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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.42 no.1 São Paulo Mar. 2008

 

ARTIGOS

 

Por uma psicanálise bem temperada

 

Por un psicoanálisis bien temperado

 

For a well temperate psychoanalysis

 

 

Aida Ungier*

Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora procura demonstrar que o paradigma da psicanálise se alicerça nos conceitos de inconsciente, pulsão, transferência e repetição. Aqueles que acolheram o legado freudiano admitem também, que a atividade de simbolização representa a marca do humano, ainda que estejam em desacordo quanto aos caminhos trilhados para concebê-la. Winnicott alargou os limites da clínica psicanalítica ao descrever um espaço– nem externo nem interno, nem eu nem não-eu, uma transição entre o subjetivamente concebido e o objetivamente percebido– onde se cria o eu e o mundo, domínio do simbólico e berço da cultura. Para ele, nossa tarefa se faz nesse espaço. Trata-se de um jogo em que o sujeito é pensado como um permanente “tornar-se”. Tal concepção da clínica é especialmente eficiente em pacientes psicóticos ou borderlines, pacientes cujo sofrimento psíquico está além do conflito edipiano, refletindo a impossibilidade de constituição do próprio eu.

Palavras-chave: Paradigma da psicanálise; Simbolização; Jogar; Espaço transicional.


RESUMEN

La autora ha buscado enseñar que el paradigma del psicoanálisis tiene como sostén los conceptos de inconsciente, pulsión, transferencia y repetición. Aquellos que han aceptado el legado freudiano admiten, también, que la actividad de simbolización representa la huella del humano, aunque estén en desacuerdo cuanto a los caminos recogidos para concebirla. Winnicott alargó los límites de la clínica psicoanalítica cuando describió un espacio– ni externo ni interno, ni yo ni no-yo, una transición entre lo subjetivamente concebido y lo objetivamente percibido– donde uno cría el yo y el mundo, dominio del simbólico y cuna de la cultura. Para el, nuestra tarea es hecha en ese espacio; es un juego en el que el sujeto es pensado como un permanente “volverse”. Tal concepción de la clínica es especialmente eficiente en pacientes psicóticos o borderlines, pacientes cuyo sufrimiento psíquico está mas allá del conflicto edipiano, reflejando la imposibilidad de constitución del propio yo.

Palavras clave: Paradigma del psicoanálisis; Simbolización; Jugar; Espacio transicional.


ABSTRACT

The author aims to show that the paradigm of psychoanalysis is based on the concept of unconscious, instinct, transference and repetition. Those who have welcomed Freud’s legacy admit, also, that the activity of symbolization represents the sign of human, even if they could disagree about the pathways followed in its conceiving. Winnicott has enlarged the limits of psychoanalytical clinics when he described a space– neither external nor internal, neither me nor not-me, a transition between what’s subjectively conceived and what’s objectively perceived– where one creates the self and the world, domain of the symbolical and source of the culture. For him, our task is built in such space; it’s a game where the subject is thought as a permanent “going on being”. Such conceiving of clinics is especially efficient with psychotic patients or borderlines, patients whose psychic suffering is beyond the Oedipian conflict, reflecting the impossibility of constitution of their own self.

Keywords: Paradigm of psychoanalysis; Symbolization; Playing; Transitional space.


 

 

Haverá, portanto, seriedade ao falar de jogos quando se trata de investigar a seriedade do conhecimento? Não, é evidente, se para nós a seriedade do conhecimento é triste e se excluirmos dele o humor e a abertura ao imaginário. Mas sim, obviamente, se reconhecermos– como Nietzsche– que nada é mais sério na atividade humana do que o jogo, se não confundirmos sentido do trágico e melancolia, se levarmos a sério, justamente, o trágico do conhecimento finito de uma realidade infinita, onde a frustração e a limitação não impedem a alegria, o “canto” e a “dança”, a exaltação do conhecimento pelo conhecimento.

Henri Atlan

 

1. Introdução

Ninguém melhor do que Henri Atlan, biólogo e estudioso de filosofia da ciência, para iniciar este colóquio imaginário com Winnicott, pois ambos elevaram o jogo ao centro da existência humana, colocando-o no cerne da constituição do eu, na base de toda a atividade criativa, incluindo, especificamente nela, a psicanálise. Atlan, em sua exegese a respeito de nossa competência para simbolizar a realidade, descreveu numerosas metodologias dotadas de maior ou menor racionalidade, característica que não lhes diminui a credibilidade. Existem métodos e objetos das ciências físicas e das ciências humanas que suscitam distintos interesses e desafios, assim como existem objetos e métodos das tradições místicas e míticas que guardam um outro tipo de racionalidade, com interesses e pontos de vista ainda mais diversos. Para Atlan, “sem razão” é a tentativa de unificar toda a experiência humana numa síntese que revelaria uma realidade última, eterna e ubiqüitária. Contra essa “razão acrobática”, ele propõe um remédio: “O humor sério das multiplicidades e da elasticidade dos jogos do conhecimento, da razão, do inconsciente, da linguagem, dos possíveis, do real-irreal, cujas transformações incessantes substituem, com vantagem, a busca alquímica da Realidade Última” (Atlan, 1994, p. 10).

Nessa pesquisa, Atlan aponta a psicanálise como uma forma particular de abordagem do real, uma técnica que implica essencialmente a vivência subjetiva, sem renunciar, todavia, a um estatuto de racionalidade científica. Ele aproxima, então, Winnicott, Fink e Wittgenstein, pois cada um deles, a sua maneira, encontrou no jogo, na brincadeira, a vivência mais rica de seriedade, encarnando a tragédia das vitórias e das derrotas do conhecimento. Ou seja, assim como os jogos de linguagem, em Wittgenstein, e os diferentes aspectos do jogo como símbolo do mundo, em Fink, também o jogo que se instala entre o bebê e o ambiente, constituindo o eu e, por extensão, a cultura seriam meios privilegiados de alcançar, conhecer e simbolizar o sujeito e o mundo.

Saber que a academia reconhece a contribuição de Winnicott não responde à questão que suscitou estas reflexões e me fez promover este encontro: qual argumentação poderia afastá-lo ou aproximá-lo da corrente psicanalítica? As modificações que ele introduziu ou os conceitos com os quais inovou o legado freudiano podem ser tomados como uma mudança paradigmática? Gostaria de lembrar que Thomas Kuhn — em seu livro consagrado sobre as mudanças operadas nos conceitos que norteiam determinada ciência, definiu paradigma como as realizações científicas universalmente reconhecidas que durante algum tempo forneceram problemas e soluções modelares à comunidade de praticantes de uma ciência; eventualmente, porém, surge uma modificação no comportamento do objeto observado, de sorte que todas as tentativas de justificar tal mudança por via das soluções até então consolidadas se mostram insatisfatórias, daí emergindo uma crise, com a conseqüente revisão do paradigma partilhado pela comunidade em questão.

Atlan, no entanto, afirma que as coisas da natureza e a nossa razão discursiva permanecem inalteráveis. O que muda, quando eclode uma nova descoberta científica, não diz respeito tanto aos conteúdos teóricos, os quais, apesar dos avanços tecnológicos, mesmo nas ciências exatas, podem sempre ser refutados. A mudança incide na relação entre a nossa racionalidade e o objeto observado. Quando Freud ouviu a queixa enigmática escondida no sintoma das histéricas e propôs um conceito substantivo para o inconsciente, bem como a ficção teórica de uma força– a pulsão, motor de um aparelho virtual– capaz de simbolizar, de dar sentido, de historicizar aquela afetação, criou um paradigma. O sintoma passou a ser entendido como mensagem enviada ao outro, sendo passível de deciframento. Assim, para dar início ao jogo em que pretendo questionar a “linhagem” freudiana de Winnicott, bem como sublinhar sua mais valiosa contribuição– o conceito de transicionalidade–, será preciso falar do momento inaugural dessa nova forma de olhar as formações sintomáticas. No princípio, está Freud.

 

2. Ainvenção do paradigma

A aventura freudiana é tributária da modernidade. Sem o conceito de sujeito e o advento da racionalidade científica, seria impensável o saber sobre o inconsciente. É sempre bom lembrar que Freud a iniciou com o Projeto de psicologia para neurólogos(1950 [1895]/1977), trabalho que abandonaria para dar um novo rumo à descrição do aparelho psíquico, até ali visto como um maquinismo. Dedicou-se então a investigar as produções dessa máquina– os sonhos, os chistes, os atos falhos, os sintomas– e, através delas, propôs um modelo de funcionamento de todo o sistema. Tais produções eram fruto de um processo que visava simbolizar o vivido. Paradoxalmente, Freud encerraria sua obra com um esboço, o Esboço de psicanálise(1939 [1940]/1977): ele apenas delineara a psicanálise, organizando-a num estatuto revisado sistematicamente– a metapsicanálise. Ou seja, iniciamos o jogo com uma contradição: ser fiel a Freud é insistentemente se interrogar, como ele o fez, a respeito do sofrimento humano, basculando sempre entre um projeto e um esboço.

Ora, se a psicanálise é tributária da racionalidade científica, como harmonizar a idéia de uma separação radical entre corpo e mente (razão) e a idéia de uma subjetividade enraizada no corpo? Haveria, no nascedouro, um divórcio entre a psicanálise e o pensamento da modernidade? O objeto de pesquisa freudiano era um sujeito premido pelas moções pulsionais internas, pela imprevisibilidade da relação com o outro, pela inclemência da natureza, pela sexualidade e a morte. As reflexões de Freud diziam respeito a um objeto complexo, antecipando questões fundamentais do pensamento contemporâneo, para além do que era desenvolvido pela comunidade científica no fim do século xix e começo do xx. O mal-estar sobre o qual ele se debruçou era volúvel, estava em permanente transformação. Sendo assim, se a psicanálise não pode ser atrelada à ortodoxia, como distinguir os verdadeiros fiéis dos transgressores?

Partindo de um esboço, aqueles que percorreram o texto freudiano balizaram-se por conceitos fundamentais: inconsciente, pulsão, transferência e repetição. Essa organização teria por finalidade a simbolização. As divergências surgiriam a partir da descrição do processo que promove tal objetivo. Logo, ser fiel reside em acatar esse enquadramento. Winnicott assim o fez, temperando à sua maneira a jovem ciência, que por ser, desde o nascedouro, uma prática clínica, possui ingredientes básicos; como toda receita, porém, o modo de fazer é particular e único, caso a caso.

 

3. As vicissitudes do legado freudiano

Para Freud, o surgimento da subjetividade articulava-se aos processos de defesa, em especial ao recalcamento. Através dele, criava-se o aparelho: inconsciente e consciente estavam irremediavelmente discriminados, ainda que permanecessem intimamente interligados. Ele fazia distinção entre a defesa contra a pulsão– o conflito– e a defesa contra o trauma, ou seja, contra a inundação do aparelho psíquico por forças que este seria incapaz de metabolizar, perturbando sua estruturação e funcionamento. No primeiro caso, vamos nos deparar com as formações de compromisso, próprias das neuropsicoses de defesa (Freud, 1977/1894); no segundo, com os esforços para estabilizar o aparelho, dentre eles a descarga do excesso pulsional diretamente no corpo, própria das neuroses atuais (Freud, 1894), e com a compulsão à repetição, conceito desenvolvido a partir das reflexões sobre a pulsão de morte (Freud, 1977/1920). Enfim, se o que nos torna humanos é esta ação psíquica que metaboliza o aporte pulsional, aquilo que não for metabolizado/simbolizado retorna como sofrimento, como angústia, contra a qual o sistema deve se precaver.

A angústia foi pensada, inicialmente, como resultado do recalcamento da libido frente à ameaça de castração. No final do percurso freudiano, entretanto, ela se torna o sinal que desencadeia o recalque. Ao desencadeá-lo, o ego reproduz a situação traumática. A ameaça de castração se transforma em sinal de perigo, através do trabalho de ligação, de simbolização (Freud, 1926[1925]/1977). Portanto, o nível de angústia dependerá não só da intensidade pulsional, mas também da capacidade egóica de simbolizar. Caso esta não seja eficiente, a moção pulsional pode regredir ou se degradar, fenômeno que Freud denominou desfusão. Nesse caso, a pulsão de morte, silenciosamente, promove uma evacuação direta da tensão ou o aparelho psíquico se vale da compulsão à repetição, como tentativa de ligação desse excesso de energia.

Sem a fusão pulsional, não haverá a produção das formações do inconsciente, fato que se evidencia na clínica através dos pacientes psicóticos ou borderlines, nos quais a função de ligação exercida pelo aparelho psíquico foi seriamente comprometida — e por isso Freud não recomendava a psicanálise nesses casos. Com vistas ao alargamento do campo de ação, assistimos hoje à demanda por uma aproximação terapêutica original, que reproduza temporariamente tal função, através da transferência, até que esses pacientes possam exercê-la, retornando à técnica clássica. Não se trata, portanto, de mudança de paradigma; ao contrário, trata-se de sua afirmação.

Souza (2007), analisando a contribuição dos autores pós-freudianos quanto à questão da possibilidade de simbolização e sua relação com o binômio pulsão/defesa, afirmou que podemos dividi-los em dois grupos principais: um enfatiza a compulsão à repetição (psicanálise francesa) e o outro, o papel do ego (escola inglesa). Quanto ao binômio trauma/defesa, de um lado há os que consideram o trauma (pulsão) constitutivo do psíquico, sendo a criatividade subjetiva uma defesa contra ele; aqui se inclui não só a psicanálise francesa (Lacan e Laplanche, em especial), mas também a escola inglesa (principalmente Klein e Bion). De outro lado, há os que acreditam numa criatividade primária, não traumática nem defensiva, dentre eles Winnicott. Para estes, a criatividade é trabalho de eros, está além do conflito.

Lacan (1953), por exemplo, vai propor um retorno a Freud articulando a psicanálise com a lingüística e a antropologia, afirmando que o sujeito se constitui a partir da desnaturação exercida pelo encontro traumático com o Outro da linguagem. A pulsão (de morte) será capturada e deslizará sob a cadeia significante, fazendo-se domínio do sexual, e, através das operações de metáfora e metonímia, promoverá o sentido. Portanto, nesse aparelho de significação, a compulsão à repetição aponta algo fora da representação, algo que insiste na busca de significado. A forma com que o sujeito responde a esse encontro inaugural com o Outro determinará sua estrutura, sua relação com a Lei e o desejo.

A escola inglesa vai apostar na parceria entre o bebê e o objeto para dar conta do traumático da pulsão e da simbolização. Para Melanie Klein (1952), essa parceria só será alcançada a partir da posição depressiva, quando é possível discernir objeto interno e objeto externo, desenvolvendo-se, no bebê, a preocupação por este. A desfusão terá lugar em virtude de processos regressivos, surgindo, então, os mecanismos defensivos dirigidos contra o tipo de angústia particular a cada etapa do desenvolvimento emocional. Bion (1952), um kleiniano especialmente original, propôs que a função alfa, atividade de pensar realizada pelo objeto, é fundamental para produzir a ligação pulsional necessária à simbolização. Do mesmo modo, a desfusão pulsional é descrita a partir de elementos beta, objetos bizarros e ataque ao vínculo (Bion, 1957).

Admitir a fusão e a desfusão pulsional como processos, é claro, impede o psicanalista de pensar os quadros clínicos como estruturas definitivas. Do mesmo modo, uma teoria que defenda o aparelho de pensar como estrutura e o inconsciente como máquina desejante, embora utilizando o mesmo referencial da psicanálise, adotará uma direção de cura inteiramente diversa da teoria que propõe a articulação entre ego e objeto como raiz da simbolização. Aqui, não se trata de escutar a singularidade do desejo oculta nas malhas do discurso; trata-se de servir de continente psíquico, repetindo transferencialmente a parceria ego/objeto, promovendo, através das interpretações, a religação e a recuperação do sentido perdido.

 

4. Inventando a subjetividade e o mundo

Enfim, Winnicott. Sendo herdeiro de Freud, Ferenczi e Klein, Winnicott também valorizou a relação objetal como formadora da subjetividade. Promoveu, no entanto, uma releitura bastante original do tema, ao realçar algumas vicissitudes da jornada do bebê desde a dependência absoluta em relação ao objeto, através da dependência relativa, em direção a um objetivo inalcançável: a independência. Do ponto de vista do bebê, ele distinguiu as conseqüências psíquicas caso o ambiente fosse ou não “suficientemente bom” (Winnicott, 1958). Do ponto de vista do objeto, descreveu inicialmente um objeto concebido pelo bebê– logo, um objeto subjetivo–, até a possibilidade de o bebê o perceber– logo, de reconhecê-lo como externo. Trata-se de uma experiência paradoxal: o bebê cria o objeto no lugar onde este lhe foi oferecido, e compreender a riqueza dessa afirmação reside em aceitá-la sem contestação, ou seja: a separação se ampara na união.

A mais importante contribuição de Winnicott para a psicanálise foi o conceito de transicionalidade (Winnicott, 1958), que inclui o espaço, os objetos, os fenômenos transicionais. Fenômenos que se passam nem fora, nem dentro do bebê; objetos nem eu, nem não-eu, que configuram o playground, onde cada um de nós, em lugar de ser cópia, pode ficar diferente,– ser a um só tempo “si mesmo” e um perpétuo “tornar-se”. Esse espaço potencial se desdobra por toda a experiência cultural, promovendo a contínua exigência de simbolização.

Winnicott observou também a forma peculiar de os bebês estimularem a boca com as mãos, numa atividade freqüentemente tranqüilizadora. Posteriormente, ele se apega a um objeto qualquer, um brinquedo macio, um fiapo da malha do cobertor etc. Esse objeto aparentemente sem importância será a primeira possessão não-eu do bebê. Diz Winnicott:

Introduzi os termos “objetos transicionais” e “fenômenos transicionais” para designar a área intermediária de experiência entre o polegar e o ursinho, entre o erotismo oral e a verdadeira relação de objeto, entre a atividade criativa primária e a projeção do que já foi introjetado (Winnicott, 1958, p. 14).

Segundo André Green, Winnicott, modificou a maneira de encarar a direção da cura:

Não se trata mais do modelo do sonho, como em Freud, e, sim, do modelo dos cuidados maternais, a partir desse modelo se abre o campo para pensar a área intermediária, a área da ilusão, do analista como objeto transicional, da relação entre o analista e o brincar (le jeu), da relação entre o eu e o brincar (le jeu). Surge então uma categoria extraordinária de pensar que é o pensamento paradoxal (Green, 1984, p. 192).

No pensamento paradoxal, ocorre uma sUSPensão do julgamento de existência, de sorte que não é necessário questionar se o objeto foi criado ou encontrado. Não é necessário saber se ele é interno ou externo. Ele se encontra no limite. Fiel, todavia, a suas origens kleinianas, Winnicott admite ser necessário o estabelecimento do objeto interno (o meio confiável) para que o objeto transicional se instale, pois, se a mãe ficar longe por um período além de certo limite, a lembrança ou a representação interna do objeto se esmaece e os fenômenos transicionais se tornam gradativamente sem sentido. Podemos observar o objeto ser descatexizado. Ou seja, a possibilidade de simbolizar repousa na disponibilidade devotada do ambiente.

No entanto, algumas das afirmações de Winnicott suscitaram desconfiança quanto à quebra do paradigma da psicanálise, especialmente o tratamento que ele deu ao pulsional. Winnicott (1962) afirmou que seria impossível pensar o id sem que o ego tivesse se organizado. A meu ver, isso não implica a negação do pulsional; implica uma proposta de não existência, no início do desenvolvimento, de uma instância psíquica para nomeá-lo como tal. Assim, do ponto de vista do bebê, inicialmente, como não existe um ego porém uma unidade bebê-mãe (ambiente), não se pode falar que exista um id. O próprio Winnicott fez referência ao “erotismo oral”, como citado acima, quando descreveu os objetos transicionais.

Se o modelo do sonho, para a direção da cura, se transformou no modelo dos cuidados maternais, com ampla aceitação no campo psicanalítico, a criatividade sem o apoio pulsional, baseada na satisfação das necessidades do ego, ficou mal esclarecida. O que a distingue da sublimação? Como pensar uma ação psíquica fora do pulsional, se este é o motor da engrenagem criada por Freud?

O conceito freudiano de sublimação define uma vicissitude pulsional em que a finalidade se desvia para um objetivo não sexual. Ora, Winnicott descreveu os primórdios do desenvolvimento humano, um tempo anterior à aquisição da fala e da alteridade, quando eram igualmente importantes, para ele, a satisfação pulsional e a satisfação das necessidades do ego, em desenvolvimento. O holdinge o handling(Winnicott, 1960) promovem a satisfação das necessidades do ego, protegendo o bebê das ansiedades impensáveis, de sorte que ele possa ultrapassar as desarmonias passageiras com o ambiente, simbolizando-as. Cabe aqui lembrar o terror de Piggle(Winnicott, 1974) frente a sua mamãe-preta, o escuro, a ausência, o que não tem nome. Criar, simbolizar, passa a estar diretamente ligado à satisfação das necessidades do ego, o que não significa que seu motor não seja pulsional.

Diferentemente de Freud e dos autores da escola inglesa, Winnicott, assim como Lacan, não trabalhava com a dualidade pulsional. Lacan, quando falava em pulsão, referia-se à pulsão de morte, que ao ser capturada pela cadeia significante tornava-se domínio do sexual. Winnicott, ao falar de pulsão, referia-se à pulsão de vida, ao sexual. A agressividade é vitalidade, energia, força. Se surgir a destrutividade, foi incompetência do meio em acolher o gesto espontâneo do bebê; ela é secundária, reativa (Winnicott, 1956).

É sabido, enfim, que freqüentemente se questionou a pouca importância dada por Winnicott à função paterna. Ora, em 1958 ele descreveu amplamente um espaço no qual, graças à sUSPensão do juízo de realidade, quando não se exige a admissão imediata do estatuto do objeto– se este foi criado ou encontrado–, torna-se possível simbolizar a separação entre o eu e o mundo. Em 1989, Winnicott enfatizou o papel do pai como o terceiro da relação. Não apenas a pessoa que se relaciona com a mãe. A imagem do pai no mundo interno da mãe, discriminando-a do bebê, sustenta o espaço que acolhe o jogo entre o imaginário e o simbólico e pare o bebê das águas da mãe.

Winnicott trata da pré-história do sujeito humano, do infans. A história vem com a palavra. O jogo do carretel descrito por Freud (1920), por exemplo, demonstrou que seu neto já avançara bastante em relação ao bebê descrito por Winnicott; já dominava o recurso da fala, pois o jogo se acompanhava de dois sons: fort/da. Gestos e sons o tornaram senhor da ausência, permitindo-lhe dominar a dor pela falta. O jogo da espátula ou do rabisco são precursores desse momento em que ocorre discriminação entre o eu e o mundo, em que o bebê admite um limite, a grade do berço, assim como o fio de segurança que o mantém esperançoso quanto ao retorno do objeto.

O conceito de espaço transicional nos fez compreender mais amplamente a transição do bebê dos braços da mãe para o meio cultural. O domínio do simbólico é o domínio do pai. Seguindo os passos do pai, ganhamos o mundo. Assim desfiamos toda a nossa existência: entre os braços da mãe e os passos do pai, engendrando um caminho ao caminhar.

 

5. Da clínica do conflito à clínica da invenção

Para Winnicott, estar impossibilitado de inovar dentro de um saber, acrescentando-lhe algo de original produzido no seio do exercício desse saber, não significa fidelidade– equivale à submissão. Ele descreveu o humano como um longo e contínuo processo, um jogo que se estabelece entre o novo e a tradição. O espaço do jogo, mais do que um lugar euclidiano, é um fluxo, uma temporalidade. A estabilidade psíquica, a saúde, reside justamente nesse jogo, nessa aposta permitida a cada sujeito de se reinventar no próximo passo.

Atlan, como Winnicott, admite que a aquisição da fala, junto com a maturação fisiológica e social, promove a evolução dos jogos sem regras (playing) para os jogos com regras (game), dentre eles a própria linguagem. Para Atlan, o conhecimento científico fica a meio caminho entre estes dois pólos: não devemos transgredir firme ou sistematicamente as regras– como se elas não fossem acordos para que, justamente, se faça o jogo–, nem devemos impedir a continuidade deste pela submissão a elas.

Para Winnicott (1958), o jogo entre a teoria e a clínica contempla a psicanálise como um encontro que se efetua na sobreposição de duas áreas do brincar: a do paciente e a do analista, duas pessoas que brincam juntas. Se isso não é possível, a primeira tarefa do analista será trazer o paciente de um estado em que ele não é capaz de brincar para um estado em que se torna capaz. Isso se evidencia na escolha das palavras, na inflexão da voz, no senso de humor. A associação livre, regra fundamental prescrita por Freud, é sem dúvida o caminho mais seguro de acesso ao sujeito do inconsciente, em se tratando de pacientes que se vêem às voltas com sofrimentos relacionados ao conflito edipiano. Quando se trata de pacientes psicóticos ou borderlines– pacientes para os quais a linha divisória entre o eu e o não-eu ainda não ficou estabelecida–, somente uma abordagem que não exija essa definição poderá ter sucesso em ajudá-los a simbolizar aquilo que está além da palavra.

Na teoria winnicottiana, brincar é criar. A criatividade, aqui, não está vinculada necessariamente à arte, embora esta se inclua no conceito. Ela é definida como uma proposição universal e se relaciona ao estar vivo. O impulso criativo é algo que se faz presente quando qualquer pessoa saudável, seja ela criança, seja adulto, realiza desde uma obra de arte até uma sujeira com as fezes ou prolonga o choro como fruição do som musical. O brincar surge da integração do que Winnicott denominou elemento feminino puro– o sercom o elemento masculino puro, o fazer. O elemento feminino puro está diretamente ligado ao objeto subjetivo, encontrando-se a unidade sujeito-objeto na raiz da capacidade de ser (Winnicott, 1971, p. 114). O elemento masculino pressupõe uma separação entre o eu e o objeto, relacionando-se ao objeto objetivo.

Os pacientes borderlinesou psicóticos estão às voltas com a impossibilidade de ser; assim, terem seu gesto espontâneo acolhido no espaço analítico torna possível o desabrochamento do ser. Eis a petição de princípio da clínica winnicottiana: propiciar uma oportunidade à experiência amorfa e aos impulsos criativos, motores e sensórios, dado que, antes de tudo, sere depois fazerconstituem a matéria-prima do brincar e do viver.

Psicanalisar implica evitar as experiências esquematizadas: ao ser afetado, acolher o que nos afeta e, a partir do assombro, engendrar o verbo. Esta proposta trágica de pensar a psicanálise não aliena Winnicott de seu paradigma: “Freudiano, sim. Ortodoxo, jamais”.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Aida Ungier
Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ
Av. Ataulfo de Paiva 135/1006– Leblon
22440-031– Rio de Janeiro RJ - Brasil
Tel.: 55 21 2239-4068
E-mail: aidaungier@globo.com

Recebido em 15.2.2008
Aceito em 10.3.2008

 

 

*Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ

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