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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.41 no.4 São Paulo Dec. 2007

 

RESENHAS DE LIVROS

 

Resenha: Josette Czerny*

 

 

Falar de amor à beira do abismo

Boris Cyrulnik. São Paulo: Martins Fontes, 2006, 181 p.

O francês Boris Cyrulnik é neuropsiquiatra, psicanalista, etólogo e um dos maiores expoentes mundiais em teoria e prática da resiliência. É chefe de ensino da Clínica do Apego na Universidade de Toulon e presidente do Observatoire International de la Resilience. Em suas conferências e livros, reúne tanto depoimentos de personalidades traumatizadas, a exemplo dos escritores Jorge Semprún e Primo Levi, como dos pacientes que tratou em sua clínica. Cyrulnik fala e escreve particularmente sobre o que viveu como experiência pessoal.

O menino Boris – por vezes mencionado como Bernard em seus livros – foi salvo por uma mulher que o conhecia. Ela o empurrou para dentro de uma ambulância, enquanto ele via os pais e familiares serem deportados pela Gestapo para os campos de extermínio. Depois disso nunca mais os encontrou. Passou por vários abrigos e orfanatos e se tornou ele próprio um grande resiliente. Vencedor na vida, especializou-se em conhecer melhor o comportamento humano, principalmente o dos traumatizados. Como revelou numa entrevista transmitida na televisão francesa, carrega sempre no bolso, coberto por um lenço, o trauma que abalou toda a sua infância. Quando possível, puxa do bolso um pedacinho daquele conteúdo e “tricota” algo criativo em forma de estudos, palestras e livros. Portanto, cada livro de Cyrulnik trata também de sua própria resiliência em permanente evolução. Seu depoimento serve de ajuda, como “tutor de resiliência”, para os grandes feridos da vida. Para a mulher que o salvou, Marguerite Farge, ele pleiteou a Medalha dos Justos entre os Justos, que ela recebeu em 1997.

Falar de amor à beira do abismo refere-se àqueles que superam um traumatismo e experimentam muitas vezes uma impressão de sursis que multiplica o gosto da felicidade e o prazer de viver o que ainda é possível. Neste ensaio vibrante sobre a vida, o autor mostra que mesmo os que têm graves feridas afetivas podem transformá-las em grande felicidade. O título traz uma fi gura de retórica que o autor transforma em conceito para caracterizar os resilientes. Trata-se do oximoro, que consiste em associar dois termos antinômicos: falar de amor/beira do abismo. Aqueles que vencem um traumatismo conseguem fazer coabitar doravante o horror e a poesia, o desespero e a esperança, a tortura gelada e o calor humano. Esse título paradoxal nos surpreende; é uma nova e rica contribuição que o autor desenvolve ao longo da obra.

Cyrulnik considera que, depois de um trauma psíquico, como o trauma físico, instala-se uma perda de tecido afetivo, com necrose e escaras. “É carregar a morte dentro de si” (p. 5). E acrescenta: “Todo traumatizado é obrigado a mudar, senão fi ca morto”.

Começa a partir daí uma caracterização dos que ficam submersos sob o trauma – os “afogados” –, que só podem resistir ao sofrimento e sobreviver desse modo, porém sem mudança. A resistência impede a resiliência. Esses traumatizados não tiveram capacidade de usar ou desenvolver a resiliência, nem encontraram um tutor de resiliência, alguém ou um meio favorável que os empurrasse por debaixo do trauma para seguir em frente ou mesmo saltar em outra direção. Cyrulnik classifica os que permanecem submetidos ao trauma em quatro grupos, segundo seu esquema de apego: os evitativos (têm medo de exprimir as emoções), os ambivalentes (por angústia, agridem quem amam), os apego-angustiados (só se sentem bem aprisionando o objeto de seu amor) e os desorganizados (estão sempre aflitos e confusos).

O autor focaliza a importância da qualidade do vínculo e destaca as teorias do apego de John Bowlby, que ele cita: “O caminho que cada indivíduo segue em seu desenvolvimento e o grau de resiliência ante os acontecimentos estressantes da vida são fortemente determinados pelo esquema de apego que desenvolveu nos seus primeiros anos de vida” (p. 9-10).

As crianças que desenvolveram um esquema de apego seguro na primeira infância têm mais condições de se tornarem grandes resilientes ao sofrer o acidente traumático. São dois golpes que compõem um traumatismo, insiste o autor: um primeiro golpe, no real, a partir do trauma real que o indivíduo carrega dentro de si, com a provação, a dor, o sofrimento, a humilhação, a perda; e um segundo golpe, na representação do trauma e no discurso dos outros sobre a pessoa depois do evento. De fato, é no discurso social que geralmente precisamos tentar entender o efeito devastador do trauma. O fi xismo só existe quando os preconceitos impedem que se concebam as transações incessantes entre o psiquismo, o real e o social.

 

Sobre a questão da representação

1. Do tempo: nos traumatizados, a representação do tempo já não é mais a mesma. Acidentes podem instalar a morte na alma, e a pessoa volta à vida com a curiosa sensação de existir entre duas mortes. “Uma parte de sua vida matara-se nela. Outra esperava a segunda morte, que viria mais tarde” (p. 4).

Em relação ao tempo, a resiliência é um processo diacrônico e sincrônico: as forças biológicas do desenvolvimento se articulam com o contexto social, para criar uma representação de si mesmo que permite a historização do sujeito. Parafraseando Boris Cyrulnik: a resiliência é um tricô que ata uma lã desenvolvimental a uma lã afetiva e social; a resiliência não é uma substância, é uma malha. Não se pode objetivá-la a um momento T, já que é uma teoria de vida que se ata e se desata continuamente.

A metáfora do tricô é uma imagem cinestésica que expressa o tempo que passa e o gesto que o persegue para fi xá-lo. O tricô não é nada mais que o símbolo do tempo. Nos resilientes, há uma apreensão mais próxima e aguda da passagem do tempo, o que lhes outorga maior discriminação e rapidez em descartar o que é secundário ou fútil e focalizar o que é vital. Conseqüentemente, passam a usufruir as oportunidades mais significativas que surgem em seu horizonte.

2. Do trauma: “A escara do corpo serve de metáfora para a escara da alma dos traumatizados psíquicos: Auschwitz como uma escara na origem de mim”; “O psiquismo agonizou sob o efeito do trauma” (p. 8). Segundo o autor,

Enquanto o trauma não tem sentido, fica-se paralisado, aturdido, abestalhado, embaralhado por um turbilhão de informações contrárias que nos tornam incapazes de decidir. Mas, como se é obrigado a dar um sentido aos fatos e objetos que nos “falam”, temos um meio de iluminar a neblina provocada por um trauma: o relato.

A metamorfose do acontecimento em relato se faz por meio de uma dupla operação: pôr os acontecimentos fora de si e situá-los no tempo (p. 27).

Pela sucessão dos relatos, opera-se um trabalho de religação e uma atribuição de sentido a posteriori, porém o que fi cou impregnado pelo trauma real alimenta sempre representações de lembranças que constituem a identidade íntima dos traumatizados. Nos grandes resilientes, compartilhar o trabalho de religação pelos sucessivos relatos constitui um projeto necessário à conquista de um sentido. Mas, para provocar uma representação que dará um sentido de felicidade, é preciso que esse projeto seja duradouro e diversifi cado. Cyrulnik dá o exemplo dos sobreviventes da Shoah, que se encontram não apenas para organizar e continuamente reorganizar suas lembranças, mas também com o projeto de entender, agir e usar seu conhecimento em diversas áreas criativas. Alguns se tornaram artistas, descobridores de criptas, exploradores de abismos, como os romancistas e os psicanalistas que o autor cita no livro.

3. Da sombra: Trata-se de um conceito original do autor. Diremos melhor que, em relação à sombra, não se trata de representação, mas, sim, de irrepresentabilidade do trauma ou de partes dele. A sombra que o traumatizado carrega no mais íntimo de seu ser, aquilo que é o irrepresentável, é percebido fi sicamente pelos outros como uma estranheza, uma mímica, uma entonação de voz ou um silêncio. Na verdade, aquilo que é percebido pelos outros é a sombra dos fantasmas soterrados nos cantos sombrios da mente do grande traumatizado. Diz o autor:

Os fantasmas não têm vida autônoma, precisam da carcaça do ferido para fazer aparecer a morte, o sofrimento ou a vergonha que vai parasitar a mente de seu fi lho. O acontecimento passado traça no corpo do ferido sombras que os fantasmas transmitem de alma para alma (p. 147).

As pessoas próximas ao ferido sentem a sombra, o enigma inquietante que beira a angústia mas pode convidar ao prazer das escavações arqueológicas. Quando o trauma obriga à transformação por causa do colapso que provocou, a resiliência convida à metamorfose que transforma um dilaceramento em força, uma vergonha em orgulho.

Em relação ao desenvolvimento afetivo das crianças, o autor se refere àquelas que experimentaram uma infância fusional que as impediu de se personalizar. Tanto as crianças que sobrevivem num meio desprovido de afeto como as que são entulhadas por uma pletora afetiva sentem-se o centro do mundo, sem necessidade de descobrir o espaço interior do outro. Cyrulnik as chama de “crianças estragadas como frutos” e “bebês gigantes”. Em ambos os casos, não há alteridade; portanto, não há sujeito. Quando essas crianças se desenvolvem num ambiente que lhes permite construir somente um campo afetivo fechado, contam com um único elemento separador: o sentimento de ódio.

A vivência é de estar submetido a um casulo exasperador – realidade que assassina a esperança e embota o desejo próprio. Agora são as crianças que fazem a lei e explodem em violência contra os pais. Quando alcançam a vida adulta, os carentes afetivos subordinam-se ao outro, a fim de permanecer em contato com quem se dispõe a amá-los, e os que conheceram a pletora afetiva, ou os “bebês gigantes”, procuram sujeitar-se a um apego exterior ao lar de origem. Com isso, afastam-se da angústia do incesto e evitam, ao mesmo tempo, sentir a angústia do desconhecido. Numa única geração, o fenômeno dos pais que apanham dos fi lhos se globalizou. As primeiras denúncias começaram há mais de vinte anos, no Japão, e se estenderam aos Estados Unidos, a países da Europa, à China…

Sobre a resiliência, precisamos destacar duas “palavras-conceito” que Cyrulnik sintetiza como o essencial no resiliente: a mola e o tricô. A mola fala do impulso íntimo pessoal ante os golpes da existência. É comparável, nas pessoas, ao conceito de resiliência vindo da física: propriedade que a matéria de dureza variável tem de retornar à forma original após ser submetida a um choque violento que provoca deformação elástica. Em sentido fi gurado, signifi ca “elasticidade”. Nas pessoas, trata-se da capacidade de se recobrar de um traumatismo – com elasticidade, fl exibilidade, criatividade e reconstrução sobre o trauma. Não se trata de adaptar-se às feridas psíquicas provocadas pelo trauma. A resistência não é uma resistência passiva; a adaptação “boa demais” é anti-resiliente. Quanto ao tricô, trata-se do trabalho diário de tecer algo a partir de fi ligranas do trauma. A resiliência é a arte de navegar nas torrentes.

Para concluir, a ética da obra e da vida de Cyrulnik é indispensável a todos: é uma ética de luta contra o enclausuramento na desgraça, uma recusa da resignação à fatalidade de um destino de vítima. Na medida em que se possa encontrar um tutor de resiliência e que se possa dar sentido ao trauma, surge uma noção muito real e objetiva a respeito da passagem do tempo. Surge também um sentimento de liberação e de ter muita sorte, o que leva a um apetite pela vida, pelo tempo que resta para aproveitar a vida.

Falar de amor à beira do abismo é de leitura fácil e apaixonante, como todos os livros de Boris Cyrulnik.

* Membro efetivo e didata da SBPSP. Colaboração de Lia S. Hintz, membro associado da SBPSP.

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