso de uma "boa análise", sessão após sessão, uma história diferente, isto é: uma mãe diferente, um pai diferente, uma criança diferente - em suma, uma diferente disposição relacional. Tudo isso pode se tornar, nesses casos, o ponto de partida de uma "nova e alternativa" aprendizagem da troca afetiva entre indivíduos e, conseqüentemente, uma "nova e alternativa" capacidade de apreensão da realidade psíquica (Ferenczi, 1929, 1932ab).

Desejo aqui simplesmente destacar que, em especial nessas situações clínicas, o analista é, a meu ver, um "novo objeto" (ou talvez fosse melhor dizer: um "novo sujeito"), pois se coloca à disposição do paciente "doando-lhe sua alma", para se tornar, aos poucos, os vários personagens envolvidos na sua história infantil, oferecendo a eles - num segundo momento - uma figurabilidade e um nome, depois de ter encarnado concretamente todas as "apresentações" do paciente "no corpo" e somente depois, num segundo momento, "na mente". Apresentações múltiplas e continuamente repropostas - gostaria de sublinhar - que serão o analista elaborará e transformará em "representações" somente na onda longa da análise, e não no exato momento em que são colocadas em ato, como preferiria o nosso wishful thinking.

Passo agora à paciente que me levou aos pensamentos que pretendo expor (Borgogno, 1994-95, 2003, 2004). Trata-se de uma jovem, M, que procura a análise depois de uma queda de cavalo em que fraturou a bacia: uma queda que a fez afirmar, nas entrevistas, que daquele momento em diante "uma sombra ou um buraco negro" havia "invadido a sua vida" de forma macabra, bloqueando-a. De fato, em virtude da permanência na cama por alguns meses, tudo em sua vida havia parado - a universidade, por exemplo, que já antes do acidente andava lentamente, e, junto com ela, também a vida social e relacional, limitada agora às visitas esporádicas de alguns amigos com os quais se comprometera em atividades beneficentes(ajudavam jovens cegos ou com grave incapacidade motora).

O tombo em questão, ocorrido no mesmo período de acidentes semelhantes envolvendo sua família ou pessoas do ambiente restrito em que estava inserida, fora vivido por ela como mais um sinal funesto do destino - um sinal e não um símbolo, quero especificar, visto que M não o ligava a nada que se associasse com sua história ou sua psicologia. Um sinal que remetia à iminente catástrofe que afetaria a existência de toda a sua família. Uma espécie de derrocada "óssea", como ela vagamente a definiu, pois todos os casos a que se referia tinham implicado "quebras e fraturas físicas" importantes, as quais haviam marcado uma virada na vida dessas pessoas, que literalmente não podiam mais "caminhar e ir para a frente na vida" da forma habitual. Uma queda, uma derrocada, por assim dizer, "estrutural", que na realidade já acontecera no passado - como imediatamente supus, embora por muito tempo não obtivesse uma confirmação da hipótese - e que havia sido de natureza mais psíquica do que física, dado que M fora uma criança que não deveria ter nascido, pois em sua família, tanto por parte de mãe como por parte de pai, os filhos nascidos tardiamente haviam sempre prenunciado a próxima e futura morte dos pais.

Essa espera por um próximo acontecimento funesto - para concluir a propósito do contexto dos acontecimentos e das emoções de que surgiu o pedido de análise de M - foi, portanto, em síntese, a "má estrela" que marcou e acompanhou o nascimento e o crescimento de M. De fato, quando ela nasceu, os pais já não eram jovens e estavam em condições econômicas precárias. Além disso, a mãe, em virtude da repetição desse destino adverso na história das duas famílias, realmente tentara abortar várias vezes; não conseguiu, e, depois do nascimento de M, caiu numa espécie de depressão profunda, caracterizada por queixas e apreensões contínuas sobre alguma doença física cuja origem permanecia desconhecida e que portanto era impossível curar. Uma depressão que talvez fosse silenciosamente compartilhada pelo pai, ao permanecer isolado e fechado em si mesmo, completamente tomado pelos problemas de sobrevivência econômica da família.

Assim, cansaço, suspiros, lamentos, silêncio, depressão constituíram para M os elementos de base da atmosfera infantil em que crescera. Além disso, ela havia sofrido também uma grande solidão muito peculiar, pois, embora o forno [uma pequena padaria] em que a família trabalhava fosse colada à modesta casa, os pais estavam constantemente ocupados, noite e dia, em preparar o pão e vendê-lo, retornando a casa - à tarde ou à noite - sempre exaustos e mudos, e sobretudo prontos para se deitar, porque dali a poucas horas seria necessário preparar novamente o forno, amassar o pão e vendê-lo. Uma condição de vida que "aprendi" na pele, dando-lhe lentamente imaginação e palavra, pois M não falava disso nem eu sabia então o que significava ter um pequeno forno numa pequena cidade da zona rural.

Entretanto, não é nessa parte da experiência analítica com M que me deterei; pretendo ilustrar o clima relacional de fundo tão bem retratado no sonho que ela contou na primeira sessão, sondando uma difícil história analítica que exigiria de mim um grande empenho pessoal, para poder encaminhá-la não mais pelos trilhos da repetição, mas daquela transformação psíquica que modifica o destino futuro das pessoas. O sonho é o seguinte:

Uma pessoa japonesa de identidade incerta fazia haraquiri na minha frente, numa espécie de claustro, e queria que eu a visse. Eu fugia, mas ela corria atrás de mim, e para meu horror e nojo me alcançava continuamente, "arcada após arcada", caindo no chão com todo o intestino para fora. Eu estava aterrorizada e enojada.

Esse sonho imediatamente fez soar em mim a campainha de alarme. Formulei a hipótese - também com base nas poucas associações relacionadas ao fato de que "nenhuma das figuras do sonho falava" e de que "num novo caso de fratura óssea de uma conhecida, relacionado à descoberta de um defeito congênito no quadril", seria necessário recorrer a uma "santa que faz nascer crianças que não devem nascer" para "levar a gravidez até o fim" - formulei a hipótese, eu dizia, de que M talvez tivesse sido uma criança não desejada e que provavelmente tinha havido inclusive a tentativa de abortá-la; a mim, então, estaria sendo pedida uma tarefa praticamente impossível: "fazer nascer quem não deve e não pode nascer". Eu teria de enfrentar uma transferência muito primitiva, quase certamente caracterizada por esvaziamento de pensamentos e sentimentos infantis, "as vísceras".

Soando o alarme, rapidamente precisei me dar conta de que o presságio que eu havia tido - eu também com terror e horror - seria dentro de mim pontualmente não apenas atuado nas sessões, mas superado de muito pelo rumo que os acontecimentos tomariam. De fato, depois que M contou o sonho e as poucas associações que relatei acima, propus-lhe que talvez ela tivesse buscado análise porque "queria nascer", e então, em seguida, sem razão aparente ela se calou. A não ser pelo fato de emitir de vez em quando umas poucas palavras e, mais adiante, lembrar de sonhos inesperados e tão ricos de imagens e significado simbólico como o primeiro, ainda que para ela sem significado, durante cerca de quatro anos ela permaneceu a maior parte do tempo calada, passando o tempo da sessão a se lamentar, a suspirar e a gemer, tocando freqüentemente o corpo e suas várias partes como se tentasse cuidar de algo ou de alguém. Em virtude dessa situação, fui me vendo aos poucos dentro de uma cena agônica: de um lado, havia alguém que passava muito mal, mas não respondia a nenhum tratamento e, portanto, não podia receber ajuda; de outro, alguém na cabeceira tentava cuidar do outro, mas em vão, restando ao final totalmente impotente e sem esperança, pois esse tipo de interação se reproduzia idêntico sessão após sessão, sem nenhum vislumbre de qualquer mudança ou transformação.

Embora eu assistisse, na prática, uma criança-tornada mãe que se ocupava de si mesma-criança através do corpo dela, único objeto de atenção para M - nisso eu seguia o trabalho de Anna Freud [1951] com as crianças vindas da Theresienstadt -, pouco a pouco me pareceu descobrir a parte de M-menina às voltas com a mãe deprimida e hipocondríaca, refazendo passo a passo com ela - com papéis invertidos - as etapas do que poderia ter sido o percurso infantil que ela cumprira como cuidadora de uma mãe sem entusiasmo pela vida, ou como filha-hóspede numa casa-forno onde os pais estavam presentes, mas tomados por "algum outro lugar misterioso e enigmático" em que não havia nenhum "olhar dirigido diretamente a você". Se esses eram os principais modelos inspiradores da minha imaginação identificatória, em muitos momentos via a possibilidade de ser também, quando não sabia mais o que dizer, o pai silencioso e retraído, ou então, se eu falava, a possibilidade de ser uma espécie de mãe exigente que desejava uma boa paciente-filha dedicada aos seus hábitos e às necessidades dela, mãe, no entanto considerando sua oposição ou sua negatividade (o seu negar-se) uma espécie de auto-afirmação, por mais insana e boba que me parecesse.

Não tenho como dizer aqui, em poucas palavras, onde e como encontrei forças para prosseguir nesse cotidiano trabalho interpretativo, aparentemente nada compensador, no mínimo porque eu não recebia dela nenhuma concordância verbal acerca do que lhe dizia. Entretanto, mesmo sem me aprofundar, quero assinalar rapidamente aquilo que nessa análise representou, por assim, o primeiro turning point compartilhado, pois M - em seguida a ele - retomou como que magicamente a fala, com mais continuidade a cada sessão, de tal maneira que a análise aos poucos se pôs em movimento e seguiu um modelo mais clássico. Eu lhe disse, em suma, num tom vivo e enfático, como se também eu o estivesse descobrindo naquele instante - a partir de mais um dos muitos sonhos de caráter histórico que remetiam a uma cruenta tragédia do passado ambientada na Idade Média -, que ela estava em análise comigo "não só para nascer, mas para ser alguém, para reencontrar o próprio nome, a própria genealogia e a própria história".

Foi em seguida a isso que, poucas sessões depois, sempre através de um sonho, surgiu entre nós o personagem No-body: uma M que àquela altura tinha um nome porque, graças ao trabalho de análise, se reapropriara, ao menos em parte, do próprio corpo e que parecia ter adquirido também uma vida mental e emocional mais ativa, tanto que as histórias narradas em seus sonhos haviam se deslocado completamente de outras épocas históricas e de outros planetas para dentro da nossa relação. Ficou evidente, portanto, que nas sessões travávamos uma luta ferrenha entre a vida e a morte, mas dali em diante nossos papéis recíprocos se tornaram menos estereotipados e mais móveis e intercambiáveis, assim como mais móvel e flexível estava se tornando a estrutura interna de personalidade de M.

Depois de um ano e meio de duração, essa "lua-de-mel analítica" - eu a chamo assim apenas para diferenciá-la do período anterior da análise, pois sem dúvida as coisas não eram "cor-de-rosa": aquela continuava a ser uma análise bastante difícil - se dissolveu de repente, tal como de repente se dissolvera o falar inicial de M. Novamente nossos encontros mergulharam num silêncio sombrio e ensurdecedor por parte de M, sem que eu recebesse qualquer confirmação das hipóteses que fazia para justificar a interrupção que ocorrera: um silêncio que parecia ter necessidade de calar qualquer sinal de vida, visto que a vida, agora, havia se tornado não um mero incômodo para a existência do outro, mas uma verdadeira ameaça mortal, devendo portanto ser extinta e eliminada.

Foi justamente em circunstâncias dessa natureza, sentindo-me destruído e exasperado - depois de me lembrar de um filme de Bergman, O ovo da serpente (1977), centrado numa mãe que mata o filho porque ele não pára de chorar e em seguida se mata, atirando-se pela janela -, que explodi numa "interpretação retumbante", numa espécie de "sanguina paternal" cujo resultado foi ela se sentir desejada e viva e, portanto, entrar na área edípica da progressiva integração da própria história, tal como aos poucos esta emergira na análise e tinha sido elaborada, concomitantemente ao início de um processo de desidentificação com o "objeto que inflige e sofre privação" que até até ali caracterizara sua "identidade negativa".

Sintetizando, por meio das muitas imagens oníricas sobre as quais havíamos trabalhado, as várias etapas de nossa análise e da provável história de vida e M, comuniquei-lhe com intensidade e dor - fazendo breves pausas como se estivesse pensando em voz alta diante dela - que a situação em que estávamos mergulhados parecia conduzir inevitavelmente a uma resignação fatal - parecia me convidar, em outras palavras, a depor as armas, fosse matando-a como paciente, fosse matando a mim mesmo como seu analista. Acrescentei que, se eu estava errando em alguma coisa, ela precisava me ajudar, me dar uma mão", e que "por outro lado, se estava identificada com aquela mãe que ela sentia odiar a vida e se eu era a ela-menina que devia continuar a desejar mudar essa mãe e curá-la, eu tinha de admitir, francamente, que isso na realidade não seria possível, pois a análise era limitada e eu também o era, e o que poderíamos fazer - eu e a análise - era apenas ajudá-la a desistir desse comportamento insano compreendendo-o, mostrando-lhe como essa dramática luta estava dentro dela e ali deveria ser resolvida".

Emocionada, M disse: "Se uma pessoa descobre que tem efeito sobre os outros, ela é real, existe; portanto, os outros também existem para ela e também são reais. É isso que o senhor me dá. Não é um barulho indistinto e torturante que a gente não conhece e não sabe de onde vem; não é um gemido que te atormenta porque você não pode se opor e não sabe o que fazer com ele; não é um eco que te devolve a você mesmo. É alguma coisa que chega a 'retumbar' por dentro, algo que é vivo e não morto e faz você ressurgir". Prosseguindo, M disse que ninguém nunca havia se dado conta dela, de sua doença, de seu retiro e de seu mutismo, nem na infância nem na adolescência. Em casa não o haviam notado, não o haviam mencionado; era a filha que não tinha problemas e, conseqüentemente, que não dava problemas: logo, era exatamente o que os pais queriam. Por outro lado, achava que não podia despertar nos outros nenhum sentimento a não ser um leve incômodo e irritação, dos quais, na realidade, jamais considerara ser realmente a fonte.

William James (cit. por Menninger, 1968) oferece as palavras que, do meu ponto de vista, melhor enquadram esses acontecimentos analíticos e o tipo de "grande dor mental" que M e eu tivemos de atravessar e sofrer juntos:

Não se pode conceber nenhuma tortura mais cruel do que não receber nenhuma resposta quando você fala, ninguém que se volte quando você acena, todos simplesmente o ignorando. Em breve surge dentro de você a hostilidade; você ataca aqueles que o ignoram, e se com isso não consegue obter reconhecimento, direciona essa hostilidade contra si mesmo, no esforço de provar que você existe realmente.

Mas por que escolhi tratar deste assunto e não de outro? Porque, se olhamos a literatura psicanalítica, observamos claramente que a principal tendência identificatória que manifestamos e descrevemos em nossos trabalhos é a que se dirige à identificação com os pais: em primeiro lugar, aos pais bons e adequados; depois - com o aumento da experiência clínica -, aos ruins e inadequados, tais como são transformados pelas fantasias persecutórias e depressivas e por aquilo que chamamos de alma infantil da psique.

Porém, desde o início da psicanálise encontramos um obstáculo em nosso percurso de crescimento e uma conseqüente e significativa dificuldade quando, por exemplo, através de Ferenczi, tivemos de considerar que - fantasias inconscientes à parte - os pais e nós mesmos, como adultos, absolutamente não somos sempre "bons pais" e "bons adultos" e que são antes os desejos da criança de encontrar "um pai fisiologicamente bom" (mesmo quando ele de fato não o é, de modo algum) que nos transformam - graças também, sem dúvida, ao nosso conluio com esse desejo - em objetos complacentes com a impossibilidade dela de ter uma percepção correta sem ajuda e em objetos ajustados às suas necessidades de negação da não-adequação dos caregivers. Um desejo infantil - esse que estou destacando - que pode levar as crianças e as crianças nos adultos (Ferenczi, 1931) a perdoar repetidamente os nossos erros e a nos idealizar na fantasia, com a esperança de assim se defenderem melhor da má sorte que pesa e pesou em suas vidas.

Mas a partir desse ponto - sempre com Ferenczi - acabamos por chegar a um nó ainda mais nevrálgico para nós mesmos: chegamos à dificuldade de assumir e pensar dentro de nós, nas vicissitudes analíticas, a experiência de crianças em grave sofrimento, de crianças desassistidas por incúria e crueldade dos adultos. Explico melhor: como se primeiro nós mesmos, muitas vezes criados num ambiente não tão excelente, tivéssemos recusado e negado a não-excelência de nossos pais e também dos nossos analistas, atribuindo a nós mesmos a responsabilidade por isso e, assim, fazendo um enorme esforço para admitir essa realidade e maior ainda para nos identificarmos com essas crianças submetidas a experiências muito dolorosas e debilitantes. A respeito da "identificação com o agressor", temos o que aprender com Ferenczi (1929, 1931, 1932ab), que a ilustra tão bem em seus vários aspectos. Por outro lado, justamente nesse terreno nasce o dolorido mas firme apelo que Ferenczi nos dirige, para que nos coloquemos mais na pele das crianças e nos lembremos da nossa infância, dado que num primeiro momento nunca é a criança que deve se adaptar aos pais, mas, ao contrário, são os pais que devem se adaptar a ela (Ferenczi, 1927).

Tudo isso (esse "atraso de compreensão" que estou examinando) soa mais estranho ainda se considerarmos como as crianças, em seus jogos (e sobretudo nos jogos realizados na sala de análise), continuam por muito tempo, e sempre de muito bom grado, a pedir aos adultos - por motivos ligados não só à sua onipotência - que interpretem precisamente o papel de crianças carentes e deficitárias, enquanto elas personificam precisamente os adultos potentes, plenamente seguros de si e, portanto, invejáveis. Mas isto de que falo aqui é o jogo em que geralmente o "como se" logo significa assumir papéis congruentes com aquilo que é pedido pela realidade.

O problema, entretanto, é que nem sempre acontece assim. Às vezes o jogo não tem nada de jogo, de fingimento momentâneo, de "como se" provisório que ajuda a superar frustrações e limites, ao mesmo tempo em que prepara para a atividade adulta e para as identificações maduras; às vezes - ao contrário -, ele é concretamente a realidade, toda a realidade que existe.Nesses casos, a criança, de um lado, se tornou "concretamente" (volto a sublinhá-lo) o genitor e o fez para sobreviver. identificando-se por completo no plano inconsciente com o genitor gravemente carente e deficitário, de maneira a não perdê-lo; de outro lado, em virtude dessa identificação maciça, perdeu todo e qualquer acesso à criança pequena que há nela e que foi preciso expulsar de dentro de si. por excesso de dor e porque, naquela casa, aquela criança específica não tinha nenhum lugar e não podia receber nenhum reconhecimento de seus sentimentos, de suas necessidades, de suas angústias de criança em busca de um adulto responsivo.

O caso de M, sobre o qual me detenho nestas breves reflexões, se encaixaria nesse grupo de crianças que inevitavelmente, também como adultos, vão pedir ao analista - em segredo (pois o paciente não tem nenhuma consciência disso) e durante um período significativamente longo - que seja a criança que elas nunca foram ou que rejeitaram em razão da dor, com freqüência hesitando em relação a si mesmas no âmbito de uma "autocura". Tarefa - quero enfatizar - que o analista "suficientemente bom" deverá necessariamente cumprir, para que no futuro, em vez de se identificar com os pais patogênicos, elas possam voltar a existir como crianças, crianças dependentes e vulneráveis, e para que assim possam transformar sua existência traumática e negativa, aos poucos tornada atual na análise. De fato, brotará justamente desse novo "impacto relacional" - isto é, da gradual e lenta aquisição de uma nova sensibilidade - a capacidade de conviver com dolorosas e infelizes experiências de crescimento e de administrá-las sem perder a confiança e a esperança no viver e na possibilidade de alcançar, no futuro, uma vida digna de ser vivida.

Tenho certeza de que muitos de nós - refiro-me a todos os que operam no campo da saúde mental e de oferecimento de ajuda à dor psíquica - lutaram dessa forma, durante o crescimento e na análise, contra a compulsão a repetir sua história de parcial "não-existência", tornando-se depois, na vida adulta, psicanalistas e psicoterapeutas hipervulneráveis e hipersensíveis às condições de dor concernentes às relações - pessoas, por exemplo, hipervulneráveis e hipersensíveis em relação aos estados esquizóides de isolamento dos outros.

Eu, como escrevi há pouco para uma entrevista que fizeram comigo em Vancouver sobre como nasceu minha vocação psicanalítica, fui uma dessas crianças: uma criança em parte não vista em suas especificidades (eu precisava mudar e ser diferente para meus pais e não ser eu mesmo) e em parte não ouvida em suas necessidades específicas (minha mãe muitas vezes se ausentava psiquicamente e meu pai pensava na sua família de origem), e creio que foi justamente desse fato, de ter sido uma dessas crianças, que tirei - compreendendo e elaborando essa experiência que caracterizou minha infância e adolescência (Borgogno, 2007) - os meus fatores terapêuticos pessoais para encontrar M e ajudá-la a sair de seu estado patológico de morte psíquica e de não-existência; creio também que, de forma mais geral, foi justamente através da autenticidade desse compartilhamento profundo de sua experiência que a nossa análise e a sua vida puderam caminhar numa direção muito mais favorável.

Para concluir, somente quando o "verbo" (ou seja, a ação) se tornar "carne", somente quando "encarnar", poderemos nos valer daquele "trabalho de linguagem" que dá autêntico acesso ao "mundo das representações". Quer dizer, a talking cure necessita, em várias circunstâncias, ser precedida por uma interpsychic acting cure, com base na qual poderá ter lugar, mas somente no après coup, a análise clássica a que Freud nos convidou. Quanto a M, a interpsychic acting cure a que me refiro foi para mim, no fundo, ter de encarnar e aos poucos me tornar a menina que ela havia dissociado ao longo de sua vida infantil, sabendo ao mesmo tempo permanecer em contato com dois aspectos fundamentais para o nosso trabalho analítico - é o que quero destacar nesta conclusão.

O primeiro é a experiência fisiológica que as crianças deveriam fazer com os pais suficientemente bons para crescer e aos poucos se subjetivar como indivíduos inteiros, separados e diferenciados em relação ao ambiente de crescimento. O segundo é a experiência vivida - talvez apenas num segundo tempo como pacientes de uma ou mais análises - do que seja realmente estar com (e ser) um adulto capaz de hospedar e sustentar uma "jovem mente em formação": um adulto, ressalto, capaz de encorajar a "experimentar e pensar integralmente acontecimentos psíquicos" um dia "interrompidos de forma traumática" (Ferenczi, 26.III.1931, em 1920-32) e - é claro - a comum, cotidiana e complexa experiência emocional e relacional que viver a vida comporta para cada um de nós.

Mas, ao lado de tudo isso, com pacientes como M o analista, que permanece tanto quanto possível "um pensador e uma testemunha emocionada" dentro de todas as vicissitudes que a análise lhe pede que atravesse com o paciente, não deverá se tornar também, em certo momento, "real", ainda que só momentaneamente, para chamar o paciente à vida e quebrar o círculo vicioso mortífero e opressivo no qual ele está preso? Muitos psicanalistas, em parte de maneira velada, criticando a escolástica psicanalítica, pensariam que sim, sublinhando a necessidade que o paciente tem - quando sofreu "insultos e violências sutis e dissimulados à própria integridade" - de uma "apresentação da realidade" no momento certo e em doses adequadas, que lhe permita "recriá-la" e "torná-la própria", e conseqüentemente de vivê-la como um dado evidente não passível de ser eliminado pela fantasia (Borgogno, 2006).

Para M, a necessidade de se revelar manifestada desde o primeiro sonho (com o oferecimento de "todos os intestinos para fora") e de compartilhar com o analista em nível verbal essa revelação de si saindo do mundo da não-existência precisou, a meu ver, também desse "passo" por parte do analista, um passo - "a minha interpretação retumbante" - que foi para ela um ato de legitimação e de liberdade, para que ela pudesse começar a desenvolver seus recursos e suas potencialidades.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Franco Borgogno
Via Cavour, 46
10123 - Torino - Italia
E-mail: borgogno@psych.unito.it

 

 

1 Trabalho apresentado no 45° Congresso Internacional da IPA - Berlim 2007: Remembering, Repeating and Working Through in Psychoanalysis and Culture Today. Painel "Remembering and repeating in the context of the curative factors in psychoanalysis" (Virginia Ungar e Clara Nemas, chairs; Franco Borgogno, Clara Nemas e José Carlos Calich, expositores). Título original: "Il 'rovesciamento dei ruoli' e l'ambito dei fattori curativi". Tradução: Marta Petricciani (membro efetivo da SBPSP), com RBP.
2 Membro ordinário con funções de training e supervisão da Società Psicoanalitica Italiana; diretor da Scuola di Specializzazione in Psicologia Clinica da Universidade de Turim; coordenator da seção Psicologia Clinica e delle Relazioni Interpersonali da Scuola di Dottorato in Scienze Umane da mesma universidade.
3 No original, deprivato: privado dos cuidados básicos necessários por parte dos cuidadores adultos. [NT]

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