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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.42 n.1 São Paulo mar. 2008

 

ARTIGOS

 

O paradigma winnicottiano e o futuro da psicanálise

 

O paradigma winnicottiano y el futuro del psicoanálisis

 

The Winnicottian paradigm and the future of psychoanalysis

 

 

Zeljko Loparic1

Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Depois de apresentar os desafios atuais com que se defronta a psicanálise, este trabalho analisa as respostas a esses desafios que foram ou poderiam ser utilizadas pelos psicanalistas. Tendo feito a exposição da resposta conservadora, que consiste em defender a metapsicologia de Freud, e da assimilativa, que inclui a psicanálise na federação das ciências cognitivas e na aceitação da metapsicologia cognitivista, o texto apresenta a resposta por mudança paradigmática, contida na obra de Winnicott.

Palavras-chave: Neurociências; Cognitivismo; Metapsicologia; Paradigma; Winnicott.


RESUMEN

Después de presentar los desafíos actuales con los cuales se depara el psicoanálisis, el presente trabajo analiza las respuestas a esos desafíos que fueron o podrían haber sido usados por psicoanalistas. Exponiendo la respuesta conservadora, que consiste en defender la metapsicología de Freud, y la asimilativa, que incluye el psicoanálisis en la federación de las ciencias cognitivas y en la aceptación de la metapsicología cognitivista, el texto presenta la respuesta por un cambio paradigmático, contenido en la obra de Winnicott.

Palabras clave: Neurociencias; Cognitivismo; Metapsicología; Paradigma; Winnicott.


ABSTRACT

After displaying the present challenges which psychoanalysis is faced with, this paper analyses the responses to such challenges that have or could have been utilized by psychoanalysts. Having made a conservative response exhibit which consists in defending Freud’s metapsychology and the assimilative one, which includes psychoanalysis in the cognitive sciences’ confederation and in the acceptance of cognitivist metapsychology, the text presents the response to the paradigmatic change contained in Winnicott’s work.

Keywords: Neurosciences; Cognitivism; Metapsychology; Paradigm; Winnicott.


 

 

1. Os desafios atuais da psicanálise

Assim como no passado, também nos dias de hoje a psicanálise freudiana se defronta com vários desafios. Os mais graves deles põem em questão a sua condição de disciplina teórica capaz de servir de base de uma prática clínica social e cientificamente defensável.

Os desafios vêm de várias fontes. Uma delas são as ciências positivas atualmente em plena ascensão– tais como as neurociências, que estudam o cérebro, e as ciências cognitivas, cujo objeto é a mente–, todas elas reunidas no que António Damásio chamou de “federação frouxa de abordagens científicas comumente conhecidas como neurociências cognitivas” (Damásio, 1999, p. 13). Tanto o cérebro como a mente são representados por modelos computacionais, isto é, pelos sistemas de operações de processamento (recepção, formatação, conexão etc.) de dados ou informações, incluindo entre estas tanto sentimentos como cognições. Supõe-se que as operações de processamento podem ser totalmente implementadas em meio físico– em particular, nos nossos neurônios– e os seus resultados, estocados igualmente de forma material. A parte herdada das estruturas cerebrais ou mentais é comparada ao hardwaree a parte aprendida pela experiência decorrente da interação dos seres humanos com o ambiente, aos softwares, programas funcionais adquiridos. Não se trata mais de maquinização do homem– isso virou coisa do passado–, mas da hominização ou humanização da máquina. Fala-se de sentimentos ou da coragem do cérebro.

É no contexto dessa metapsicologia neural que as neurociências cognitivas pretendem explicar tanto distúrbios cerebrais quanto distúrbios mentais, afetivos ou cognitivos, inclusive os que são objeto das explicações psicanalíticas. Dou um exemplo.

Freud apresentou uma explicação do esquecimento de intenções ou desejos conscientes ou inconscientes, pondo ênfase sobre fatores dinâmicos, isto é, sobre a repressãodo ato intencionado (realização do desejo). Uma repressão, em Freud, é efetuada por forças psíquicas que se opuseram, de alguma maneira, à realização de um ato e mudaram a imagem que o agente tinha de si mesmo e do mundo e que estava associada a esse ato. Tal explicação dinâmicapode ser traduzida na linguagem da psicologia cognitiva maneira que os planos de ação– isto é, os procedimentos de processamento de informação ou dos componentes da imagem– “são abandonados quando sua execução começa a produzir mudanças na imagem que não são tão valiosas quanto o esperado”, sendo entendido que o caráter valioso esperado de uma mudança na imagem também é objeto de processamento (Miller et al., 1960, p. 69). Nessa tradução– estou me valendo aqui de uma obra clássica da literatura cognitivista–, desaparece qualquer referência a forças psíquicas atuando sobre imagens: o que muda as imagens são os planos, e estes, por serem concebidos por analogia aos programas que guiam computadores eletrônicos, não têm propriedades dinâmicas (ibid., p. 64n). Num computador pode haver incompatibilidadeentre os programas, não conflitoentre eles. O vírus que “ataca” o softwarede um computador não é dotado de uma “força destrutiva” contrária à do software; ele apenas funciona de modo diferente ao do softwarepreferido, usando para tanto a mesma energia elétrica de baixa voltagem que o software.

Assim, o conflito sexual, tão enfatizado por Freud na sua teoria da etiologia das neuroses, deixa de ocupar o lugar central na psicologia cognitiva. Além disso, essa psicologia propõe procedimentos de tratamento alternativos à “cura verbal” da psicanálise tradicional, baseada na transferência, os quais incluem um grande espectro de práticas, desde o condicionamento de tipo behaviorista até a administração de remédios “inteligentes”. Dessa forma, a psicologia psicanalítica de Freud é abandonada em prol de uma reedição da psicofísica de Fechner, sendo a metapsicologiafreudiana– sua teoria dinâmica especulativa do cérebro e do aparelho psíquico– substituída pelas teorias experimentais, possibilitadas por diferentes técnicas de escaneamento de estados cerebrais, da relação entre representações neurais de estruturas psíquicas adquiridas pela educação ou socialização e as representações neurais de processos biológicos reguladores inatos. Isto é, a teoria tradicional filosófico-biológico-psicológica da mente-cérebro, altamente especulativa, cede lugar a uma teoria experimental da conexão entre a mente– nome para as operações de processamento na sua maioria adquiridos– e o cérebro, que representa o executor de operações biológicas constitutivas (Damásio, 2005/1994, p. 125).

Sendo assim, as neurociências cognitivas não precisam mais endossar os mecanismos metapsicológicos propostos por Freud (ou por Jung) para reconhecer, por exemplo, a existência de processos inconscientes e o seu poder de influenciar o comportamento e os estados conscientes de indivíduos humanos. Pesquisas nãorelacionadas com as teses de Freud (e Jung) trouxeram evidências suficientes para uma teoria não-psicanalítica de “processamento inconsciente” de informação, não apenas cognitivas, mas também emocionais (Damásio, 1999, p. 297).

As evidências factuais das neurociências, concernentes tanto às manifestações normais como às perturbações dos processos inconscientes, são enriquecidas pelos resultados de outras ciências positivas, relativos à influência de fatores inconscientes sobre a mente e as ações dos humanos. A psicologia social contribui com fatos relativos à aprendizagem inconsciente e ao saber tácito. A psicologia cognitiva estuda os comportamentos em termos de planos semelhantes aos programas que guiam computadores eletrônicos. A lingüística chomskiana constata a presença, no comportamento verbal, de conhecimento inconsciente da estrutura gramatical. A neuropsicologia detecta a existência de recursos não-conscientes de capacidades motoras. Enfim, os mais variados tipos de inconsciente tornaram-se objeto de investigação experimental e de laboratório, relegando-se a neurose de transferência, privilegiada por Freud, à mera condição de um procedimento experimental entre outros.

Há desafios à psicanálise que são de natureza ainda mais direta. Recentemente, houve uma avalanche de trabalhos barulhentos, publicados inicialmente nos Estados Unidos e em seguida na Europa, em que até mesmo a postura científica de Freud foi posta em dúvida, com efeitos devastadores na opinião pública.2 Outros, ainda, apontaram a miséria teórica de seus seguidores.3

Que respostas a esses desafios foram ou poderiam ter sido utilizadas pelos psicanalistas? Considerarei três: a conservadora, a assimilativa e a resposta por mudança paradigmática. A primeira consiste em defender a metapsicologia de Freud; a segunda, na inclusão da psicanálise na federação das ciências cognitivas e na aceitação da metapsicologia cognitivista; a terceira, na mudança radical da configuração da teoria e da clínica psicanalítica, que implica o abandono não apenas da metapsicologia freudiana, mas do modo de teorização metapsicológico como tal e o desenvolvimento revolucionário da “psicologia” freudiana.

 

2. As respostas conservadoras

Embora tenha produzido uma metapsicologia psicológica, Freud sempre admitiu que essa formulação da psicanálise pudesse um dia ser substituída pela versão física, deixando aberta a porta para uma metapsicologia meramente neurológica. Além disso, as dificuldades conceituais internas, assim como as decorrentes da aplicação da metapsicologia psicológica, levaram o próprio Freud a várias reformulações. Sua teoria hesita entre a biologia e a psicologia. Vários conceitos são mal definidos, entre eles os de pulsão de morte, de depressão, de relação objetal. O caráter central do Édipo, em sua formulação freudiana, nunca deixou de ser questionado etc.

Na história da psicanálise, esses e outros problemas foram objeto de várias rearticulações por parte de seus seguidores. Exemplos não faltam. Klein introduziu o Édipo precoce e a posição depressiva e estilizou o desenvolvimento humano como um jogo de forças de vida e morte. Bion, enquanto ainda era kleiniano, kantianizou Freud, produzindo uma metapsicologia do aparelho para pensar. Fairbairn começou por falar de uma libido que busca “objetos” e não prazer. Lacan, depois de hesitar no início, despachou a biologia da psicanálise e a encostou numa antropologia hegeliana misturada com empréstimos da lingüística e da antropologia do tipo estruturalista, valendo-se ainda, de modo muito próprio, de procedimentos de matematização mais ou menos fantasiosos.

O resultado final do conjunto dessas reformulações não foi o fortalecimento da metapsicologia freudiana, mas antes o seu desmanche. Quando aplicados na clínica, o Édipo precoce de Klein e o recurso a supostas devastações da pulsão de morte acabaram ferindo, se não a posição teórica, então o bom senso de muitos analistas e não-analistas. Depois de produzir uma teoria da mente do tipo cognitivista, Bion acabou aproximando a psicanálise da mística ocidental e oriental. Fairbairn envolveu-se em contradições que não escaparam a Winnicott.

Lacan talvez tenha trazido danos mais profundos ainda, e incuráveis, à teorização metapsicológica. Seus empréstimos às teorias antropológicas e lingüísticas da época ficaram rapidamente ultrapassados. A matematização do humano esgotou-se em metáforas arbitrárias ou mesmo sem sentido.4 A especulação, alimentada por empréstimos caprichosos à filosofia, conduziu ao abandono, cada vez mais explícito, da teorização do tipo científico e à metamorfose do discurso psicanalítico num retoricismoenfadonho. Como na matematização, permitiu-se fazer, em abundância, afirmações sem sentido, como se o sem-sentido da vida humana pudesse ser expresso na forma do nonsensede um discurso psicanalítico meramente retoricante. O lacanismo favoreceu ainda uma aproximação entre a psicanálise e a filosofia francesa também retoricante, acabando por ser assimilada ao discurso “delirante” (Deleuze) ou elevada acima da lógica (Derrida), de onde resultou o seu afastamento das intenções iniciais de Freud e a sua vulnerabilidade a objeções tanto científicas como filosóficas.

Mais recentemente, exibindo uma nonchalancede fim de festa, Adam Phillips declarou que a psicanálise se sustentará enquanto for “interessante”. Thomas H. Ogden, por seu lado, fez-se advogado de uma leitura da obra de Winnicott (e da psicanálise em geral) como ficção não-literária.

Resumindo, diante de ciências novas que pretendem fazer melhor o trabalho que, até agora, parecia pertencer ao campo exclusivo da psicanálise– a saber, entender e tratar os distúrbios “mentais”–, as posições conservadoras não conseguem preservar a identidade da psicanálise, não sabendo dizer se ela permanece ciência, se pertence à literatura ou se se contenta em ser, tão-somente, um jogo social envolvente, quando conseguem evitar que este se torne uma prática de manipulação da miséria humana. A multiplicação de sociedades de psicanálise, bem como a multiplicidade das linguagens usadas, reflete fielmente essa indefinição teórica e clínica. Dessa forma, não são infundados os temores de que o discurso psicanalítico e a clínica psicanalítica, embora ainda ocupem um lugar numa certa cultura popular e jornalística, passem a ser cada vez mais marginalizados e, se não desaparecerem, sobrevivam apenas como práticas subsidiárias de novos paradigmas teóricos e clínicos.

 

3. Uma resposta assimilativa

Antonio Imbasciati é um representante típico de uma estratégia oposta à conservadora. Esse professor, titular na Universidade de Brescia, didata da Sociedade Italiana de Psicanálise e da ipa, opõe-se abertamente tanto ao conservadorismo intelectual como às censuras políticas do establishmentpsicanalítico tradicional (Imbasciati, 2005a, p. 43), deplorando como altamente nocivo o isolamento da psicanálise do restante das ciências do homem dos nossos dias. Ignorando Lacan e classificando M. Klein no campo dos freudianos (por se enquadrar ainda na metapsicologia freudiana de pulsões), Imbasciati encontrou um único aliado entre os psicanalistas tradicionais: Bion, autor de uma teoria do aparelho para pensar sem o pensador (Bion, 1967, p. 167).

A teoria de Bion, sustenta Imbasciati, “não contém nenhuma referência aos princípios energéticos descritos (hoje diríamos introduzidos hipoteticamente) por Freud e oferece um quadro completo de formação de mente– na sua linguagem, da origem do pensamento– que prescinde completamente de influências energético-pulsionais” (Imbasciati, 2005b, p. 11). Conectando os conceitos bionianos de mente, de aparelho para pensar e de aprendizado com os resultados paralelos das neurociências, Imbasciati visa chegar a uma teoria geral da mente ainda psicanalítica, mas “diversa daquela de Freud” (ibid., p. 43). Por um lado, essa teoria aceita as críticas do cognitivismo à psicanálise freudiana; por outro, apresenta uma reformulação da psicanálise em termos condizentes com o cognitivismo. De fato, Imbasciati rejeita a metapsicologia freudiana no seu todo e, em particular, o conceito de pulsão e a teoria energético-pulsional do aparelho psíquico. Com isso, cai também o conceito de repressão, por ser de caráter dinâmico, sendo substituído pelo conceito de inconsistência ou de não-conectividade (Imbasciati, 2005a, p. 39). Ao mesmo tempo, Imbasciati se dispõe a cooperar com um viraggiona cultura psicanalítica, para tentar construir uma explicação dos processos mentais que seja ao mesmo tempo psicanalítica e unificada com todas as outras ciências da mente (ibid., p. 26). Dessa forma, o núcleo da psicanálise freudiana– a metapsicologia– fica fora do campo das ciências positivas atuais e ela é colocada na pré-história da teoria e do tratamento das doenças “mentais”.

O que resta de Freud? A clínica e o método de cura (Imbasciati, 2005a, p. 25). É muito significativo que os casos sobre os quais se assenta a psicanálise projetada por Imbasciati sejam aqueles em que “a sexualidade parece ser totalmente irrelevante” (Imbasciati, 2005b, p. 15). Tampouco surpreende ver Imbasciati discordar dos que sustentam serem as manifestações do inconsciente de que trata a psicanálise “incomensuráveis” com aquelas que são objeto de estudo das neurociências. Para ele, assim como para Damásio, os dois conjuntos de fenômenos são da mesma natureza, sendo, de direito, acessíveis tanto nas condições do settingda clínica psicanalítica como na pesquisa experimental.

 

4. Uma resposta por mudança paradigmática

As neurociências e o cognitivismo de caráter materialista vieram para ficar. A produção de robôs– seres inteligentes capazes inclusive de interação “afetiva” e, portanto, de “convivência” com os humanos, depois de os afetos terem sido reabilitados contra a desvalorização cartesiana e dotados de valor cognitivo– é um projeto que está para mudar os rumos da civilização mundial. A psicanálise não pode, portanto, esquivar-se a um diálogo com esse processo global de objetificação da natureza e do homem. Mas, para tanto, torna-se necessário, parece-me, fazer um movimento paradoxal: mudar a psicanálise a fim de recuperar a sua especificidade e garantir o seu futuro.

O exemplo da filosofia pode mostrar o caminho. A crítica do processo de objetificação do mundo levou Heidegger a redefinir a filosofia; melhor, a abandonar o modo tradicional de fazer a filosofia. Segundo Heidegger, isso implica refazer a história da filosofia, tarefa para a qual ele próprio produziu regras básicas (as da sua “história do ser”). Algo análogo poderia talvez ser operado na psicanálise. Creio que tal processo está em gestação há algum tempo, sem que entretanto já se tenha reconhecido sua importância e alcance. Falo da mudança do paradigma da psicanálise operada por D. W. Winnicott. O pediatra e psicanalista inglês não se limitou a reafirmar ou apenas a rearticular a psicanálise freudiana. Ele a ampliou e modificou. Contudo, à diferença de Imbasciati, não destruiu as pontes com a tradição. A posição de Winnicott sugere a tese de que é possível defender a psicanálise contra o desaparecimento sem transformá-la, por pura e simples assimilação, em uma disciplina do cognitivismo.

Para entender melhor a que me refiro, convém revisitar a história da psicanálise. De que maneira? Há algum tempo, venho propondo que isso seja feito de modo sistemático, mediante uma teoria da história postulada não para a psicanálise em particular, mas para as ciências factuais em geral. Uma teoria desse tipo é a teoria das revoluções científicas de Thomas S. Kuhn.

Comecei esse tipo de estudo por volta de 1980, quando ofereci uma interpretação kuhniana das estratégias intelectuais e institucionais de Freud.5 Depois de tomar conhecimento da obra de Winnicott, no início da década de 1990, convenci-me de que sua contribuição consistia na elaboração de uma psicanálise não-edipiana, baseada não na teoria da sexualidade, mas numa teoria inteiramente nova: a teoria do amadurecimento, a qual excluía o modo de teorização metapsicológico. Concluí que Winnicott, a fim de fazer progredira psicanálise, operara uma mudança paradigmáticadessa disciplina, no sentido de Kuhn. Nos anos que se seguiram, desenvolvi essa tese e suas conseqüências em uma série de artigos, e estes, por sua vez, inspiraram um grande número de trabalhos acadêmicos, realizados em diferentes universidades brasileiras onde se tematizou o Gestalt switchque separa Winnicott de Freud e que abre a psicanálise para o futuro. Recentemente, indiquei que o paradigma winnicottiano pode também salvar a psicanálise do mero “entreguismo” à “federação” das neurociências cognitivas (Fulgencio, 2008, p. 13-14).

Vejamos de que se trata.6 De acordo com Thomas S. Kuhn, uma ciência factual madura é o quadro no qual se desenvolve uma atividade de resolução de problemassemelhante a um quebra-cabeça. A estrutura interna desse quadro se caracteriza por uma maneira de ver o mundo e de falar sobre ele compartilhada por um grupo institucionalizado e estruturada como um paradigmaou uma matriz disciplinar. Um paradigma é composto de:

1) exemplares, isto é, problemas centrais que dizem respeito aos fatos acessíveis em alguma forma de experiência (observação, experimentação, clínica), acompanhados de suas soluções, e

2)  compromissos teóricos, dos quais constam:

a)  generalizações usadas como guias na pesquisa;

b)  modelo ontológico do domínio estudado (a parte propriamente “metafísica” dos      paradigmas);

c)  modelo metodológico (os métodos de pesquisa franqueados, analogias e metáforas permitidas);

d)valores, alguns deles epistemológicos– relativos ao modo como deve ser elaborada e          praticada a disciplina em questão (capacidade de formular problemas, tipo de soluções admitidas, simplicidade, consistência interna e externa, plausibilidade)– e outros práticos, relacionados à utilidade social do saber científico.

O desenvolvimento de uma disciplina desse tipo passa por períodos de pesquisa normal, cumulativa, realizada de acordo com o paradigma dominante, seguidos de períodos de crise, provocados pelo aumento de “anomalias”– problemas considerados relevantes, mas que permanecem não resolvidos. As crises levam uma parte do grupo a se dedicar à pesquisa revolucionária com vistas à constituição de um novo paradigma, obedecendo, contudo, à condição de preservar a capacidade solucionadora da disciplina. Quando bem-sucedida, essa pesquisa não-cumulativa termina em conversão da parte ou da totalidade do grupo a uma nova maneira de ver o mundo e de falar sobre ele, comparável a um Gestalt switchperceptivo ou a uma mudança revolucionária de um regime político, seguida de um novo período de pesquisa normal.

As mudanças nos paradigmas ocorrem, portanto, como revoluções científicas que substituem os paradigmas (figuras do mundo, “regimes” teóricos) velhos, em crise, pelos novos, considerados mais promissores por resolverem tanto os problemas principais já solucionados como as anomalias e por aumentarem, dessa forma, o poder de resolução de problemas da ciência em questão.

Mesmo que a psicanálise tradicional não possa ser considerada uma ciência factual madura, parece-me frutífero olhar para ela na perspectiva kuhniana, procurando por formas incipientes de um paradigma e por crises, seguidas de pesquisa revolucionária. Procedendo assim, é possível dizer que o exemplarprincipal da disciplina criada pela pesquisa revolucionária de Freud é o complexo de Édipo, a criança na cama da mãe às voltas com os conflitos, potenciais geradores de neuroses, as quais se relacionam à administração de pulsões sexuais em relações triangulares. A generalização-guiacentral é a teoria da sexualidade, centrada na idéia da ativação progressiva de zonas erógenas, pré-genitais e genitais, com o surgimento de pontos de fixação pré-genitais. O modelo ontológicodo ser humano, explicitado na parte metapsicológica da teoria, comporta um aparelho psíquico individual, movido por pulsões libidinais, e outras forças psíquicas determinadas por leis causais. A metodologia é centrada na interpretação do material transferencial, obtido em condições especiais do setting analítico, à luz do complexo de Édipo ou de regressões aos pontos de fixação. Os valores epistemológicos básicos são os das ciências naturais, incluindo explicações causais, e o valor prático principal é a eliminação do sofrimento decorrente dos conflitos internos pulsionais, do tipo libidinal.

Considerando a importância do exemplar do Édipo na psicanálise de Freud, convém chamar o seu paradigma de edípicoou triangular. Se levarmos em conta a natureza sexual da situação edípica, a matriz disciplinar de Freud pode ser designada de sexual.7

Como assinalei, a psicanálise passou por várias reformulações conservadoras propostas pelo próprio Freud e seus seguidores, efetuadas no mais das vezes sob pressão de fatos clínicos. Nas pesquisas de Winnicott, contudo, o paradigma freudiano como tal entra em crise, dando lugar à busca revolucionária por um novo paradigma. O motivo principal da crise foi o acúmulo de problemas clínicos– entre eles, as manifestações da tendência anti-sociale da psicoseinfantil– que não podiam ser compreendidos teoricamente nem tratados clinicamente no quadro do paradigma edípico de Freud, mas que, segundo Winnicott, não deviam ser eliminados do campo de aplicação da psicanálise.8

Desde 1923, Winnicott constatou a existência de várias manifestações do que ele posteriormente chamará de tendência anti-social: num extremo, a avidez (greediness) e a enurese; no outro, a delinqüência, os distúrbios de caráter e todos os tipos de psicopatia, incluindo ainda os casos de furto e as mentiras. Na percepção de Winnicott, a principal dificuldade da psicanálise tradicional em tratar dos casos de tendência anti-social e de psicose decorria do fato de ela pensar a etiologia dos distúrbios psíquicos em termos relacionados aos conflitos “pulsionais” intrapsíquicos, deixando de ver que, pelo menos nesses casos, a patologia ou a anormalidade estava primariamente no ambientee só secundariamente na criança.

Em outras palavras, Winnicott entendeu que era necessário mudar a etiologia dos distúrbios em questão. A partir do início dos anos 1940, ele sustentará que a tendência anti-social, os comportamentos delinqüentes e os distúrbios de caráter (psicopatias) decorrentes eram causados por falha ambiental ocorrida num estágio de dependência relativa, no qual o indivíduo já adquirira uma organização egóica suficiente para perceber o fato da deprivação (deprivation) efetiva (perda de um objeto ou de um quadro de referência já experienciado como bom e disponível) e para avaliar que a responsabilidade pela perda era do ambiente (que este ficou lhe devendo algo). Dessa forma, a etiologia tradicional, baseada nos conceitos de pulsão e de conflito interno, foi substituída pela compreensão em termos de necessidade pessoal de asseguramento e de perda de confiança no ambiente, com a conseqüente crise relativa ao autocontrole e à identidade pessoal.9

Quanto à psicose, aproximadamente na mesma época,10 Winnicott chegou à “inesperada conclusão de que a esquizofrenia era uma espécie de doença provocada por uma deficiência ambiental” (Winnicott, 2000, p. 239). A esquizofrenia se origina– esta é a tese que Winnicott começará a defender apoiado, de novo, em dados colhidos na sua intensa clínica pediátrica– no estágio de dupla dependência, ou seja, no período no qual o indivíduo em desenvolvimento ainda não adquiriu a capacidade de ter consciência de sua dependência do ambiente externo e de se dar conta das falhas desse ambiente (Winnicott, 1983, p. 123-124). Daí se segue– cito agora um texto tardio, de 1969– que “a teoria psicanalítica precisava ser desenvolvida ou modificada, se é que o analista quer ter esperanças de tornar-se capaz de lidar com fenômenos esquizóides no tratamento dos pacientes” (Winnicott, 1994, p. 198).

Em outro trabalho, escrito também em 1969, Winnicott enunciará a mesma tese, em termos que revelam claramente a sua preocupação com a inércia intelectual dos psicanalistas, devida à formação ortodoxa e aos hábitos de trabalho desses profissionais, que impedem o progresso da psicanálise:

Para fazer progresso no sentido de uma teoria operacional da psicose, os psicanalistas devem abandonar toda a idéia da esquizofrenia e da paranóia, tal como vistas em termos de regressão a partir do complexo de Édipo. A etiologia destes distúrbios leva-nos inevitavelmente a estágios que precedem o relacionamento de três corpos. O corolário estranho é que existe, na raiz da psicose, um fator externo. É difícil para os psicanalistas admitir isto, após todo o trabalho que tiveram chamando a atenção para os fatores internos, ao examinarem a etiologia da psiconeurose (Winnicott, 1994, p. 191).

Foi por considerações desse tipo, relacionadas essencialmente à capacidade de a psicanálise resolver problemas clínicos no seu quadro teórico– e não por análises abstratas, de cunho especulativo, exemplificadas pela obra de Lacan11 –, que surgiu a matriz disciplinar da psicanálise winnicottiana, substancialmente diferente da de Freud. Cabe destacar, contudo, que a mudança do paradigma freudiano foi elaborada por Winnicott de maneira a preservar “as pontes que levam da teoria mais antiga para a mais nova” (Winnicott, 1994, p. 198); tratava-se de “retornar ao meio ambiente sem perder tudo o que fora ganho pelo estudo dos fatores internos” (p. 439).

Que modificações seriam necessárias para assegurar o progresso da psicanálise nos campos assinalados? Em primeiro lugar, era preciso abandonar o paradigma edípico, baseado, conforme vimos, no papel estruturante do complexo de Édipo e na teoria da sexualidade concebida como a teoria-guia da psicanálise. O novo exemplarproposto por Winnicott é obebê no colo da mãe, que precisa crescer, isto é, constituir uma base para continuar existindo e integrar-se numa unidade. A novageneralização-guiamais importante é a teoria do amadurecimento pessoal, da qual a teoria da sexualidade é apenas uma parte.

Se supusermos que a mudança winnicottiana do paradigma freudiano aconteceu, como diria Kuhn, de forma análoga a um Gestalt switch, ela não podia se limitar a pontos isolados, devendo abranger todo o campoteórico da psicanálise. É fácil mostrar que, de fato, Winnicott também introduziu um novo modelo ontológicodo objeto de estudo da psicanálise, centrado no conceito de tendência para a integração, para o relacionamento com pessoas e coisas e para a parceria psicossomática. Sua metodologia preserva a tarefa de verbalização do material transferencial, mas traz inovações metodológicas: admite apenas interpretações baseadas na teoria do amadurecimento, sem recurso à metapsicologia freudiana, e incluindo também o manejo da regressão à dependência e do acting-outdos anti-sociais. Como em Freud, o material clínico precisa ser experienciado e permanece inacessível por meios que não sejam os do settingpsicanalítico, modificado da maneira indicada. O novo valorprincipal é a eliminação de defesas endurecidas, paralisadoras do amadurecimento, e a facilitação para que aconteça agora o que precisava ter acontecido e não aconteceu, assim como para que se junte o que permaneceu ou se tornou dissociado, ou mesmo cindido. O sofrimento decorrente de conflitos– internos ou externos– deixa de ser o fundamental, fica em segundo plano, sendo considerado parte da vida sadia.

Em virtude da importância da relação mãe-bebê na psicanálise de Winnicott, passei a chamar o seu paradigma de dual. Visto que a generalização-guia é a teoria do amadurecimento, sugeri ainda chamá-lo de maturacional.12 Esse termo não deve ser tomado no sentido exclusivamente biológico, pois, além do lado anatômico-fisiológico, o desenvolvimento humano tem, ainda, o lado pessoal. Winnicott é claro:

O que temos aí é uma braçada de anatomia e de fisiologia e, acrescentado a isto, um potencial para o desenvolvimento de uma personalidade humana. Existe uma tendência geral voltada para o crescimento físico, e uma tendência ao desenvolvimento na parte psíquica da parceria psicossomática; existem, tanto na área física quanto na psíquica, tendências hereditárias, e estas, do lado da psique, incluem as tendências que levam à integração ou à conquista da totalidade. A base de todas as teorias sobre o desenvolvimento da personalidade humana é a continuidade, a linha da vida, que provavelmente tem início antes do nascimento efetivo do bebê […] (Winnicott, 1988, p. 79; os itálicos são meus).

Ao longo de uma pesquisa conduzida no quadro desse novo paradigma (e que se estendeu por décadas), Winnicott ofereceu uma articulação detalhada de duas das suas teses teóricas mais importantes sobre a etiologia dos distúrbios psíquicos:

1) que o processo fundamental perturbado não é o desenvolvimento sexual, mas o amadurecimento emocional; e

2) que o fator externo, isto é, o ambiente facilitador, tem uma importância decisiva no surgimento dos distúrbios psíquicos.

Com base em seus estudos sobre a etiologia e a classificação dos distúrbios e a etiologia destes, Winnicott ampliou e modificou substancialmente o conceito de clínica psicanalítica, descrevendo três variedades básicas de “psicoterapia”: a das psicoses, a das depressões reativas e das neuroses e a da tendência anti-social (Winnicott, 1987, cap. 27).

A variedade da psicoterapia para as psicoses caracteriza-se, sobretudo, por uma organização complexa do holding, que permite a regressão à dependência, fenômeno essencialmente distinto da regressão aos pontos de fixação da libido. No caso das psicoses, a clínica tradicional revela-se inapropriada precisamente devido ao erro teórico que consiste em confundir esses dois tipos de regressão, ao considerar que a expressão “‘adaptação às necessidades’ no tratamento de pacientes esquizóides e no cuidado do lactente significa satisfazer os impulsos do id” (Winnicott, 1983, p. 217), o que, segundo ele, é inteiramente inadequado. A segunda variedade, a das depressões reativas e das neuroses, vale-se do settingclássico desenhado por Freud e trabalha com a interpretação. A terceira, a da tendência anti-social, quando compete à psicanálise propriamente dita e não ao manejo familiar ou social em geral, consiste em admitir a atuação do paciente como parte da transferência, entendendo que se trata de um sinal de esperança que precisa ser compreendido como tal e valorizado positivamente (ibid.).

 

4. Alguns comentários sobre a resposta por mudança paradigmática

Vários autores, antes de mim e de trabalhos da Escola Winnicottiana de Psicanálise de São Paulo, aplicaram Kuhn ao estudo da história do pensamento psicanalítico, entre eles Greenberg e Mitchell (1983), Phillips (1988/2006) e Bowlby (1989).13 O alcance dos resultados esses autores se mostrou, contudo, severamente limitado pelo fato de eles em geral considerarem apenas o componente metafísico da teorização psicanalítica, deixando de lado outros componentes, em particular os exemplares, o elemento central de uma matriz disciplinar de tipo kuhniano.

Tanto no exterior como no Brasil, o uso de Kuhn como guia para o estudo da estrutura e da história da psicanálise do progresso das ciências factuais ainda encontra resistências. Creio que elas se devem, em boa parte, à falta de familiaridade com a obra de Kuhn e, de modo geral, com os problemas da historiografia das ciências factuais. Há quem diga, por exemplo, que o conceito kuhniano de paradigma não se aplica às ciências humanas. Isso é um erro que o leitor poderá verificar ao examinar, com atenção, o Posfácio de Kuhn 1975 e Kuhn 2000, capítulo 10. Outros dizem que o conceito de paradigma, por implicar a incomensurabilidade das teorias, torna impossível o diálogo entre as diferentes escolas de psicanálise. Ora, a tese de incomensurabilidade não se aplica à metalinguagem. Nesta, os termos incomensuráveis podem ser nomeados e as diferenças entre seus significados podem ser esclarecidas.

É precisamente o que faz Winnicott, por exemplo, quando esclarece o que significam os termos “inconsciente” e “si-mesmo” em Freud e Jung, depois de afirmar que, tais como usados por eles, esses termos são não apenas diferentes, mas “irreconciliáveis” (Winnicott, 1994, p. 369). Não são raros os que resistem, em virtude de uma lealdade afetiva ou de uma postura ideológica, em aceitar que se possa dizer que a psicanálise de um seguidor de Freud– Winnicott, por exemplo– é melhor que a de Freud. Ora, se Freud criou uma doutrina que não pode progredir, isto é, tornar-se mais eficientena resolução de problemas clínicos do tipo psicanalítico, terá criado uma religião ou algo parecido, não uma disciplina científica.14

Paradigmas permitem institucionalização, diz-se ainda, e Winnicott nunca lançou mão desse recurso. De fato, ele nunca criou uma Escola Winnicottiana. Eu respondo: primeiro, o modelo de instituição psicanalítica de sua época, dominado por grupos de lealdade e não por discussão de idéias, não permitia pensar que valesse a pena. Segundo: ele deveria ter criado uma, pois assim teria evitado que seu pensamento permanecesse, como aconteceu até recentemente, relegado a segundo plano, para grande prejuízo da psicanálise em geral.

Os comentários mais importantes que gostaria ainda de fazer dizem respeito à estrutura dos paradigmas freudiano e winnicottiano. Ambos são centrados nos problemas clínicos (criança na cama da mãe versusbebê no colo da mãe), não nos teóricos. Freud diz, com todas as letras, que o reconhecimento do complexo de Édipo tornou-se o Schiboleth, o sinal distintivo dos seguidores da psicanálise, e Winnicott não deixa dúvidas de que, na sua concepção de clínica, a relação mãe-bebê é o modelo de relação básica de confiança entre o paciente e o analista.

Para os dois autores, os problemas teóricos não são relevantes em si mesmos em primeiro lugar, mas igualmente como guias da atividade de resolução de problemas psicanalíticos. Em ambos os paradigmas, a posição central de teoria-guia não é ocupada pela metapsicologia, mas por teorias “psicológicas”. No caso de Freud, esse é o papel da teoria da sexualidade; no caso de Winnicott, é a teoria do amadurecimento, que trata a sexualidade como um aspecto do processo total de amadurecimento. Nenhum dos dois paradigmas se resume, portanto, à metapsicologia. Freud a considera como supra-estrutura especulativa; Winnicott a rejeita como modo de teorização.

Logo, a substituição da metapsicologia freudiana (e da de M. Klein) por uma bioniana, cognitivista ou lacaniana está longe de ser o único caminho para o desenvolvimento futuro da psicanálise.

Em segundo lugar, a teoria winnicottiana do amadurecimento é radicalmente distinta não apenas da metapsicologia freudiana do dualismo pulsional,15 mas também das teorias da constituição e do funcionamento da mente. De acordo com essa teoria, o ente humano é a amostra temporal da natureza humana, no qual o ser emerge do não-ser, que se caracteriza pela solidão essencial e pela tendência à integração e que cuida, antes de mais nada, da continuidade do seu ser. Além disso, a existência humana é essencialmente psicossomáticae a mente é apenas uma parte especializada do componente psíquico da psique-soma. Cindida do indivíduo total, a operação da mente é sinal de distúrbio psíquico.

Em terceiro lugar, a teoria winnicottiana do amadurecimento tem uma dimensão filosófica em que é central a questão da experiênciada continuidade de ser e do sentido de ser. Segundo Winnicott, todos concordaríamos em dizer que, na vida, trata-se muito mais do ser do que do sexo (Winnicott, 1989, p. 27). Sendo assim, o horizonte apropriado para elucidar essa dimensão não é a metafísica especulativa naturalista, ainda abraçada por Freud e da qual sua metapsicologia é caudatária, mas– como mostrei em vários artigos– o pensamento do ser baseado na relaçãoexperienciadaao sertal como tematizada por Heidegger (Loparic, 1999, 2001). Um dos traços essenciais desse pensamento, que ainda domina boa parte da filosofia e que se quer pós-metafísico, é a crítica do processo de objetificação do homem, do qual participam, de forma ativa e mesmo icônica, as ciências cognitivas. No que diz respeito à psicanálise, um dos pontos centrais dessa crítica é precisamente a metapsicologia, fruto, sustenta Heidegger, do naturalismo científico objetificador e de um certo neokantismo.

 

5. O paradigma winnicottiano diante dos desafios atuais da psicanálise

À luz do exposto, não me parece que o futuro da psicanálise possa ser assegurado pela fidelidade à metapsicologia de Freud. Glosas ou a filologia de tipo talmúdico podem contribuir para a compreensão de textos religiosos, mas não se aplicam à avaliação de discursos científicos. O progresso da psicanálise passa pela desmitologização, isto é, pela crítica da mitologia metapsicológica de Freud, e pela desmistificação, isto é, a recusa à transposição da metapsicologia para o registro da retórica e da literatura em geral. Em outras palavras, a abertura do caminho de aproximação entre a psicanálise e as ciências positivas do homem parece uma necessidade de sobrevivência. Por outro lado, não estou certo de que as neurociências cognitivas, com o seu pronunciado viés materialista, tenham o formato adequado para dar conta de todasas dimensões do ser humano e de seus problemas, os relacionados com a constituição da saúde e outros. Essa tarefa exige ainda a desmentalizaçãoe, em suma instância, a ultrapassagem da metafísica como tal.

É no contexto dessas exigências que o paradigma winnicottiano se torna particularmente promissor. Por ser essencialmente experiencial e recusar a especulação metapsicológica do tipo freudiano, ele é mais resistente à marginalização a pretexto de mitologizante ou mistificador do que o paradigma freudiano. Por outro lado, por se ocupar do ente humano como amostra temporal da natureza humana, caracterizada, como vimos, pela emergência do ser a partir do não-ser, a tendência à integração, a solidão essencial, o cuidado com a continuidade do ser e a união psicossomática– traços acessíveis na experiência, não apenas na do setting, mas também na cotidiana–, a psicanálise winnicottiana abre as portas para o pensamento pós-metapsicológico sobre o humano, este deixa de ser suscetível à simples assimilação pelas ciências cognitivas. Entendo que nenhuma máquina pode realizar qualquer uma das características essenciais do indivíduo winnicottiano; por exemplo, que nenhuma máquina, natural (cérebro) ou artificial (computador), pode ter, como seu traço inerente e inalterável, a solidão, o não-contato com o mundo como tal.

Estudos recentes, como vimos, tentam substituir a metapsicologia especulativa de Freud– de tipo psicológico, kantiana, datada e em crise– por uma metapsicologia não-especulativa, baseada na neurociência positiva natural. A reconstrução da psicanálise winnicottiana pela Escola Winnicottiana de São Paulo– em curso desde 1995– como uma ciência da experiência do amadurecimento pessoal, livre de qualquer metapsicologia e baseada numa matriz disciplinar cujo componente filosófico e metodológico pode ser reconstruído a partir da analítica existencial de Heidegger, ajuda a manter aberta uma outra perspectiva para o futuro da disciplina fundada por Freud. Segundo essa visão, Winnicott produziu um saber que não é de produção e de controle– as interpretações psicanalíticas clássicas são feitas precisamente com a finalidade de produzir e manter sob controle modificações no analisando–, mas de compreensão e de participação, livre não somente de toda metapsicologia, mas também de todo naturalismo psicológico ou metafísico, bem como dos imperativos objetificantes do método psicanalítico tradicional.

Esse é um resultado decisivo, visto que desloca a psicanálise do campo das ciências naturais– posição de Freud– para o das ciências do homem– posição de Winnicott: a psicanálise é um estudo não da natureza (máquina) no homem, mas da natureza humana, concebendo-se e articulando-se essas ciências não mais com a ajuda de paradigmas filosóficos objetificantes, como os de Descartes e Kant, inicialmente considerados por Kuhn, mas mediante o recurso ao paradigma filosófico não-naturalista, interpretativo e não-objetificante, no qual Heidegger desenvolveu sua hermenêutica filosófica do existir e do acontecer humanos.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Zeljko Loparic
Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana
www.centrowinnicott.com.br
E-mail: loparicz@uol.com.br

Recebido em 24.3.2008
Aceito em 8.4.2008

 

 

1 Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana.
2 Cf., por exemplo, Meyer et al., 2005.
3 Sokal & Bricmont, 1999. Para um comentário dessa obra, cf. Da Silva, 2004.
4 Dou um exemplo: segundo Lacan, o órgão erétil que passa simbolizar o lugar do gozo é igualável à raiz quadrada de menos 1 (1966, p. 822). Para outros exemplos, cf. Sokal & Bricmont, 1999.
5 Loparic, 1987.
6 No que segue, estou reapresentando as principais teses explicitadas em Loparic, 2006.
7 Uma descrição mais detalhada do paradigma edípico encontra-se em Loparic, 2001a e Fulgencio, 2003.
8 O presente parágrafo é uma continuação da análise da crise winnicottiana apresentada nas seções 3 e seguintes de Loparic, 2001a.
9 Sobre esse ponto, por exemplo, Winnicott 1994, p. 578; tr. p. 439-40.
10 Uma indicação sobre essa tomada de posição encontra-se em Winnicott, 1988, p. 2.
11 Ver, por exemplo, a desenvoltura de Lacan no uso de construções auxiliares e de metáforas óticas, tidas como autorizadas por Freud (Lacan, 1975, p. 90).
12 Visto que o conceito winnicottiano de amadurecimento pode ser interpretado nos termos da fenomenologia heideggeriana da acontecência do ser-no-mundo do ser humano, o paradigma proposto pelo psicanalista inglês pode ainda ser chamado de acontecencial.
13 Referências mais completas encontram-se em Loparic, 2001, 2006. Uma resenha crítica de vários desses trabalhos encontra-se em Fulgencio, 2007.
14 Winnicott afi rmou repetidas vezes que a teoria e a clínica freudianas tinham limitações importantes e que essas limitações foram superadas pelo progresso da psicanálise, inclusive graças à sua própria teoria do amadurecimento humano (por exemplo, Winnicott, 1994, p. 366).
15 Creio que a crise do dualismo pulsional freudiano, evidenciada na obra de Winnicott, é paralela ao abandono, na sociologia moderna, do dualismo marxiano que gera a luta de classes.

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