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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.41 no.4 São Paulo Dec. 2007

 

RESENHAS DE LIVROS

 

Resenha: Antonio Muniz de Rezende*

 

 

Um monge no divã: A trajetória de um adolescer na Idade Média Central

David Léo Levisky. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007, 380 p.

1. Este livro de nosso colega David Léo Levisky é uma versão de sua tese de doutorado em história social, defendida na Universidade de São Paulo. Transformado em livro, o trabalho tem o mérito de condensar importantes pesquisas e apresentá-las de maneira acessível aos leitores interessados, dentro e fora da academia.

Os mais interessados provavelmente serão os psicanalistas, em especial os que fazem parte da SBPSP, no momento em que a instituição manifesta preocupação em estabelecer um diálogo mais profundo com a cultura em geral e com a universidade em particular. Pessoalmente, tive muito prazer em ler o livro, ao mesmo tempo que atendia ao convite para comentá-lo na Revista Brasileira de Psicanálise. Ainda que a princípio pensasse nos colegas, acabei sendo um dos primeiros benefi ciários da leitura de uma obra preciosa, que não posso deixar de recomendar a todos os que se interessam pela relação entre a psicanálise e a cultura, de hoje e do passado.

Fiquei agradavelmente surpreso com o tema e com a maneira como foi tratado. Aliás, esta é uma primeira observação importante: o tema da tese podia ser abordado de diversas maneiras, em função do vértice adotado pelo autor bem como por seus leitores. É o que se pode observar já no competente Prefácio, de Renato Mezan; no pertinente Posfácio, de Hilário Franco Jr., e nas elegantes observações de Lênia Márcia Mongelli – todos eles integrantes da banca examinadora do doutoramento. Leituras a partir de ângulos diferentes, que deixam outros leitores à vontade para agir da mesma forma, sem ser preciso percorrer exatamente a mesma trajetória de David, nem adotar a mesma perspectiva de seus primeiros comentadores.

Chamou-me a atenção o fato de o autor escolher como título maior Um monge no divã. Digo “título maior” uma vez que ele acaba determinando o sentido do subtítulo: A trajetória de um adolescer na Idade Média Central. Minha atenção fi cou presa ao título maior, muito provavelmente por razões pessoais, uma vez que experimentei a vida monástica na ordem dominicana, no Brasil, na França e na Itália. Estudei em particular o pensamento de Alberto Magno e Tomás de Aquino, teólogos do século XIII sob cuja infl uência redigi minha tese de doutorado em teologia (defendida no Angelicum, em 1954). Quando mais tarde me tornei psicanalista bioniano, acabei me interessando em especial pelo pensamento de mais um dominicano do século XIV, Mestre Eckhart, enfaticamente citado por Bion, a propósito do modelo místico-religioso. Um monge da Idade Média no divã é assunto que me toca por vários motivos, do passado e do presente. Vou portanto privilegiar essa perspectiva, enfocando sobretudo a fi gura do monge medieval, escritor sexagenário, que nos conta sua história. Espero assim acrescentar alguma coisa pertinente ao que já foi dito por David e por seus primeiros comentadores.

2. A Idade Média caracterizou-se pela coexistência do político e do religioso na constituição de uma sociedade que acabou identifi cada, no interior da civilização ocidental cristã, como cristandade, mais precisamente denominada judeo-greco-latina, numa tentativa de mostrar as etapas por que ela passou, seguindo os passos dos apóstolos na diáspora que os levou de Jerusalém a Éfeso e Atenas, antes de chegarem a Roma.

Lembro-me de ter lido, a esse respeito, páginas muito interessantes escritas por Jacques Maritain, fi lósofo francês que, junto com Étienne Gilson, deu riquíssima contribuição ao estudo do pensamento medieval, especialmente nas relações entre a fi losofi a e a teologia, em que se destaca sem dúvida a coexistência vital do sagrado (a teologia) e do profano (a filosofia), do religioso (a Igreja) e do político (o Estado), na vida cultural da sociedade medieval. Poderíamos lembrar Camões falando dos navegadores, que com suas viagens “dilataram a fé e o império”. Essa relação entre “a fé e o império” é uma das características da Idade Média, no prolongamento do que aconteceu no século IV, quando o imperador Constantino converteu-se ao cristianismo, transformando- o praticamente em religião ofi cial do Império. Semelhante coexistência do sagrado e do profano foi marca distintiva da cristandade, pelo menos até a Idade Média.

Somente a partir da Renascença e do começo da era moderna teve início o processo de secularização, com a separação dos dois poderes, mais precisamente como separação de duas ideologias: a leiga e a religiosa. Semelhante processo de secularização tornou-se uma das principais características de um mundo pós-medieval e hoje se transformou em característica inegável do pensamento contemporâneo. Quando um autor como Richard Dawkins escreve um livro intitulado Deus, um delírio (quem sabe retomando “O futuro de uma ilusão”, de Freud), quase poderíamos dizer que o longo percurso de secularização terminou não apenas na separação dos dois vetores, mas na negação radical do sagrado em favor do profano. Um resultado aparentemente definitivo, embora não consiga apagar na mente humana o senso do sagrado e sua atração pelo religioso. A expressão res sacra homo talvez signifique que a dimensão maior do sentimento religioso não o circunscreve a determinado momento da história, mas revela um eterno conflito entre a imanência e a transcendência, pelo menos da maneira como Espinosa tentou apresentá-lo, com a afirmação Deus sive natura: Deus, isto é, a natureza (citado por Bion no texto Cesura, também Martin Bubber nos fala da Grande Mãe Natureza). Nesse sentido, é digna de admiração a coragem de David em se interessar por um monge da Idade Média num momento em que o mundo atual se declara não apenas pós-moderno, mas pós-metafísico, questionando até mesmo o futuro da natureza humana – como apontado por Jürgen Habermas.

3. Não causa estranheza que David Léo Levisky tenha encontrado em Guibert de Nogent, monge beneditino do século XII, um precioso representante da cultura medieval. Porém é digno de muita admiração que ele tenha se proposto a estudar o assunto de forma psicanalítica, com enfoque especial no adolescer do personagem. Nas palavras da professora Lênia Márcia, David é um especialista “com longa experiência clínica no trato de adolescentes”. Em sua tese, “propôs-se a aplicar a metapsicologia psicanalítica freudiana no estudo dos percalços vividos pelo monge entre o nascimento e a maturidade, com ênfase nos anos críticos do adolescere”.

No entanto, a mim chamou a atenção o fato de Guibert ter sentido a necessidade de escrever sua autobiografi a apenas aos sessenta anos. Quem escreve não é um adolescente, mas um sexagenário, que está presente como tal em tudo o que redige, mesmo ao falar de sua infância e adolescência. Signifi cativamente, é um texto da maturidade, à semelhança do que aconteceu com muitos outros – eu mesmo venho tentando fazê-lo, agora que cheguei aos oitenta. Aliás, não posso perder a oportunidade de sublinhar que Bion também escreveu sua autobiografi a, seja na forma de confi ssões (All my sins remembered), seja como revisão crítica de seus trabalhos (como em Cogitations).

A tese de David tornou-se possível graças ao fato de Guibert ter escrito, em latim, uma autobiografia em que relata, o mais honestamente possível, sua história de vida. Há detalhes que, evidentemente, só ele conhecia – de sua própria trajetória e sobre a maneira como percebia o mundo medieval. A respeito da língua latina, é importante dizer que ela era precisamente uma das características da Idade Média, pelo menos nos meios mais cultos da sociedade. A civilização ocidental cristã, a partir da conversão de Constantino, além de romanizar o cristianismo em termos políticos, também o latinizou em termos lingüísticos e socioculturais. Não é de estranhar que a expansão do Império Romano tenha se dado com o desenvolvimento simultâneo das línguas neolatinas nos países colonizados – como se pode ver, entre outros, nos escritos de César, como De bello gallico.

O latim tornou-se “língua comum” não só sob o ponto de vista religioso, mas também cultural. E é muito signifi cativo que, contemporaneamente à conversão de Constantino, também são Jerônimo tenha traduzido a Bíblia, do hebraico e do grego para o latim, num texto que ficou conhecido como Vulgata – a significar que se tratava de uma tradução destinada ao povo (vulgus) em geral. Na Idade Média, Tomás de Aquino, que era italiano, ensinava e escrevia em latim tanto em Bolonha como em Paris. Alberto Magno, que era alemão, ensinava em latim tanto na Alemanha como na França. Anselmo, citado por Guibert, escrevia tanto em latim como em inglês e francês.

O uso da língua latina nos diversos países da Europa não deixava de ser um traço da cristandade. (Tive aulas de fi losofi a e teologia em latim, na Universidade Angelicum, em Roma, na qual se realizou o encontro sobre Bion em janeiro de 2008.) A civilização ocidental cristã na verdade é judeo-greco-latina e tem como expressão cultural o hebraico, o grego e o latim, línguas nas quais eram escritos os textos de fi losofi a e teologia, além das autobiografi as, como De vita sua, de Guibert de Nogent.

4. Uma autobiografi a inserida em um contexto social, político e cultural, escrita em latim e traduzida para o francês, não podia deixar de atrair a atenção de David Léo Levisky. Mas como tratá-la psicanaliticamente, a partir de hoje, do lugar em que nos encontramos? O que precisava ser feito antes de submetê-la a uma leitura psicanalítica? Na tese de David, nós constatamos não só o interesse do psicanalista pela história individual do paciente-monge, mas também a difi - culdade do que se poderia considerar uma psicanálise a distância, no tempo e no espaço. Como ter acesso psicanalítico a um autor tão distante, unicamente por intermédio de um texto escrito, e escrito em latim?

A esse propósito, lembro-me de ter lido considerações importantes de Paul Ricoeur em Da interpretação: Ensaio sobre Freud, observações inseparáveis do que o autor retoma em O conflito das interpretações. Embora David não o cite, não posso deixar de fazê-lo, porque foi com a ajuda de Paul Ricoeur que entendi o que podia signifi car a passagem da via curta da introspecção (do “Conhece-te a ti mesmo” socrático) para a via longa dos produtos culturais, no estudo do fenômeno humano, principalmente com a ajuda de Merleau-Ponty, sobre quem redigi minha tese de doutorado em fi losofi a.

Não por acaso, Ricoeur, mas também Merleau-Ponty, nos falam de uma fenomenologia existencial-hermenêutica, reconhecendo não só a possibilidade, mas também a necessidade de examinarmos os produtos da cultura para conhecermos melhor os sujeitos que nela vivem. Dentre eles, em especial a escritura (no vocabulário de Derrida), ou mais simplesmente os textos escritos, que fi cam como testemunhas autênticas do momento em que foram redigidos e publicados.

Em relação a eles, no prolongamento de Paul Ricoeur, faz-se necessário distinguir a exegese, a hermenêutica e a interpretação propriamente dita. (A esse respeito, escrevi “A investigação em psicanálise: exegese, hermenêutica e interpretação”, capítulo do livro Investigação e psicanálise, organizado por Maria Emília Lino da Silva.)

Ao falar do campo de pesquisa, observaria que, em se tratando de psicanálise, a investigação pode ser levada a efeito na biblioteca, no mundo vivido e no consultório. No primeiro caso, a pesquisa exegética faz-se sobre livros, por meio da leitura. No segundo, a pesquisa hermenêutica faz-se no mundo vivido, na atitude de quem pensa e repensa as próprias vivências. No terceiro, a interpretação clínica faz-se em situação analítica, por meio da escuta e da transferência.

Em sua leitura, o exegeta atém-se ao texto e tenta ajudar o leitor, digamos, a entendê-lo melhor a partir de uma problemática interna na maneira como os diversos elementos se estruturam. Já a leitura do hermeneuta situa o texto em seu contexto cultural, numa tentativa de entender não só o sentido contido estruturalmente, mas também os diversos sentidos a partir das relações que se estabelecem com aquele mesmo contexto.

David tentou fazer, além de uma leitura hermenêutica da autobiografi a de Guibert de Nogent, uma verdadeira interpretação psicanalítica. Só que isso era muito mais difícil, como bem mostrou Renato Mezan no Prefácio. Não vou retomar aqui as oportunas considerações de Renato, mas remeter o leitor a esse texto.

Lembraria apenas, mais uma vez, o segundo livro de Paul Ricoeur, O conflito das interpretações. Não deixa de ser mais uma alusão à experiência simbólica, uma vez que a primeira característica do símbolo é ser uma polissemia, comportando várias abordagens – a partir do que Merleau-Ponty chamava de perspectivismo da percepção e Bion correlacionava com a expansão do universo mental: em direção a O, de acordo com O.

Resta a questão: como atingir a intimidade do sujeito analisado? Segundo Freud e seus intérpretes, isso supõe a experiência da transferência e da contratransferência. Em que medida isso pode ocorrer? E, em que medida pode ter ocorrido entre David e Guibert de Nogent, caberia ao próprio David responder, e não apenas a nós, leitores de seu livro. Há, no entanto, um aspecto a partir do qual podemos supor que David tenha tentado, e talvez conseguido, uma identifi cação maior com seu “sujeito em análise”: “a trajetória do adolescer” do monge em seu divã, assunto em que David é especialista e para o qual o próprio Guibert oferece uma primeira interpretação.

Diferentemente do autor, a mim me toca a problemática do sexagenário, inclusive em sua necessidade de escrever uma autobiografi a. Situando-me com ele nesse momento de minha vida, no contexto atual de nossa civilização, sinto-me particularmente tocado pelos problemas de nossa cultura, num questionamento não apenas da teologia, mas da própria fi losofi a, a favor de uma mentalidade científi ca simplesmente física, e não apenas pós-metafísica.

O que é mesmo característico do momento atual (século XXI), em comparação com o que era característico da Idade Média (nos séculos XII, XIII e XIV)? Será que o livro Deus, um delírio é mesmo tão característico do momento atual? Ou será que Luc Ferry tem razão em falar de divinização do humano no lugar de encarnação do divino? Como se situa hoje a experiência do sentimento religioso, e como é tratada pelos psicanalistas quando o paciente toca nesse assunto?

5. David pelo menos teve coragem de dar espaço a essa temática em suas refl exões psicanalíticas. Com toda a evidência, ele tentou dar um tratamento psicanalítico aos problemas de Guibert de Nogent, alguns dos quais não apenas da Idade Média, mas do ser humano em qualquer época e lugar.

A título de exemplo, mas um exemplo importante, gostaria de mencionar a questão edípica e relembrar a maneira como se fala de um “Édipo hoje”. Já tive a oportunidade de mostrar como Bion, diferentemente de Freud, não encara o Édipo apenas sob o ângulo da sexualidade, e passa a falar a seu respeito sob o ângulo da verdade. Assim, muda a problemática do Édipo criança (Edipinho), para uma outra mais característica do Édipo adulto, Rei de Tebas. Há uma expansão da problemática, bem como da maneira de tratá-la, em vista de sua resolução. Em outras palavras, passamos de uma problemática familiar e doméstica para uma outra, propriamente sociopolítica, em que a arrogância do Rei de Tebas é o principal sintoma do Édipo Rei.

Semelhante mudança na problemática do Édipo familiar para o Édipo sociocultural corresponde a um desenvolvimento da própria psicanálise em confronto com o “mal-estar na civilização”. Retomando uma frase de Max Weber, Marcelo Viñar nos dizia em Campinas (SP) que “nós somos muito mais fi lhos do nosso tempo que dos nossos pais”. Semelhante intuição leva-nos a considerar a psicanálise atual como um momento inteiramente diferente na história do movimento psicanalítico.

Da mesma forma, não poderíamos deixar de levar em conta a contribuição do movimento feminista, na medida em que ele nos ajuda a questionar as propostas machistas na solução do confl ito edípico. A simples constatação de que Guibert de Nogent sofreu as conseqüências de sua orfandade paterna talvez não seja sufi ciente para dizer que foi só por isso que ele não resolveu seu complexo edipiano.

Retomando uma expressão de Melanie Klein ao falar da “importância da formação de símbolos no desenvolvimento do ego”, gostaria de enfatizar o papel da analogia simbólica – principalmente na experiência religiosa, no sentido de não submetermos Deus aos constrangimentos de uma identidade de gênero! Deus é Pai, mas não como nós. E, no prolongamento da Bíblia, Leonardo Boff tem toda a razão em falar da face materna de Deus.

A solução do complexo de Édipo, ou simplesmente seu tratamento, só se dá com o acesso ao nível simbólico, além do imaginário e do real concreto (nos termos empregados por Lacan). Também Bion, na mesma linha de Melanie Klein, nos permite considerar o Édipo com ultrapassagem do contexto familiar e mesmo sociopolítico. Mãe e pai simbolizados nos permitem um acesso mais verdadeiro ao nível da realidade última, além do biológico, do sensório e mesmo dos afetos primários.

Nesse sentido, a simbolização pode ocorrer tanto em função do pai como da mãe. No caso de Guibert, ela aconteceu principalmente em função da presença da mãe na ausência do pai. Em relação a ambos, a simbolização propiciou uma mudança de nível com especial acesso a um Deus simbólico, pai e mãe ao mesmo tempo, mas em outro sentido. A prática da analogia simbólica, como lembrado pelo cardeal Caetano, não deixa de ser uma das grandes intuições da teologia medieval, em especial na prática de Tomás de Aquino.

Pergunto, pois, se o tratamento psicanalítico do conflito edípico pode limitar-se à análise das relações com as figuras de pai e mãe, sem ir mais longe, numa forma de simbolização transcendental. Creio que a experiência religiosa adulta pode ir até esse ponto, como aliás nos é dito pelos místicos, a começar pelos citados por Bion: São João da Cruz, Mestre Eckhart e Luria, entre outros.

Acho, sim, que o complexo de Édipo simbolizado só se resolve com o que Bion chama de expansão do universo mental, numa transformação em ser (being), que não é este ou aquele, (pai-mãe, homem-mulher), mas infinito, informe, inominável. Paradoxalmente, na seqüência dos modelos (científico-filosófico, estético-artístico, místico-religioso), Bion acaba privilegiando este último, de maneira que me lembra não apenas a cultura medieval, mas a cultural oriental, sobretudo da Índia, onde ele nasceu.

A pergunta que o texto de David me leva a fazer é: será que não devemos estar muito mais atentos para saber a que direção somos levados, quando adotamos este ou aquele modelo, mesmo e principalmente quando se trata do exercício da psicanálise, tanto de maneira prática como teórica? Por isso é que gosto de falar, na esteira de Bion, da psicanálise como ciência pósparadigmática.

Hoje, não hesitaria em falar igualmente de uma teologia pós-paradigmática, em diálogo com a psicanálise. Um diálogo com conseqüências dos dois lados. Uma boa teologia (pós-paradigmática) só pode fazer bem a uma boa psicanálise (pós-paradigmática), assim como uma boa psicanálise só pode fazer bem a uma boa experiência religiosa. (Fico pensando em Françoise Dolto e no que escreveu em L’Évangile au risque de la psychanalyse.)

6. Se eu pudesse dar um testemunho, diria que minha teologia antes da psicanálise foi uma, e, depois dela, foi outra. E não deixaria de acrescentar, num sentido parecido com o de Odilon de Mello Franco Filho: uma é a psicanálise que não leva em conta a experiência religiosa, outra a que se sente em condições de analisá-la com a ajuda de Bion.

É importante dizer isso, sabendo que Bion não se declara propriamente ateu, nem mesmo cético, mas nos convida a desenvolver nossa capacidade negativa, e com ela uma teologia igualmente negativa, no reconhecimento de que tudo o que dizemos sobre Deus é de baixo para cima, isto é, uma tentativa de nos dizermos em nossa relação com o infinito-informe-inominável. Repetindo Bion, gosto de afi rmar que o verdadeiro sábio sabe que não sabe, ao passo que o falso sábio acha que sabe o que de fato não sabe.

Não digo que estas minhas reflexões já se encontram no texto do David, ou mesmo nos de Guibert de Nogent, mas posso afi rmar que elas me ocorreram por ocasião da leitura do texto de ambos. David Léo Levisky e Guibert de Nogent me fi zeram refletir, levando-me além do ponto em que já me encontrava, principalmente depois de minha análise com dona Judith Teixeira de Carvalho Andreucci.

Nesse sentido e por esse motivo, sou profundamente grato ao David, por me ter honrado com seu convite. Espero não tê-lo decepcionado. Pelo menos tentei ser verdadeiro, apesar de reconhecer que de certa forma estou mais de acordo com algumas intuições medievais do que com alguns posicionamentos pós-metafísicos. Aliás, já ouvi a afirmação de que hoje são sobretudo os físicos – como Stephen Hawking, em O fim da física – que nos acenam mais uma vez com a meta-física – ou como Prigogine, ao falar do “fim das certezas”.

Finalmente, tenho vontade de proclamar com Bion: “Creio na Realidade Última como um fato primordial”. Uma fé científi ca, mas que não é incompatível com a fé religiosa. Voltando ao contexto da Idade Média, foi assim que Tomás de Aquino dialogou não só com os fi lósofos gregos (Platão e Aristóteles), mas também com os árabes (Avicenas, Averróis) e os judeus, como mencionado por Etienne Juissant.

Quero agradecer ao autor pelo presente que nos deu com seu belo trabalho. Evidentemente, restaria pensar nas conseqüências de o monge ter se deitado no divã… do David. Quais foram as características de semelhante análise? Só o próprio David poderá nos responder.

 

 

* Membro efetivo da SBPSP.

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