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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.42 n.1 São Paulo mar. 2008

 

ARTIGOS

 

O brincar como modelo do método de tratamento psicanalítico

 

El juego como modelo del método de tratamiento psicoanalítico

 

Playing as a model of the psychoanalytical method of treatment

 

 

Leopoldo Fulgencio1

Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUC-Campinas
Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor mostra que o tratamento psicanalítico, do ponto de vista de Winnicott, tem um modelo clínico diferente do modelo freudiano e kleiniano. Esse modelo se torna mais claramente visível caso utilizemos, para compreensão geral das propostas e diferenças entre esses autores, a noção de paradigma tal como a formulou Thomas Kuhn. Ao explicitar as características da matriz paradigmática da psicanálise tradicional, podemos focar a atenção num dos elementos dessa matriz– o que diz respeito ao modelo heurístico para a prática de resolução de problemas (clínicos) na psicanálise– e, analisando a obra de Winnicott, distinguir, de um lado, um método de tratamento que tem na interpretação e no desvelamento dos conflitos inconscientes (referidos à sexualidade e ao complexo de Édipo) o seu guia, e, de outro lado, um modelo clínico psicanalítico que tem o seu telosno brincar, na criatividade e no encontro de si mesmo.

Palavras-chave: Método; Tratamento; Brincar; Winnicott.


RESUMEN

El autor mostra que el tratamiento psicoanalítico, del punto de vista de Winnicott, tiene un modelo clínico diferente del modelo freudiano y kleiniano. Este modelo es más claramente visible en el caso de que utilicemos, para comprensión general de las propuestas y diferencias entre estos autores, la noción de paradigma, tal como la formuló Thomas Khun. Al explicar las características de la matriz paradigmática del psicoanálisis tradicional, podemos focalizar nuestra atención en uno de los elementos de esta matriz– lo que se refiere al modelo heurístico para la práctica de resolución de problemas (clínicos) en el psicoanálisis– y, analizando la obra de Winnicott, diferenciar, de una parte, un método de tratamiento que tiene en la interpretación y el desvencijar de los conflictos inconscientes (referidos a la sexualidad y al complejo de Édipo) su guía, y de otra parte un modelo clínico psicoanalítico que tiene su telos en el juego en sí, en la creatividad y en el encuentro de sí mismo.

Palavras clave: Método; Tratamiento; Juego; Winnicott.


ABSTRACT

The purpose of this paper is to show that the psychoanalytical treatment, from Winnicott’s perspective, offers a clinical model different from Freud’s and Klein’s. To have a global understanding of these authors’ objectives and differences, this model can be more clearly seen if we use the idea of paradigm as it was elaborated by Thomas Kuhn. By specifying the characteristics of the paradigmatic matrix of the traditional psychoanalysis, we can focus our attention on one of the elements of this matrix– which concerns the heuristic model for (clinical) problem solving purposes in psychoanalysis–, and by analyzing Winnicott’s work, we can distinguish a method of treatment which is based on the interpretation and unveiling of unconscious conflicts (sexuality and the Œdipus complex) from another type of psychoanalytical clinical model which has its telos in playing, creativity and meeting oneself.

Keywords: Method; Treatment; Playing; Winnicott.


 

 

Para Winnicott, a atividade de brincar constitui um aspecto universal da natureza humana, ainda que existam pessoas que possam estar profundamente doentes e não conquistem essa capacidade, precisando, então, de tratamento (Winnicott, 1968i, p. 63).2 Ao caracterizar o que deriva da ação de brincar, Winnicott dirá:

o brincar facilita o crescimento e, portanto, a saúde; o brincar conduz aos relacionamentos grupais; o brincar pode ser uma forma de comunicação na psicoterapia; finalmente, a psicanálise foi desenvolvida como forma altamente especializada do brincar, a serviço da comunicação consigo mesmo e com os outros (Winnicott, 1968i, p. 63).

Ele afirma, então, algo surpreendente, e diz considerar que o tratamento psíquico, seja pelo método psicanalítico, seja por outros métodos psicoterápicos, “se efetua na sobreposição de duas áreas do brincar, a do paciente e a do terapeuta” (Winnicott, 1968i, p. 59). Mais ainda, ele caracterizará a clínica psicanalítica como uma forma altamente especializada de brincar: “O natural [universal] é o brincar, e o fenômeno altamente aperfeiçoado do século xx é a psicanálise” (Winnicott, p. 63).

A primeira questão que se coloca, a partir dessas afirmações, é saber o que Winnicott quer dizer com o verbo substantivado brincar. Ele não está fazendo uma afirmação ingênua, mas, sim, qualificando o brincar de uma maneira conceitual que ultrapassa o seu sentido popular e ordinário; mais ainda, ele parece considerar a brincadeira numa perspectiva diferente da adotada por Melanie Klein.

O que pretendo, neste artigo, é especificar mais detalhadamente o que Winnicott considera como sendo o brincar. Para isso, retomarei sinteticamente as características gerais do método de tratamento psicanalítico tradicional, tal como Freud e Klein o compreendem, utilizando-me do instrumento conceitual cunhado por Thomas Kuhn, a noção de paradigma, reapresentando o proposto por Zeljko Loparic (2001, 2006) nesse sentido.

Por meio desse instrumento será possível explicitar objetivamente o modelo utilizado para desenvolvimento da pesquisa clínica psicanalítica ou, noutros termos, o modelo clínico que serve para a descoberta e para o tratamento dos pacientes (sejam eles adultos ou crianças)– modelo que poderemos caracterizar, num sentido estrito, como sendo, na linguagem de Kuhn, o modelo heurísticode uma matriz paradigmática específica. A partir de tais esclarecimentos, poderei comentar como Melanie Klein compreende o brincar infantil e em que sentido elabora uma técnica do brincar como procedimento clínico, fazendo avançar o método de tratamento psicanalítico. Ao final, retomarei, então, as posições de Winnicott, para esclarecer por que o tratamento analítico corresponde a uma maneira de “brincar juntos”, ou a uma maneira de levar o paciente “de um estado em que não é capaz de brincar para o estado em que o é” (Winnicott, 1968i, p. 59).

 

2. Aspectos gerais dos paradigmas na psicanálise

O termo paradigmatem um significado conceitual específico, estabelecido pelo historiador e epistemólogo da ciência Thomas Kuhn. Significa, grosso modo, o conjunto de teorias, conceitos, modelos e valores compartilhados por determinado grupo que se dedica a resolver determinados tipos de problemas (Kuhn, 1970). Esse conjunto de crenças compartilhadas não só faz com que os participantes do grupo se reconheçam como parte de uma mesma comunidade, mas também estabelece quais são os problemas pertinentes a determinada disciplina quais são os tipos de solução admissíveis e/ou procuráveis.

No estudo da psicanálise, o uso do termo paradigmatem sido feito com maior ou menor referência ao sentido conceitual dado por Kuhn, e não é pequena a divergência e a diversidade na compreensão e utilização do termo quando se trata do estudo ou pesquisa na área. Não se trata, aqui, de retomar esse tipo de diversidade, o que já fiz noutro lugar (Fulgencio, 2007b), mas de utilizar o instrumento construído por Kuhn, tal como um microscópio ou telescópio, para analisar o método de tratamento psicanalítico, tendo em vista esclarecer em que sentido o brincar pode ser reconhecido como um tipo de modelo winnicottiano para a prática clínica.

Para Kuhn, um paradigma corresponde a um conjunto de características que, juntas, definem a estrutura e o modo de funcionamento de determinada ciência. Ele às vezes também usa a expressão matriz paradigmática, querendo com isso dizer que os elementos que constituem um paradigma funcionam à semelhança dos elementos da função matemática denominada matriz, na qual as variáveis que a compõem se determinam mutuamente, sem haver propriamente uma hierarquia entre elas. Assim, todo paradigma é composto por:

1)  um problema exemplar, que serve de referência e modelo para compreensão, formulação e solução de todos os problemas de determinada ciência;

2)  uma teoria geral-guia, aplicável a todos os problemas;

3)  um modelo ontológico, ou seja, um conjunto de princípios e conceitos a priori, que são a parte metafísica do paradigma;

4)  um modelo heurístico, composto por um conjunto de analogias, comparações, metáforas e modelos comumente aceitos, que auxiliam na pesquisa e na descoberta dos problemas e suas soluções, que esclarecem e orientam a pesquisa;

5)  um conjunto de valoresteóricosou epistemológicos(sobre a natureza e tipo de conhecimento a ser produzido) e um conjunto de valores práticos(referentes aos objetivos e modos como esse conhecimento deve ser procurado e produzido).

Zeljko Loparic tem apresentado uma leitura da psicanálise e seu desenvolvimento em que mostra as diferenças entre o paradigma freudiano, ou paradigma da psicanálise tradicional, e o paradigma da psicanálise proposta por Winnicott.3 Apresentarei sinteticamente essas diferenças.

O exemplarna psicanálise tradicional é o do “andarilho na cama da mãe”, claramente num cenário edípico, enquanto em Winnicott temos como exemplar o “bebê no colo da mãe”, marcado, então, por uma relação dual que só depois de um longo processo de amadurecimento chegará à relação a três corpos, conquistando a possibilidade de ter conflitos do tipo edípico.

A teoria geral-guiatradicional é a teoria do desenvolvimento da sexualidade, enquanto em Winnicott temos a sua teoria do amadurecimento pessoal, que engloba e redescreve a teoria do desenvolvimento da sexualidade.

O modelo ontológico do ser humano, na psicanálise tradicional, toma o psiquismo como um aparelho movido por forças (pulsões) e energias (libido), considerando que esse aparelho é tal qual qualquer outro objeto da natureza, ou seja, regido por leis naturais; em Winnicott, além do abandono da teorização metapsicológica,4 temos outro tipo de ontologia que pensa o ser humano como algo que não pode ser reduzido a um objeto natural determinado por leis naturais, mas é impulsionado pela necessidade de ser e por uma tendência inata à integração.

O modelo heurísticotradicional usa de metáforas e analogias com sistemas que funcionam como máquinas, tendo como metodologia de pesquisa e cura a interpretação dos conteúdos inconscientes na relação transferencial com o analista; na psicanálise winnicottiana, esse tipo de analogia e metáfora é abandonado, bem como tem sua metodologia clínica centrada não tanto na interpretação, mas num determinado tipo de relação, encontro e comunicação entre o paciente e o analista (modelo que tomarei como objeto de estudo deste artigo).

Loparic ainda comenta a diferença entre os valores, afirmando que, na psicanálise tradicional, esta é concebida como ciência natural cujo objetivo, grosso modo, é a eliminação do sofrimento decorrente dos conflitos internos pulsionais do tipo libidinal. Em Winnicott, por outro lado, a psicanálise é tomada como uma ciência específica que procura estudar objetivamente a natureza humana; difere do quadro estrito de uma ciência natural, além de tomar como objetivo do tratamento não a eliminação do sofrimento, mas, sim, a conquista de um si-mesmo que pode considerar a vida como algo que vale a pena viver porque lhe diz respeito.

Para uma análise mais detalhada desses paradigmas e dessas comparações, remeto o leitor a Loparic (2001; 2006). Certamente esta rápida retomada da proposta de leitura feita por esse autor deixa aqui muitas lacunas. Meu objetivo, no entanto, é muito mais traçar um quadro geral, a partir do qual um ponto específico possa ser analisado, a saber: a questão do modeloheurísticoou, noutros termos, a questão do modelo que guia a pesquisa psicanalítica– em especial, a pesquisa clínica.

Deste ponto de vista, pode-se dizer que o modelo psicanalítico tradicional visa à análise dos conteúdos inconscientes, por meio da interpretação das “relações de objeto” associadas ou não diretamente à relação transferencial (pensadas, via de regra, em referência à sexualidade e ao complexo de Édipo). O objetivo do tratamento é diminuir o sofrimento causado pelo conflito interno inconsciente, fortalecendo o ego, para que este possa dar uma outra solução ao conflito que, na doença, restringe o poder do paciente de agir e aproveitar da existência (Freud, 1916-17, p. 471).

 

3. Aspectos gerais do brincar para Melanie Klein

Não me parece haver dúvidas de que Melanie Klein é freudiana, de que reitera as principais características desse paradigma– em especial, a consideração do complexo de Édipo como problema básico e estruturante do psiquismo–, propondo inclusive a concepção de que o ser humano vive o conflito edípico em momentos muito primitivos, o que ela caracterizou como um complexo de Édipo precoce (Klein, 1928). Sabemos que Klein tornou possível a aplicação do método psicanalítico ao tratamento de crianças e pacientes psicóticos. Nesse sentido, sua teoria do brincar ocupa um lugar fundamental, como meio pelo qual o método psicanalítico ampliou seu poder de resolução de problemas clínicos. Pode-se afirmar que sua concepção sobre o brincar corresponde a uma radicalização do modelo heurístico freudiano.

Hinshelwood, ao analisar a técnica e a teoria do brincar em Melanie Klein, dirá:

A abordagem de Klein à análise de crianças muito pequenas era simples e inovadora: a liberdade de brincar podia substituir as associações livres, e as fantasias expressas no brinquedo eram “a mesma linguagem, o mesmo arcaico e filogeneticamente adquirido modo de expressão com que estamos familiarizados nos sonhos” (in Klein, “The psychological principles of early analysis”, The writings of Melanie Klein. Vol. 1. London: Hogarth, p. 134). (Hinshelwood, 1992, p. 26-27).

O importante, para Melanie Klein, era o fato de que a brincadeira era uma maneira de a criança expressar o seu mundo interno, ou, noutros termos, a brincadeira era uma maneira pela qual as fantasias inconscientes infantis eram expressas. Então, a interpretação da brincadeira correspondia nada menos do que à interpretação dos conteúdos das fantasias inconscientes que a brincadeira tornava possível apreender a partir de seu simbolismo (Hinshelwood, 1992, p. 27).

Klein descobriu que esse tipo de interpretação tinha o poder de modificar a ansiedade infantil associada à fantasia inconsciente. A interpretação, reveladora da fantasia inconsciente, tinha o poder de fazer com que a criança diminuísse, por assim dizer, seu grau de fixação a essa fantasia inconsciente e aos objetos (pessoas) a ela associada. Klein nos mostra sua maneira de trabalhar, ao apresentar o relato de um caso clínico em que explicita como chegou ao desenvolvimento de sua perspectiva de tratamento analítico para crianças:

Desta vez, arrisquei-me e disse a Ruth que as bolas dentro do copo, as moedas dentro do moedeiro e os conteúdos da bolsa, tudo isso significava crianças dentro da mãe e o desejo de mantê-las trancadas com toda a segurança para que não viesse a ter mais nenhum irmão. O efeito de minha interpretação foi assombroso. Pela primeira vez, Ruth voltou sua atenção para mim e começou a brincar de maneira diferente, menos tolhida (Klein, 1926, p. 46-47).

O exemplo da técnica psicanalítica kleiniana do brincar, como modelo do seu método clínico, pode ser também reconhecido no tratamento do caso Dick (Klein, 1930). Klein toma claramente a brincadeira de Dick com trens e túneis como uma encenação de fantasias sexuais inconscientes dirigidas à mãe e ao triângulo edípico. Ao interpretar esses conteúdos, Klein considera que Dick pôde substituir determinados objetos por outros, desviando-se de objetos que lhe causavam grande angústia, para outros, produzindo uma equação (igualdade) simbólica entre esses objetos e levando Dick a expandir seu mundo de relações, o que produzia uma diminuição das ansiedades e tornava possível a simbolização e a retomada do desenvolvimento psicossexual (Klein, 1930, p. 259).

Certamente há uma complexidade na maneira como isso é feito, bem como na maneira com que essa descoberta acaba por alterar a própria técnica de tratamento de pacientes adultos, mas aqui não se trata de explicitar essas dinâmicas e modos de uso do brincar no tratamento psicanalítico kleiniano; trata-se tão-somente de fazer uma caracterização geral do brincar, mostrando como que esse brincar é importante para Klein, porque expressa os conteúdos das fantasias infantis– fantasias relacionadas aos conflitos sexuais, cuja dinâmica deve ser entendida em função da dinâmica reconhecível no romance edípico.

 

4. Winnicott e o brincar como metodologia clínica

Winnicott está ciente de que sua maneira de conceber o brincar não o considera unicamente uma forma de expressar (sublimar) as pressões instintuais (Winnicott, 1968i, p. 60). Ele procura chamar a atenção para uma outra dimensão: não a que se ocupa com a análise dos conteúdos da brincadeira, mas aquela que se ocupa com o próprio fato ou a possibilidade de fazer essa ação. Marcando sua perspectiva, ele diz:

Em seus escritos, porém, Klein, na medida em que estudava a brincadeira, matinha seu interesse centrado quase que inteiramente no uso desta. O terapeuta busca a comunicação da criança e sabe que geralmente ela não possui um domínio da linguagem capaz de transmitir as infinitas sutilezas que podem ser encontradas na brincadeira por aqueles que a procuram. Não se trata de uma crítica a Melanie Klein ou a outros que descreveram o uso da brincadeira por uma criança na psicanálise infantil. Fazemos um simples comentário sobre a possibilidade de que, na teoria total da personalidade, o psicanalista tenha estado mais ocupado com a utilização do conteúdo da brincadeira do que em olhar a criança que brinca e escrever sobre o brincar como uma coisa em si (Winnicott, 1968i, p. 61).

Longe de ser um simples comentário, ele coloca o brincar como um aspecto universal da natureza humana (Winnicott, 1968i, p. 63), ainda que nem todos estejam de posse dessa possibilidade. Para ele o brincar é, em si mesmo, psicoterápico (1968i, p. 74), não propriamente por causa dos elementos simbólicos que veicula ou expressa, mas pelo que realiza: “É no brincar, e talvez apenas no brincar, que a criança ou o adulto fruem da sua liberdade de criação” (1971r, p. 79).

Winnicott apresenta sua compreensão do brincar como um desenvolvimento do que ocorre nos fenômenos transicionais (Winnicott, 1971r, p. 79). Para ele, o período da transicionalidade pode ser considerado como o momento em que a criança começa a se separar da mãe– separação que já vem se fazendo com o processo do desmame–, a poder substituir a mãe por alguma outra coisa. No entanto, há condições para que isso ocorra: nas fases anteriores a esse momento, foi necessário que o ambiente tenha se adaptado às necessidades do bebê, de maneira tal que este tenha adquirido uma confiança em si mesmo e no mundo.5 Diz Winnicott sobre o que precede a transicionalidade e a sustenta:

A mãe adapta-se às necessidades de seu bebê e de seu filho, que gradativamente se desenvolve em personalidade e caráter, e essa adaptação concede-lhe certa medida de fidedignidade. A experiência que o bebê tem dessa fidedignidade, durante certo período de tempo, origina nele, e na criança que cresce, um sentimento de confiança. A confiança do bebê na fidedignidade da mãe e, portanto, na de outras pessoas e coisas, torna possível uma separação do não-eu a partir do eu. Ao mesmo tempo, contudo, pode-se dizer que a separação é evitada pelo preenchimento do espaço potencial com o brincar criativo, com o uso de símbolos e com tudo o que acaba por se somar a uma vida cultural (Winnicott, 1971q, p. 151)

O objeto transicional é usado tal como se fosse a mãe; ele guarda a relação de familiaridade que o bebê tem com a mãe, fazendo as vezes da mãe, desde que ela permaneça sendo, efetivamente, uma presença para a criança. Essa presença quer dizer tanto uma presença física quanto afetiva. Ou seja, a mãe pode estar ausente física ou afetivamente, mas por um período de tempo x, durante o qual a criança é capaz de manter a presença dela mesmo na ausência física; para além desse tempo, a mãe morreu. O objeto transicional é símbolo da mãe, substitui a mãe, mas no sentido específico de que o faz na presença da mãe (Winnicott, 1953c, p. 19-20). No entanto, se a mãe desaparece por um tempo maior do que o suportável, mais longo do que aquele em que o bebê consegue mantê-la viva ou presente, então a importância do objeto transicional é deflacionada, até que este deixa de ser a mãe criada/encontrada/materializada-num-objeto e passa a ser algo externo e sem valor para a criança. Ou então, em sentido oposto, mas patológico, numa tentativa de negar a morte da mãe, esse objeto é transformado num objeto fetiche,6 ou num objeto que visa substituir esta mãe que não está mais lá (do ponto de vista do bebê, a mãe morreu); o objeto é supervalorizado como sendo a mãe, na tentativa de reencontrar a mãe desaparecida.

Os objetos transicionais unem e separam– simultaneamente– aquilo que é subjetivo daquilo que é objetivamente percebido (Winnicott, 1953c, p. 15). Mas o fazem de que forma? Por um lado a criança criao objeto, ou seja, é sua ação espontânea que dá valor e vida ao objeto. Por outro, a criança encontrao objeto que já preexiste no mundo exterior. Isso configura a situação paradoxal como algo que deve ser aceitoe não resolvido(Winnicott, 1953c, p. 27-28).

O que importa não é tanto o objeto, mas a maneira como a criança se relaciona com o mundo, passando de um estado em que não há distinção entre ela e o mundo para um estado em que ela se relaciona com um mundo que já não é meramente uma projeção dela. Diz Winnicott:

Não é o objeto, naturalmente, que é transicional. Ele representa a transição do bebê de um estado em que este está fundido com a mãe para um estado em que está em relação com ela como algo externo e separado (Winnicott, 1953c, p. 30).

É nesse ponto que surge a capacidade do brincar, que é também, para Winnicott, uma maneira de o ser humano encontrar a si mesmo: “É no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral: e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu (self)” (Winnicott, 1971r, p. 80). No entanto, essa capacidade ou possibilidade não é uma conquista definitiva, mas sempre instável, sempre dependente das condições pessoais e ambientais:

A importância do brincar é sempre a precariedade do interjogo entre a realidade psíquica pessoal e a experiência de controle de objetos reais. É a precariedade da própria magia, magia que se origina na intimidade, num relacionamento que está sendo descoberto como digno de confiança. Para ser digno de confiança, o relacionamento é necessariamente motivado pelo amor da mãe, não por formações reativas (Winnicott, 1968i, p. 71).

Nos casos em que uma pessoa está doente e não conquistou ou perdeu essa capacidade, caberá ao analista ou terapeuta trabalhar no sentido de promover essa conquista, oferecendo as condições ambientais para que o paciente chegue a ela: “Quando um paciente não pode brincar, o psicoterapeuta tem de atender a esse sintoma principal” (Winnicott, 1968i, p. 71). Não se trata, no entanto, de instalar a brincadeira como algo advindo do analista, mas de criar as condições ambientais de adaptação e comunicação que levem o paciente a poder brincar.

São de vital importância as expressões ação espontâneae gesto criativopara caracterizar o tipo de relação que está em jogo, pois o objeto transicional jamais pode ser dado à criança: é ela quem o cria, ainda que o ambiente possa sustentar e dar as condições para que essa criação-encontro ocorra. No gesto criativo– antes, na e depois da fase da transicionalidade–, a criança encontra a si mesma, ou melhor, o gesto é ação deste si-mesmo. Trata-se de um gesto que gera o seu próprio autor e, ao mesmo tempo, o objeto com o qual este si-mesmo se relaciona. Tal como o geômetra que num único traço gera o côncavo e o convexo, esse gesto criativo gera o si-mesmo e o objeto com o qual se relaciona.7

O brincar a que Winnicott se refere não diz respeito apenas à criança. Está presente também na vida dos adultos, de outras maneiras não tão evidentes como as que encontramos nas crianças. Diz Winnicott:

Sugiro que devemos encontrar o brincar tão em evidência nas análises de adultos quanto o é no caso de nosso trabalho com crianças. Manifesta-se, por exemplo, na escolha das palavras, nas inflexões de voz e, na verdade, no senso de humor (Winnicott, 1968i, p. 61).

O brincar e a brincadeira do adulto dizem respeito a uma determinada relação com o mundo, com o trabalho, com as pessoas com quais convive, com suas atividades etc. Correspondem à possibilidade de habitar uma área intermediária na qual há uma união e separação do mundo subjetivo e do objetivamente dado, o que certamente não ocorre o tempo todo. É a esta área que Winnicott se refere como sendo “o lugar em que vivemos”; é a área da experiência em que o brincar se realiza e que mais tarde compreenderá o espaço da arte, da religião, do trabalho e da vida social em geral: “Para mim, o brincar conduz naturalmente à experiência cultural e, na verdade, constitui o seu fundamento” (Winnicott, 1971q, p. 147).

Certamente, o habitar ou ocupar esse “lugar” depende do quanto uma comunicação e um partilhar conjunto podem ser efetuados. É por isso que Winnicott diz, referindo-se às psicoterapias (no sentido amplo do termo, incluída aí a psicanálise), que o trabalho analítico se passa muito mais nessa área compartilhada do que numa atitude em que o terapeuta ou analista apenas espelharia o que estaria presente no mundo interno do paciente, mostrando, pela interpretação, quais os conteúdos e conflitos apresentados pela brincadeira, pelas associações livres e todos os outros tipos de expressão:

A psicoterapia se efetua na sobreposição de duas áreas do brincar, a do paciente e a do terapeuta. A psicoterapia trata de duas pessoas que brincam juntas. Em conseqüência, onde o brincar não é possível, o trabalho efetuado pelo terapeuta é dirigido então no sentido de trazer o paciente de um estado em que não é capaz de brincar para um estado em que o é (Winnicott, 1968i, p. 59).

O objetivo do brincar, em essência, não é o riso ou o prazer. Isso é secundário em relação à necessidade de ser e continuar sendo, que se realiza pelo gesto espontâneo próprio ao brincar: “A característica essencial do que desejo comunicar refere-se ao brincar como uma experiência, sempre uma experiência criativa, uma experiência na continuidade espaço-tempo, uma forma básica de viver” (Winnicott, 1968i, p. 75). Ao caracterizar, com uma analogia, o que significa essa forma básica de viver ou, noutros termos, o que significa sere continuidade de ser, Winnicott diz:

A continuidade do ser significa saúde. Se tomarmos como analogia uma bolha, podemos dizer que, quando a pressão externa está adaptada à pressão interna, a bolha pode seguir existindo. Se estivéssemos falando de um bebê humano, diríamos “sendo”. Se, por outro lado, a pressão no exterior da bolha for maior ou menor do que aquela em seu interior, a bolha passará a reagir à intrusão. Ela se modifica como reação a uma mudança no ambiente, e não a partir de um impulso próprio. Em termos do animal humano, isto significa uma interrupção no ser, e o lugar do ser é substituído pela reação à intrusão (Winnicott, 1988, p. 127).

A comunicação que se estabelece no cenário terapêutico diz respeito às condições ambientais para que o paciente possa fazer esse tipo de brincadeira ou de “comunicação a um nível profundo” (Winnicott, 1971b, p. 15) com o analista, comunicação que tem no modelo do “brincar juntos”, da confiabilidade e do compartilhar suas referências.

Um analista que faça da análise a mera aplicação de uma técnica simplesmente impossibilita o contato e a intimidade nessa área da experiência compartilhada. Winnicott, nesse sentido, chega mesmo a dirigir um apelo aos terapeutas, na sua apresentação do brincar como uma necessidade na psicoterapia:

Minha descrição equivale a um pedido a todo terapeuta [para] que permita a manifestação da capacidade que o paciente tem de brincar, isto é, de ser criativo no trabalho analítico. A criatividade do paciente pode ser facilmente frustrada por um terapeuta que saiba demais (Winnicott, 1971r, p. 83).

Até mesmo a questão da interpretação dos conteúdos inconscientes, parte fundamental do método psicanalítico, só poderá ter sentido se executada nessa área da comunicação e do brincar mútuos. Fora disso, ainda que possa ser correta no seu conteúdo, ela seria inútil e até mesmo nociva, porque invasiva. Diz Winnicott:

Interpretação fora do amadurecimento do material é doutrinação e produz submissão (Winnicott, 1965m). Em conseqüência, a resistência surge da interpretação dada fora da área da superposição do brincar comum de paciente e analista. Interpretar quando o paciente não tem capacidade para brincar, simplesmente não é útil, ou causa confusão. Quando existe um brincar mútuo, então a interpretação, segundo os princípios psicanalíticos aceitos, pode levar adiante o trabalho terapêutico. Esse brincar tem de ser espontâneo, e não submisso ou aquiescente, se é que se quer fazer psicoterapia (Winnitcott, 1968i, p. 75-76).

O modelo do tratamento psicanalítico, para Winnicott, só corresponde à revelação e à interpretação das fantasias inconscientes na transferência, quando a possibilidade da comunicação e do brincar foi estabelecida ou restabelecida.

Se, por um lado, se afirma que o brincar jamais pode ser uma atividade técnica, mecânica, por outro esse brincar está sendo concebido teoricamente no quadro da matriz paradigmática winnicottiana, o que implica dizer que esse sentido específico do verbo brincardeve ser entendido na sua relação e interdependência necessária com os outros aspectos já mencionados dessa matriz.

O brincar, como modelo para a prática analítica, é concebido em função do encontro com o si-mesmo, da comunicação e da interseção entre a realidade subjetiva e a objetivamente percebida, encontro que contribui para o amadurecimento, uma vez que corresponde a um tipo de integração da pessoa. Esse conjunto de acontecimentos vividos e repetidos na situação analítica permite que o paciente possa tomar a vida como algo que lhe diz respeito, já que esse encontro se dá na área em que ele cria o mundo em que vive, ao mesmo tempo em que se adapta ao mundo objetivamente dado, sem perda significativa da sua espontaneidade. Diz Winnicott:

É através da apercepção criativa, mais do que qualquer outra coisa, que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida. Em contraste, existe um relacionamento de submissão com a realidade externa, onde o mundo em todos seus pormenores é reconhecido apenas como algo a que ajustar-se ou a exigir adaptação. A submissão traz consigo um sentido de inutilidade e está associada à idéia de que nada importa e de que não vale a pena viver a vida. Muitos indivíduos experimentam suficientemente o viver criativo para reconhecer, de maneira tantalizante, a forma não criativa pela qual estão vivendo, como se estivessem presos à criatividade de outrem, ou de uma máquina (Winnicott, 1971g, p. 95).

O importante na caracterização da saúde, diz Winnicott, não é propriamente o fato de se sofrer mais ou menos, mas de ter uma vida e um mundo reconhecidos como próprios:

A vida de um indivíduo são se caracteriza mais por medos, sentimentos conflitantes, dúvidas, frustrações do que por seus aspectos positivos. O essencial é que o homem ou a mulher se sintam vivendo sua própria vida, responsabilizando-se por suas ações ou inações, sentindo-se capazes de atribuírem a si o mérito de um sucesso ou a responsabilidade de um fracasso. Pode-se dizer, em suma, que o indivíduo saiu da dependência para entrar na independência ou autonomia (Winnicott, 1971f, p. 30).

Winnicott tem em mente, como objetivo do tratamento, a possibilidade do amadurecimento em direção ao compartilhar da realidade objetiva com outras pessoas. Sobre o que significa maturidade ou saúde, ele escreve:

Digamos que na saúde, que é quase sinônimo de maturidade, o adulto é capaz de se identificar com a sociedade sem sacrifício demasiado da espontaneidade pessoal; ou, dito de outro modo, o adulto é capaz de satisfazer suas necessidades pessoais sem ser anti-social, e, na verdade, sem falhar em assumir alguma responsabilidade pela manutenção ou pela modificação da sociedade em que se encontra (Winnicott, 1965r, p. 80).

Para que isso ocorra no processo analítico, o analista precisará ter diversos tipos de presença e de comunicação com o paciente, mas sempre a partir de uma presença efetiva e não propriamente técnica, até que o espaço da brincadeira, neste sentido preciso que estamos analisando, possa ocorrer e proporcionar o amadurecimento em direção a outros relacionamentos interpessoais, em espaços sociais cada vez mais amplos.

Cabe enfatizar ainda, para finalizar, que esse critério e telosdo tratamento psicanalítico não torna a vida necessariamente menos difícil e talvez não diminua o sofrimento– não sendo, pois, este o objetivo do tratamento analítico para Winnicott–, mas pode fazer com que o paciente, ao ter a experiência de criar-encontrar um lugar para viver, de se comunicar em nível profundo com alguém que partilha dessa experiência, sinta que a vida que ele vive é real e própria. E, por isso mesmo, vale a pena de ser vivida.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Leopoldo Fulgencio
Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana
www.centrowinnicott.com.br
E-mail: leopoldo@centrowinnicott.com.br

Recebido em  20.2.2008
Aceito em 24.3.2008

 

 

1 Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUC Campinas; membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana.
2 A obra de Winnicott é citada aqui a partir da “Lista completa das publicações de D. W. Winnicott” estabelecida por Kund Hjulmand (1999). Nela consta o ano da primeira publicação de cada artigo ou livro, bem como uma letra que designa a ordem em que este foi publicado naquele ano. A lista está disponível online no site da revista de filosofia e psicanálise Natureza Humana (www.centrowinnicott.com.br/grupofpp/naturezahumana).
3 O termo tradicional para caracterizar a psicanálise de Freud e a de Klein foi utilizado em respeito à própria caracterização feita por Winnicott, que também se refere a essa psicanálise como clássica ou ortodoxa (Winnicott, 1969i, p. 176; 1970b, p. 196).
4 Sobre este ponto específi co, realizei uma análise mais detalhada sobre a natureza e a função de teorização metapsicológica em Freud e o seu abandono por Winnicott (Fulgencio, 2005, 2007a, 2008).
5 Deveríamos, neste ponto, fazer uma exposição mais longa do que ocorre desde o nascimento, explicitando a fase inicial do amadurecimento, denominada por Winnicott como a fase da “primeira mamada teórica”, na qual, do ponto de vista do bebê, o mundo que atende às suas necessidades surge como que derivado de suas próprias necessidades, dando a ele uma ilusão de onipotência e constituindo uma realidade denominável subjetiva, ainda que, do ponto de vista do observador, esse mundo seja dado ao bebê pelo ambiente, que o compreende dentro de limites adequados às suas tolerâncias. Em seguida a essa fase, começam a ocorrer desadaptações, iniciando homeopaticamente (na saúde) o que Winnicott denomina de desmame. A fase da transicionalidade vem logo em seguida, sustentada pelas conquistas então realizadas. Para um estudo mais detalhado dessas fases, ver Dias (2003, capítulos 3 e 4).
6 A diferença entre objeto fetiche e objeto transicional está analisada na primeira edição desse artigo de Winnicott (1951/1953c, p. 330-331).
7 Certamente isso ocorre já no início, quando o seio encontrado (oferecido pela mãe) constitui, do ponto de vista do bebê, uma criação sua, advindo magicamente de sua necessidade. Nesse momento, este objeto, assim concebido, corresponde ao que Winnicott caracterizará como objetos subjetivos, constituindo, pois, uma realidade subjetiva. Com o amadurecimento, a fase da transicionalidade acrescenta a esse fenômeno o fato de que esse objeto criado também é efetivamente encontrado pela criança, não sendo mais apenas um objeto subjetivo, mas correspondendo também a algo da realidade externa, sem ser, ainda, um objeto com as características dos objetos objetivamente percebidos.

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