SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.41 issue4 author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.41 no.4 São Paulo Dec. 2007

 

RESENHAS DE LIVROS

 

Resenha: Maria Th ereza de Barros França1

 

 

Posições tardias: Contribuições ao estudo do segundo ano de vida

Oswaldo di Loreto. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007, 190 p.

Nem sempre a vida nos dá a oportunidade de demonstrarmos gratidão a pessoas que têm importância para nós – este é um desses raros momentos.

Eu era interna de quinto ano da Faculdade de Medicina da USP e um colega disse que haveria uma seleção em Diadema para médico plantonista. Lá fui eu, no auge dos meus 22 anos, pleitear o meu primeiro emprego. Que susto foi aquele contato com o role-playing dirigido por Michael Schwartzchild, retorcendo os longos fi os de bigode com os dedos e olhando com aquele olhar penetrante. Mas, afi nal, passei. E foi assim que, na supervisão dos médicos plantonistas da Comunidade Terapêutica Enfance, conheci Oswaldo di Loreto (o Di, como o chamam todos que o conhecem). Não tinha a menor idéia da importância que aquelas experiências que ali se iniciavam teriam para mim.

Este livro é a segunda obra publicada por Di Loreto. O primeiro, Origem e modos de construção das moléstias da mente (2004), aborda, como indica o próprio título, a psicopatogênese que pode estar contida nas relações familiares. Gostei tanto que li de uma tacada só. Agora, é com prazer que resenho Posições tardias. Aqui, num estilo coloquial muito peculiar a Di Loreto, vemos uma mente pensando claro, articulando idéias, observando fatos, levantando e conferindo hipóteses, construindo uma experiência integrada entre a prática e a teoria. Como se não bastasse, transpira o prazer que experimenta naquilo que faz.

Di Loreto estabelece uma intimidade com o leitor, que sente a curiosidade atiçada. Ele nos convida a refl etir, nos dá dicas, transmite com emoção a sua rica experiência de vida – como ele diz, 51 anos de prática –, tendo estudado cuidadosamente 30.000 crianças ou mais e, nos últimos 25, gestado este livro. Gestação fecunda: não é à toa que “apelida” o livro de “Refl exões de uma vida inteira”. A linguagem é límpida, direta, com pitadas de ironia e muito espírito crítico; nada do “psicologuês” repudiado por ele. “Preenchi algumas lacunas que a Melanie deixou”, me disse ele. É verdade. E o fez em grande estilo.

Já no início somos surpreendidos pela lista de autores que “colaboraram”; entre eles, di Loreto menciona psicanalistas, escritores, psiquiatras, o amigo Ayrton e até seus pais. E não há uma bibliografi a, já que tudo está tão assimilado – “à moda da casa”, avisa.

O livro se divide em quatro blocos. No primeiro o autor relata como nasceu esta contribuição, apresentando-nos o que vêm a ser as novas posições que propõe. No segundo, discorre sobre a clínica e a metapsicologia das posições tardias. No terceiro, traz sua contribuição à metodologia “psi” e faz, como ele diz, um agradável exercício de epistemologia. No último bloco, discute a psicoterapia de esquizo-maníacos e as vicissitudes psicoterápicas, que não são poucas.

A grande originalidade do livro reside na proposta das “posições tardias”. Di Loreto sugere a posição esquizo-maníaca seguida de uma segunda posição depressiva, ampliando assim a teoria das posições, indo além das clássicas posições esquizo-paranóide e depressiva de Klein. Vou me deter mais nas características dessas posições. Com relação ao restante do livro, destacarei apenas os pontos que mais me impactaram e assim o deixarei em aberto para a curiosidade do leitor.

A respeito do desenvolvimento do primeiro ano de vida, di Loreto navega pelas idéias de Spitz, de Klein e dele mesmo, deixando de lado referências a psicanalistas que têm se dedicado ao estudo dos estados primitivos. Isso, entretanto, não lhe faz falta para introduzir o que constitui o foco do seu interesse, ou seja, o segundo ano de vida.

No primeiro ano, o importante é que a criança seja ajudada a lidar com o ódio e a desenvolver o núcleo de sua identidade afetiva, em termos do que o aitor denomina “narcisismo essencial” (p. 38), isto é, a condição de ter por si mesma um amor incondicional, absoluto. Já a criança normal de segundo ano, como diz ele, “está em outra”. Tomada pelo que denomina “libido maturativa”, passa então da “realidade virtual”, que era provida pelos pais, à “realidade real” (p. 46). Caminhando e auxiliada pelo desenvolvimento de outros recursos maturativos, lança-se agora ao mundo para desenvolver sua “identidade potente” (p. 47).

Di Loreto sugere o estudo evolutivo do desenvolvimento da potência e também dos distúrbios das relações de potência. Propõe a potência como componente inato da mente, sofrendo interferências dos afetos: sentir-se amado é ser poderoso. Por sua vez, os impulsos não podem prescindir da potência para a realização de desejos. Haveria uma indiferenciação inicial entre afeto e potência e, a partir do segundo ano, cada um deles seguiria seu curso separadamente.

A potência estaria cindida entre impotência (negada) e onipotência (projetada nos pais ou dominando a mente da criança), até o momento oportuno para esta cisão se desfazer e ocorrer a integração, de tal forma que a criança seja capaz de dominar o medo. No contato entre seus recursos em desenvolvimento com o mundo – ou seja, tarefa nobre e recursos parcos –, di Loreto sugere que o não aprender com as experiências permitirá que venha a se estabelecer a identidade potente. Entendo que ele está parafraseando Bion em relação ao “aprender com a experiência”, no sentido de a criança não fi car impotente com as frustrações e continuar tentando novamente. Evidentemente, temos de levar em conta que o contato com as frustrações, desde que não seja paralisante, ao lado de experiências prazerosas iniciais, também leva ao aprendizado.

Di Loreto justifica sua proposta de uma posição esquizo-maníaca: esquizo, por estarem em ação intensos mecanismos de cisão-dissociação, e mania, pelos estados mentais resultantes da negação, no caso, da impotência. Uma vez estabelecida essa posição, estariam garantidos os dois ou três próximos anos de desenvolvimento, com a criança não apenas se sentindo amada, mas também magicamente capaz, potente, ainda que pagando o preço do retorno do negado (ansiedade diante de situações em que tem de se valer dos próprios recursos) ou do risco psicotizante inerente à negação.

Quando Di Loreto discorre sobre a apropriação, a luta pelo domínio que a criança do segundo ano procura estabelecer, lembrei-me de Steiner,2 que trata da luta pela dominação na situação edípica relacionada ao sentimento de que “diferente” significa “pior’, podendo resultar em grande intolerância às diferenças.

Enfi m, com o desenvolvimento, a posição esquizo-maníaca cede à possibilidade de se abrir mão da ilusão de poder, até porque, de fato, a potência real torna-se viável, quando então di

Loreto propõe uma segunda posição depressiva. A renúncia à posse do objeto está intimamente relacionada à elaboração da situação edípica, com diminuição dos sentimentos de ciúme e inveja. Entretanto, o sentimento de medo torna-se presente de modo evidente.

Di Loreto destaca, reafi rmando Klein, que uma posição não é melhor nem pior que outra, e todas fi cam como legados importantes na nossa bagagem psíquica. Há, entretanto, situações em que a rigidez e o predomínio de uma delas confi guram-se como patologia.

Sintetizei, assim, a que se referem as posições tardias. O livro aborda muitas outras questões relacionadas ao tema. O que mais me impactou foi mesmo a dinâmica esquizo-maníaca e sua patologia, ao lado das grandes difi culdades na abordagem psicoterápica, mobilizando sentimentos contratransferenciais desgastantes, confusos, difíceis de suportar.

Tudo começa com Powel, nome dado a um garoto que veio para atendimento em razão do já destacado papel que tem a patologia do poder – Powel é uma corruptela de power. De fato, a partir da proposta de di Loreto, começamos a perceber os inúmeros Powels com os que nos deparamos, tanto no consultório como na vida.

Como diz ele, “são as pessoas mais difíceis de conviver que jamais encontrei na vida” (p. 79). As queixas são pesadas (p. 88), embora difusas (p. 87), em contraposição às observações iniciais, em que se nota uma facilidade de contato, ausência de medo, de persecutoriedade (sinal patognomônico: ausência de síndrome de adaptação a uma situação nova – p. 142), muitas vezes um elevado nível intelectual, com tudo transcorrendo bem até que se estabeleça alguma intimidade, reveladora de toda a onipotência e tirania de que são capazes, ou até que se esbarre em alguma experiência relacionada a poder, quando então entram em desespero: “preferem a loucura ao fracasso” (p. 30).

Quanto aos pais, Di Loreto aponta o “sinal da mãe estourada” (p. 87), completamente exaurida, exasperada, a cujas informações se deve dar todo o crédito. Os vínculos complacentes colaboram para que a impulsividade “corra solta”, sem freios. Achei interessante também como o autor sugere que a contemporaneidade, com sua ideologia neoliberal e perda de valores humanísticos, pode contribuir para o incremento dessa patologia (p. 12, 93).

Não podendo deprimir, já que a dor seria absolutamente insuportável, ficam também incapazes de reparar (não conhecem reparação ou negociação – apenas rendição; p. 163). Entretanto, a característica mais marcante é o que Di Loreto sugere como uma psicose lúcida. Ou seja, a questão fronteiriça habitualmente diz respeito ao fi o de navalha entre a neurose e a psicose. Não é o que se passa aqui: não há repressão, não há resquício das ansiedades neuróticas: “eles circulam entre a psicose e a normalidade” (p.86), sendo que o curto-circuito tem como disparador o poder.

Não podendo deprimir, já que a dor seria absolutamente insuportável, ficam também incapazes de reparar (não conhecem reparação ou negociação – apenas rendição; p. 163). Entretanto, a característica mais marcante é o que Di Loreto sugere como uma psicose lúcida. Ou seja, a questão fronteiriça habitualmente diz respeito ao fi o de navalha entre a neurose e a psicose. Não é o que se passa aqui: não há repressão, não há resquício das ansiedades neuróticas: “eles circulam entre a psicose e a normalidade” (p.86), sendo que o curto-circuito tem como disparador o poder.

São pacientes muito difíceis, que atuam “pesado” sobre o terapeuta (p. 144), podendo incitar o desejo de perdê-los. Vai então uma dica de Di Loreto: se você se deparar com um paciente que dê vontade ora de pôr no colo, ora de agarrar pelos colarinhos, ou que dê vontade de deter seu impulso de lançar-se a um desastre anunciado, suspeite que se trata de um esquizo-maníaco (p. 90).

Diante das serial losses (p. 24) que ocorrem com esses pacientes, como proceder numa psicoterapia em que os “dois” pacientes – os aspectos dissociados – não se relacionam e muitas vezes nem se conhecem? Acresça-se a isso que o aspecto maníaco é, afinal, a tentativa de defesa contra uma depressão insuportável, ou contra o medo inominável. Já que a porção maníaca não é passível de terapia, há que suportar as atuações enquanto se aguarda pela depressão. O autor destaca a importância de estar atento à contratransferência e sugere nivelar a contratransferência à transferência, ou seja, viver a verdadeira contratransferência (p. 161).

Di Loreto relata todas as agruras que sofreu no atendimento de Powel, passando por um momento mágico em que observa uma mãe interagindo com seu fi lhinho de dois anos, o que funcionou como uma chama iluminadora para sua relação com ele: brincar de trapacear!

Como são pacientes muito concretos, o clima onírico fica por conta do terapeuta. E como diz di Loreto logo no início do livro: “Se é pra sonhar, vamos sonhar grande! Pra que economizar sonho?” Há sonhos que viram realidade.

Para fi nalizar, torno-me porta-voz de inúmeros colegas que em algum momento da vida se benefi ciaram do contato com Oswaldo di Loretto. A ele, o meu agradecimento por mais esta preciosa contribuição.

 

 

1 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.
2 J. Steiner, artigo “A luta pela dominação na situação edípica”, Revista Brasileira de Psicanálise, 34:285-297, 2000.

Creative Commons License