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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.42 n.1 São Paulo mar. 2008

 

INTERCÂMBIO

 

O não-interpretar: algumas considerações sobre a contribuição de M. Balint e dois fragmentos clínicos1

 

No interpretar: algunas consideraciones sobre M. Balint y dos fragmentos clínicos

 

Not to interpret: some considerations on M. Balint and two clinical fragments

 

 

Vincenzo Bonaminio2

Società Psicoanalitica Italiana

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste ensaio são apresentados dois sonhos extraídos de duas distintas situações clínicas. De acordo com o autor, esses sonhos exemplificam a interferência potencial que, em certas condições e em certos momentos da análise, a atividade interpretativa do analista pode representar em relação ao processo íntimo e criativo do analisando. Em seguida o autor propõe uma rota de discussão através de tópicos muito particulares, embora negligenciados, do trabalho de Balint. Isso é feito para evidenciar uma tradição técnica e clínica que toma como agentes de mudança psíquica a tolerância do paciente à regressão e o não-interpretar do analista, a par da interpretação.

Palavras-chave: Interpretação; Não-interpretação; Fatores curativos; Regressão; Mudança psíquica; Winnicott; Balint.


RESUMEN

En este ensayo se presentan dos sueños extraídos de dos distintas situaciones clínicas. De acuerdo con el autor estos sueños ejemplifican la potencial interferencia que, en ciertas condiciones y en ciertos momentos del análisis, la actividad interpretativa del analista puede representar en relación al proceso íntimo y creativo del analizando. En seguida, el autor propone un trayecto de discusión a través de tópicos particulares, a pesar de negligenciados, del trabajo de Balint. Esto lo hace para destacar una tradición técnica y clínica que toma como agentes mutativos del cambio psíquico la tolerancia del paciente a la regresión y el non interpretar del analista, a la par del interpretar.

Palavras clave: Interpretación; No interpretación; Preparaciones de los factores; Regresión; Cambio psíquico; Winnicott; Balint.


ABSTRACT

In this paper two dreams from two diff erent clinical instances are presented. According to the author, these exemplify the potential interference that, in certain conditions and in certain moments of the analysis, the analyst’s interpretive activity may represent with regard to the analysand’s creative and intimate processes. Subsequently, a route through some particular topical, though neglected, aspects of Balint’s work is propounded. So the author highlights a technical and clinical tradition which attributes the dignity of mutative agents of psychic change to the patient’s tolerance of regression and the analyst’s not interpreting, on a par with interpretation.

Keywords: Interpretation; Not-interpretation; Factors dressings; Regression; Psychic change; Winnicott; Balint.


 

 

O campo de maior interesse para a pesquisa de “[uma] nova teoria é o do comportamento do analista na situação analítica, ou, para nos expressarmos de forma mais adequada, na contribuição do analista à criação e sustentação da situação psicanalítica”. Extraída de um trabalho de Michael Balint de 1949, essa frase resume de maneira muito efi caz uma das principais direções da pesquisa – se não a principal – da psicanálise contemporânea e, naquilo que nos concerne especifi camente, da psicanálise italiana. Para esclarecer, poucos anos depois da publicação de Notas sobre alguns mecanismos esquizóides (1978/1946), de Melanie Klein, de O desenvolvimento emocional primário (1945/1975) e de O ódio na contratransferência (1947/1975), de D. W. Winnicott, e alguns anos antes do ensaio “Sobre a contratransferência” de Paula Heimann e de sobre A contratransferência e a resposta do paciente (1951/1986) de M. Little.

Todas essas citações para relembrar só algumas das pilastras principais – mas decerto não as únicas – de uma linha de desenvolvimento da psicanálise depois de Freud (de derivação sobretudo inglesa), que veio progressivamente enfatizando a importância de reconhecer e defi nir o estatuto de uma dimensão existente desde o nascimento da própria psicanálise – a relação de transferência –, sempre à beira de ser removida no plano teórico, quando não excluída de forma drástica, isto é: a psicanálise é, fundamentalmente, uma relação entre duas pessoas, a two-person affair.

A irrupção da dimensão da contratransferência, ou seja, da qualidade da participação do analista – irrupção mobilizada, talvez nem seja o caso de repeti-lo, do acolhimento em análise de um tipo de interlocutores diferentes dos originários freudianos, vale dizer os pacientes assim chamados de borderline, narcisistas, esquizóides, psicóticos e das crianças – na medida em que começaram a mostrar a outra metade do céu do cenário psicanalítico, forçounos a repensar e a redefi nir profundamente a situação analítica por inteiro e – de forma menos radical e mais variado - das concepções sobre o funcionamento mental que destas derivam.

Aquelas contribuições que de forma mais decidida encaminham-se, seguindo os artigos pioneiros já citados acima, para definir e formalizar a psicanálise como relação entre duas pessoas, ou seja, o trabalho de H. Racker (1970/1956 [1968]) e dos Baranger (1990/1961-62) e de forma mais extensa de W. Bion (1973/1970) são pelo menos uma década posteriores ao texto de Balint que relembrei. O fato é que não se trata de um ensaio isolado e episódico, mas de um aspecto consistente, se não até predominante da sua contribuição à psicanálise.

É possível perguntar-se (Bonaminio 1980) por que a extensa e detalhada proposta metodológica de Balint do processo psicanalítico como campo privilegiado e específi co de qualquer possível teoria da psicanálise, fosse considerado relativamente escasso, mesmo no plano crítico, justamente por aqueles autores que desenvolveram suas reflexões na mesma direção. Refiro-me à linha de pesquisa da psicanálise italiana que – apesar de se diferenciar internamente pela originalidade de cada autor ou cada grupo de trabalho e pela prevalência do interesse por vez clínico ou teórico – pode, talvez, ser resumido na expressão “duas pessoas que falam em uma sala”, expressão originária do bem sucedido título – manifesto de uma das contribuições referentes desta linha de pesquisa.

Parece-me que além de uma preferência subjetiva, os trabalhos de Balint, considerados em seu conjunto, ofereçam uma fértil conjunção entre o modelo teórico conceitual bastante sofisticado e o modelo clínico bem coerente com aquele teórico, mas também capaz de aproximar- se com muitos detalhes aos movimentos recíprocos do analisando e do analista dentro da situação analítica. Não subestimarei este aspecto da apurada descrição do relacionamento concreto analista-analisando. O interesse pelo paciente e pelo seu sofrimento, pelas necessidades aparece sempre nas suas conceitualizações até aquelas mais sofisticadas e mais distantes do nível de descrição empírica. Nisso Balint é comparável a Winnicott embora os dois autores sejam diferentes pelo estilo pessoal em descrever os fatos clínicos e conceituá-los.

Masud Khan (1969) descreve as suas qualidades de psicanalista em termos de uma visão clínica essencialmente humana e otimista que se cristalizou respectivamente nos conceitos de basic fault (falha básica “defeito natural estrutural da alma”) e de new beginning (novo ciclo, novo começo). O conceito de basic fault, ou seja, “a enfermidade do seu paciente – denota Masud Khan (1969, p 238) – é para Balint amplamente o resultado de fatores ambientais precoces na vida do paciente”. O conceito clínico de novo ciclo – “que constitui um mecanismo essencial no processo de cura” (Balint, 1991/1935 [1952], p 178) – contrapõem a sua orientação clínica à posição pessimista, ou pelo menos cautelosa, de Freud (1937) sobre a questão e disto emerge claramente, como nos faz notar M. Khan (1969) a sua descendência analítica de S. Ferenczi.

É provável que um dos motivos relativos a pouca importância da contribuição de Balint seja encontrado na ampla difusão que recebeu extra moenia3 a sua obra mais famosa Médico, paciente e doença (Balint, 1961/1957), por ele próprio definida “uma aplicação da psicanálise”, assim como o trabalho sobre a Psicoterapia focal (Balint, 1994/1957 [1972]), mas injustamente consideradas, um nível de intervenção em que “o puro ouro da análise” é unido ao “bronze da psicoterapia”. Parece-me que não seja ousado afi rmar o que houve com o trabalho de Winnicott, e também com aquele de Balint: como Winnicott foi considerado no passado, sobretudo em certos ambientes psicanalíticos, um pediatra que se interessou também pela psicanálise, que ofereceu alguma contribuição à compreensão do desenvolvimento emocional das crianças, assim o impacto do trabalho pioneiro de Balint com os clínicos gerais, o correlacionado aprofundar-se da clínica psicossomática, a metodologia das terapias breves e focadas, e, portanto, o tema das aplicações da psicanálise à psicoterapia e ao campo mais amplo da higiene mental, talvez deixassem em segundo plano a sua específica contribuição psicanalítica, clínica e teórica.

Na verdade, assim como para Winnicott, a atenção à “situação psicanalítica como efetivo campo de pesquisa” (M. Balink, 1949 p. 193). constitui aquele núcleo de elaboração clínica e teórica que permitiu a estes autores, talvez distintamente de outros, que se aventurassem, sem medo de perder a própria identidade, em campos limítrofes e de, portanto, colher abundantes frutos ali onde era mais útil e mais apropriado fazê-lo.

 

2.

É exatamente através de Médico, paciente e doença que iniciarei a discussão – através de dois fragmentos clínicos – uma dimensão da contribuição do analista à criação, à manutenção e ao desenvolvimento da relação analítica, dimensão que me parece conectada ao tema do não interpretar.

É nesta obra que Balint como se sabe, desenvolve de forma extensa e articulada o conceito clínico de “doença não organizada” e de “oferta de sintomas” dentro da relação médico-paciente. Descreveria assim uma articulação desta confi guração emocional: o paciente dirige-se ao médico por culpa de um mal estar e de um sofrimento indefi nidos: imaginamos, muito concretamente, que este lhe fale de problemas intestinais intermitentes, dor de cabeça, secura da cavidade oral com um estranho sabor na boca ao acordar, cansaço durante o dia inteiro, uma leve, mas persistente insônia.

Poderíamos parar por aqui na descrição deste “quadro” clínico simplifi cado, mas ao mesmo tempo exemplificativo de um estado ou de uma determinada representação de si. O paciente ainda não leva ao médico sintomas precisos, ou um conjunto bem defi nido destes, mas “oferece-lhe” a sua “doença não organizada”. Se o médico por sua vez não é capaz de acolher esta comunicação do paciente, ou seja, se não é capaz de deixar, por um tempo sufi ciente, ainda a doença “não organizada” e interpõe uma declaração verbal que, por exemplo, refere-se somente a uma perturbação de caráter neurovegetativo, o paciente organizará precocemente a sua doença e poderíamos, portanto, dizer que “adoecerá” dela própria. Uma dissociação, mesmo temporária, é criada dentro da pessoa: de um lado o paciente, do outro a sua doença. Um processo foi bloqueado, algo que se refere ao paciente, e somente a ele, não foi criado. No seu lugar instalou-se alguma outra coisa que agora se tornará o objeto da negociação entre médico e paciente, pois se refere como produto comum a ambos.4

Naturalmente Balint articula a sua descrição clínica da relação médico-paciente de forma bem mais complexa do que esta exemplifi cação que propus derivando-a de sua concepção. Sabemos, de fato, que muitos são os atributos do que ele defi ne como “a função apostólica do médico” e que, por outro lado, na concreta relação do médico com seu paciente “conselhos e reasseguramentos não são necessariamente errados em si, mas podem, pelo contrário, ser instrumentos terapêuticos potentíssimos” (M. Balint, 1957, p. 140). assim como os aprofundamentos clínicos através de exames instrumentais e de laboratório e, sobretudo, o uso de medicamentos podem ser considerados mediadores simbólicos e/ou relacionais indispensáveis, verdadeiros ordenadores do estado interno do paciente naquele determinado momento.

Parece-me, porém, que – além do campo de aplicação na medicina – as configurações típicas delineadas acima se prestam de forma efi caz para o entendimento e a descrição de certos momentos específi cos que podem apresentar-se durante a análise e que colocam o paciente e o analista numa posição recíproca que não me parece descrita com o mesmo cuidado e completude em outros modelos clínicos conceituais, muitas vezes utilizados com demasiado entusiasmo como se fossem oni-compreensivos seja no sentido horizontal (clínico) que vertical (teórico), numa grelha capaz de cozinhar qualquer coisa que aconteça entre as duas pessoas presentes na sala de análise.

O próprio Balint (1968) relega os conceitos clínicos de “doença não organizada” e “oferta ao médico” (desenvolvidos no volume Médico, paciente e doença). àquela “terceira área da mente” que pode florescer na situação analítica se o analista é capaz de contribuir à criação de condições potenciais para que emerja – uma área por ele defi nida, com a sua linguagem idiossincrática, como a da criatividade, da one-body relationship, a área do ser um.

Permanecendo no âmbito desta dimensão da experiência analítica, fornecerei dois breves fragmentos clínicos extraídos do meu trabalho. É importante precisar, porém, que os coloco como dois acontecimentos que se apresentam em forma de dois sonhos feitos por dois pacientes diferentes, quase contemporâneos, descritos com particular atenção à posição entre analista e analisando naquele momento: estes dois acontecimentos levaram-me a refl etir sobre algo que não havia visto antes e o recorrer posteriormente a teoria clínica de Balint, parece-me ter permitido uma melhor compreensão.

O que quero dizer está relacionado a uma dimensão da interpretação (ainda que só interna e não necessariamente verbal) como interferência mental do analista na criação de algo absolutamente pessoal e único por parte do paciente e de outro vértice à necessidade (virtual) do não-interpretar (nem mentalmente) como forma específica de contribuir por parte do analista-na-situação-analítica a este processo de criação de algo único que se possa potencialmente ativar.

 

3.

As primeiras fases da análise de Viviana, uma profissional de quase quarenta anos de aspecto miúdo, descuidado e pouco atraente, mas com uma inteligência e sensibilidade precisas embora cuidadosamente dissimuladas, foram caracterizadas por uma contínua declaração de uma enorme difi culdade em falar, em envolver-se com a análise, em entrar em uma comunicação mais íntima pela qual “dever-se-ia já estar daqui a dois anos”. Tais reclamações sobre si mesma fazem irromper desde o princípio dentro do cenário analítico o tema da autodesvalorização e de uma representação de si inadequada, incapaz, enquanto em outro lugar inacessível a esta análise estava guardada uma imagem idealizada de si feita de grande riqueza e sensibilidade emocional capaz de envolver-se com o objeto permeando-o.

Tais reclamações são, porém, também a amplifi cação da análise – um tipo de transferência dentro da relação com o analista – de uma desilusão comigo que nasce junto, por assim dizer, com o ato de ter-me escolhido como analista. A paciente tinha chegado a mim por orientação de um colega mais velho, mais experiente, porém, também mais famoso, a paciente tinha tido a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente durante uma conferência pública, e tinha-se dirigido a ele, por telefone, após um longo período em que havia fantasiado sobre uma intensa análise com ele, feita de compreensão total e de troca enriquecedora.

Durante o nosso primeiro telefonema a paciente havia captado com grande sensibilidade uma minha incerteza em marcar-lhe um horário para a primeira entrevista já que naquele momento eu não tinha claro dentro de mim nem o tempo nem a disponibilidade de horas para o começo de uma eventual análise. Para dizer a verdade eu também devo ter tido a mesma sensibilidade em relação a ela, porque já do primeiro telefonema – que eu havia considerado como uma primeira vaga aproximação e reconhecimento por parte da paciente – não me havia escapado uma percepção de mal estar explicitamente relacionada ao fato que havia sido procurado por indicação de um colega “importante”, e por mim muito admirado.

Devo também dizer que durante o primeiro encontro, requisitado após dois telefonemas, deveria ter elaborado o impacto bastante angustiante de uma história pessoal da paciente marcada pela seqüência impressionante de lutos de pessoas signifi cativas, culminando dentro de mim com a fantasia que se eu houvesse me tornado signifi cativo para ela não teria sobrevivido. Mas logo com o aquietar-se desta fantasia, resolvi dentro de mim, progressivamente, embasando-me nas sensações e considerações, de dar via livre dentro de mim à analise que de qualquer forma não começaria antes de setembro, já que estávamos próximos às férias de verão.

Só com o tratamento iniciado há alguns meses, analisando as reclamações e os temas ligados a essas já mencionadas, dei-me conta de que havia deixado a paciente em uma situação de espera por muito tempo em relação às suas necessidades, havia deixado-a estacionada (sem que houvesse intencionalidade, nem sequer consciência por minha parte). Dei-me conta que esta disposição para com ela, certo investimento emocional impreciso, vago, incerto, havia contribuído para que ela se sentisse inadequada, impedida, incapaz de envolver-se comigo, ampliando assim o hiato que a paciente sentia para com a análise ideal conduzida pelo analista maravilhoso com uma ela excepcional. Ao analista “importante” também não podia ser atribuída nenhuma intenção de recusa, porque a sua indisponibilidade para a análise com a paciente testemunhava, de fato, o quanto ele era ocupado e requisitado. Por isso disse acima que as reclamações e autodesvalorização tinham irrompido imediatamente na análise, já que não havia nenhuma possibilidade para mim, que no fundo havia acolhido a paciente, de dividir o papel daquele que rejeitou com o analista “importante” que de fato não a havia acolhido em análise.

Mais do que discutir este aspecto da sua necessidade de guardar com zelo dentro de si uma relação de cuidado ideal capaz de nutrir o seu lado excepcional, ou seja, o seu verdadeiro self potencial, gostaria de levar a atenção para o aspecto que desejava ilustrar: o que a paciente teve que fazer dentro dela (ou talvez tenha por ora que continuar a fazêlo) para aceitar-me como par analítico e qual deveria ser, segundo ela, a minha específi ca contribuição.

Estamos na metade da semana após duas sessões de quase total silêncio durante as quais eu, com a sensação desagradável de encontrar-me numa estrutura relacional árida que suscitava poucas emoções, por muito tempo senti-me tomado pelo esforço de orientarme internamente tentando dar um signifi cado mais específi co ao silêncio da paciente para comigo; havia manifestado somente alguns comentários sobre a situação atual conciliandonos aos temas já citados que haviam sido abertamente explicitados pela paciente durante a semana anterior, com a intenção por minha parte de facilitar a comunicação mostrando à paciente onde eu estava e que talvez pudesse compreender onde ela estivesse.

Na quarta-feira Viviana, após um longo silêncio, diz quase murmurando que há algum tempo sonhou algo, mesmo assim não me havia contado (para a paciente os sonhos constituem um bom produto analítico que quando existem reduzem o mal-estar de dever falar e contar sobre si durante a sessão). Segue um longo ulterior silêncio durante o qual começo a temer que talvez daí em diante me seja subtraído também este recurso de comunicação que durante os meses anteriores servira como indicação de rodovia, delimitando um percurso num território onde a orientação era algo bem difícil. Por outro lado tinha consciência de que um delicado requerimento para que contasse o sonho teria tido o efeito de fechar ainda mais a paciente, a qual poderia sentir-se invadida. Depois, quase como uma continuação de um fi o de pensamentos internos que acabam sendo ditos em voz alta, escuto a narração:

Tinha que ir do trabalho para outro lugar, mas não sabia bem como: permanecia esperando para ver o que podia fazer. Um colega ia à mesma direção, mas eu sentia-me incerta se perguntar-lhe ou não […] depois conseguia perguntar-lhe timidamente… ele dirigia-se de bicicleta e diziame para que usasse uma mountain bike. A cena mudava e encontrávamos numa estrada muito trafegada cheia de caminhões, parecia uma rodovia, mas estávamos dentro de Roma, próximos a S. Giovanni. Eu o seguia, mas tínhamos que nos comunicarmos falando em voz alta, pois havia um grande barulho causado pelo tráfego. Ele era gentil e de vez em quando girava-se para trás para ver se eu estava lá . Em certo momento ele encontrava-se do outro lado da rua na minha frente, fazia-me gestos de vez em quando sem irritar-se, dizia-me para tomar cuidado com o fluxo do trânsito e indicava-me quando passava um caminhãozinho ou um carro. Mas eu sabia o que desejava fazer […] uma inversão em u, mas sentia-me bloqueada, não conseguia avançar, sentia-me incapacitada.

A paciente abre as cortinas com uma cena que faz parte de um desenvolvimento mais amplo, e que descreve com evidência e densidade os movimentos da relação analítica como os que apresentei acima. Mas é esta cena que ela, agora, convida o analista para olhar, para que não lhe escape o aquilo que, com a sua estrutura mental toda orientada sobre a dimensão do par analítico, não consegui observar.

Isso que me foi descrito é antes de qualquer coisa a passagem de uma condição individual (“tenho que mudar de lugar… permanecia esperando… sentia-me incerta… perguntava timidamente…”) a uma interação do par em trabalho na qual o analista-colega, respondendo à paciente, propõe-lhe um percurso comum por um meio de duas rodas, cujo uso requer por parte do analista um esforço físico que talvez frustre as necessidades primárias do ser – permanecendo na metáfora – “transportada de carro”.

Por outro lado a única associação do sonho, aquela relativa à mountain bike e à sua função heavy duty, parece ir na mesma direção. Portanto, este impingement ao funcionamento” (Winnicott, 1960), que a paciente parece perceber como condição imposta-lhe pelo analista e que é por ela indicada através do sonho, assume um signifi cado mais específico com o desenvolver-se da cena do sonho (e, poderíamos dizer, com o proceder da analise). O analista, sentido como um colaborador sufi cientemente adequado e sensível, e capaz de mostrar à paciente a sua presença, guiando-a pelos meandros do trânsito (interno) cujo barulho de fundo pode ser superado através do processo de signifi cação da comunicação verbal (a interpretação), parece existir, porém, um mapa mental do percurso (Tagliacozzo, 1992). totalmente orientado em termos de relação de par ou de campo bipessoal, que não consegue levar em conta um ato individual que é relacionado à paciente e somente a ela, de um risco que só ela deve correr a seu modo, absolutamente pessoal.

O analista não conseguiu suspender a sua presença, ou seja, criar aquele vazio, ou se quisermos aquela capacidade negativa (Giannakoulas, 1992). que teria permitido que a paciente se encontrasse sozinha na presença de um outro (Winnicott, 1961), para inventarse, para criar a seu próprio jeito (a inversão em u) de escolher ou não o analista e de criar, portanto, uma própria verdadeira análise.

A relevância desta “contribuição ao negativo” à criação por parte do analista, à manutenção e ao desenvolvimento da relação psicanalítica, a relevância deste “não-interpretar” parece-me bem evidenciada no sonho devido a sua falta, lá aonde o mapa mental do analista todo orientado ao par analítico (a sua “paciência”, as suas interpretações verbais mais ou menos calibradas e ditas no momento certo, a sua sensibilidade não verbal – os sinais que manda à paciente – talvez também a atenção à sua contratransferência como partnership emocional) enquanto impede a criação individual, bloqueando-a instaura em seu lugar outra coisa, “organizando a doença” da paciente (“sentia-me inábil, incapaz”), isto sim como produto de um par, não no sentido de uma doença iatrogênica (pelo menos espero que não!), mas como modalidade para comunicar, através da negociação desta “alguma coisa”: no caso específico com esta paciente, o conflito dependência/independência, a oposição parte infantil/parte adulta, a imagem de si como inábil e incapaz versus uma imagem de si ideal, em funcionamento e íntegra, parcialmente subtraída5 pelo analista-pai que não precisa de uma mountain bike, sentida também como um alicerce a mais, uma prótese mortificante.

Não desejo dizer que um modelo de trabalho analítico em termos de par tende a organizar a doença do paciente e que isto deveria ser evitado, mas que devemos levar em consideração contemporâneamente uma outra cena na qual a presença do analista, como partner, cria um obstáculo virtual à criação de algo que seja individual por parte do paciente. Tudo pode acontecer naturalmente só no âmbito da relação analítica. Mas é neste sentido que me parece oportuno defi nir, de forma menos técnica possível, o não-interpretar como posição virtual do analista dentro de uma estrutura que assumimos como central, também no plano teórico e não só no plano clínico, a dimensão do par, ou seja, da contribuição (assimétrica) de dois partners.

Dou-me conta que usando e desenvolvendo alguns conceitos de Balint, particularmente aquela da one-body relationship, ou seja, da área de criação, estou descrevendo, através deste fragmento clínico, uma configuração da relação analítica que se relaciona com o silêncio do analista, que também tem sido tratada, embora não tão amplamente, pela literatura psicanalítica, mas não elaborarei outras citações sobre este tema aqui por motivo de espaço.

 

4.

Prefiro proceder por um campo limítrofe ao de Balint, fazendo uso da contribuição de Winnicott. Porém não farei referimento aos seus trabalhos específi cos sobre este tema, entre os quais aquele sobre a “Capacidade de estar só” (Winnicott, 1960): usarei ao contrário uma sua descrição da relação que se intui entre mãe, criança e pediatra porque creio que seja particularmente iluminadora para o corte que desejo dar ao tema do não-interpretar.

Trata-se da algumas considerações dispersas aqui e ali no conhecido texto sobre “A observação das crianças em uma situação prefi xada” (Winnicott, 1941) na qual o autor nos mostra quantas coisas podem ser observadas na interação de uma pequena criança, sentada no colo da mãe, com uma simples espátula luminosa. Trata-se de um trabalho semeador para os desenvolvimentos futuros da contribuição de Winnicott para a psicanálise, acredito também que se possa ler como uma metáfora da relação analítica.

Na fase inicial da seqüência típica que segundo Winnicott é possível de se observar no comportamento da criança em relação à espátula, apresenta-se (se a mãe, o pediatra e outros observadores conseguem “aceitar a disciplina requisitada pela situação”) o que o autor chama de “período de hesitação”:

A criança apóia a mão sobre a espátula, mas descobre, então, que se trata de uma situação que requer refl exão. Encontra-se em um dilema. Com a mão apoiada sobre a espátula e o corpo completamente parado olhará a mim e a mãe com grandes olhos, atencioso e esperando […] Consegue-se normalmente não oferecer à criança algum resseguramento, e é muito interessante, portanto, observar a gradual e espontânea volta de interesse da criança para com a espátula […] a criança aceitou a realidade do seu desejo pela espátula (Winnicott, 1941 p. 68).

O que me interessa colocar em evidência neste texto é o período de hesitação que permite que a criança reconheça a realidade do seu desejo pelo objeto e pode manifestar-se só enquanto, dentro de uma relação segura, cria-se uma suspensão, uma não-interferência por parte do outro. A criança encontra-se sozinha consigo mesma pela primeira vez e esta condição é relacionada a algo que diz respeito somente a ela. Aqui Winnicott parece dizer que o ambiente, o outro, é importante pelo seu silêncio, pela sua capacidade de retirar-se, colocar-se a serviço de um processo que envolve somente a criança enquanto acontece. Não nos encontramos na área de reverie (Bion) ou, para utilizar um conceito mais específi co, tão pouco na área da preocupação materna primária (Winnicott) na qual “só a mãe”, como partner de uma relação única com o fi lho, “sabe como se sente a criança a cada minuto” (teoria da contratransferência e da empatia).

Ilustrarei o significado clínico, que acredito possa-se atribuir ao período da hesitação, referindo-me a outro paciente. É um homem – que chamarei de Alessandro – bem dotado em plano intelectual e poético que se debate com as doloridas dificuldades de estabelecer um vínculo sentimental signifi cativo e escrever a sua dissertação acadêmica, coisa que permitir- lhe-ia progredir no campo de sua carreira, pela qual parece ter boas qualificações.

Durante o quarto ano de análise conta-me de um sonho que considero um ponto de desenvolvimento significativo na progressiva transformação de uma imagem de si vivida como profundamente incapaz e inexoravelmente seqüestrada dentro uma mãe interna refutadora da qual Alessandro continua a esperar, fora do tempo, um gesto de aceitação como uma mana,6 que pela sua idealização defensiva resolve-se invariavelmente no trauma de uma desilusão desorganizadora: torna-se confuso, “tonto”, “mole”, “perde a bússola” na situação analítica, de modo que, o trabalho desenvolvido arduamente até aquele ponto volatiliza-se.

Para os fins desta exposição clínica adicionarei somente o fato de que no sonho que se repete a um ano, sempre de forma mais estável do que no passado, há uma imagem interna de uma mãe mais acolhedora e disponível que faz o filho “florescer”.

Isto é de forma verossímil a expressão, no transfert, da inicial introjeção das qualidades do cuidado analítico; é também destacado o fator “deturpador” constituído pela “boa” atividade interpretativa (verbal ou não) do analista sentida como interferente e com a possibilidade de produzir um gesto espontâneo, individual, reconhecido como próprio. É signifi cativo chamar a atenção para o fato que o paciente havia sido entregue, quando recém- nascido, aos cuidados de uma tia por causa de uma depressão materna com persistente falta de leite, ela cuidou dele com disposição e dedicação junto com o seu próprio filho, da mesma idade do paciente.

Encontrava-me no meio de um campo de grão-turco… havia retornado à minha cidade… sentia- me feliz… era o período certo para a colheita (o paciente provém, como disse, de uma família de campesinos e os pais são até hoje agricultores)… o Senhor sabe como é o grão-turco? Agora lhe explico… toma-se um feixe e corta-se com uma foice entre os dois nós que prendem os pés (do grão)… haviam grupos dispersos aqui e ali que tinham que cumprir este trabalho… mas eu estava sozinho… sentia-me tranqüilo… tomava a foice … chegava minha mãe e olhava-me com um pouco de doçura a uma certa distância… eu permanecia parado com a cabeça baixa procurando o ponto certo… ela aproximava-se e indicava-me com a mão sussurrando ‘aqui entre aqui e aqui…’ Eu confundia-me… e não sabia mais o que estava fazendo ali.

Masud Khan, que a propósito desta área de experiências individuais deixa-nos o ensaio Permanecer maggese7 (Khan, 1982/1977 [1977]) que defi nirei poético, observa oportunamente que o conceito winnicottiano de “período de hesitação” é importante também para a teoria psicanalítica em geral e para o nosso trabalho clínico, particularmente, com os adultos. Khan diz algo de novo sobre o conceito clássico de resistência como o conhecemos desde Freud. Muitas vezes nos escritos de psicanálise sente-se difi culdade em interpretar a resistência para o paciente, enquanto na verdade é o paciente que se encontra no “período de hesitação”, ou seja, ele está se equilibrando em busca de um “tipo de intimidade” na situação analítica em que possa dar gradualmente a sua primeira contribuição verbal o gestual (Khan 1975, p. 15).

Parece-me que esta dimensão da relação analítica faça alusão a um lugar da experiência do sujeito em análise e do tipo de contribuição por parte do analista que, com certeza, o ambiente é mais do que um modelo clínico. Tenho a impressão, porém, que esta não seja plenamente descritível nem através da tão conhecida teoria das relações objetais, nem em termos de relação self/objeto-self, nem com o modelo da capacidade de fusão, embora algumas contribuições mais recentes deste grupo de trabalho (Pallier & Tagliacozzo & Soavi, 1990) parecem-me ir à direção de exploração destas áreas.

O fato também que Winnicott e Balint sejam catalogados com a etiqueta de teóricos das relações objetais, é um dos motivos primordiais que me levou a tratar este tema usando suas contribuições que me parecem ir além de um esquema relacional ab initio, de forma correlacionada aos acontecimentos da situação analítica. Acredito que a utilização desmedida do modelo de identificação projetiva e da reverie como função alfa da transformação obscureça esta dimensão do paciente na situação analítica, a busca deste “tipo de intimidade” com si mesmo prescindiria do objeto.

Winnicott fala de um self potencial fundamentalmente não comunicado e incomunicável e descreve no desenvolvimento emocional da criança a longa história que existe antes que ela entre de qualquer forma em contato com o objeto – (Winnicott, 1945) esta é também a lenda reportada de uma dimensão do paciente dentro da situação analítica que se coloca além da transferência.

Balint, com uma articulada teoria fundada na relação analítica e diferenciada em relação àquela de Winnicott, descreve fenômenos clínicos análogos e relacionados à individualidade do paciente. É oportuno citar diretamente o texto que é o resumo da sua teoria clínica fundada sobre a relação analítica, a qual sintetiza os diferentes níveis em que desenvolve a análise:

Enquanto a área de conflito edípico é caracterizada pela presença de ao menos dois objetos além do sujeito, e a área do defeito fundamental de uma relação dual exclusiva e muito especial, a terceira é caracterizada pela ausência da qualquer objeto externo. O sujeito está sozinho (on his own) e a sua preocupação principal é constituída por conseguir produzir algo fora de si mesmo; este “algo” a ser produzido pode ser um objeto, mas não necessariamente o é. Proponho-me a chamar este nível de área de criação. Naturalmente o exemplo citado com maior freqüência é a criação artística, mas fazem parte deste mesmo grupo fenômenos da matemática e da fi losofi a, também a aquisição de um insight, o entender algo ou alguém; e – last but not least – dois fenômenos fundamentais: as primeiras fases do “adoecer” fi sicamente ou psiquicamente e a cura espontânea de uma “doença”. Destes processos, não obstante as tentativas feitas, muito pouco foi compreendido. Uma razão óbvia para esta escassez de conhecimento é devida ao fato que em toda esta área não está presente nenhum objeto e, portanto, não se pode desenvolver uma relação de transferência (Balint, 1968, p. 145; tradução ligeiramente alterada pelo autor; itálico do autor).

Parece-me que um novo olhar sobre o pensamento de Balint pode oferecer-nos alguns estímulos para reconsiderar um ponto de vista diferente, um tema clínico-teórico da psicanálise contemporânea: ou seja, o que na situação analítica é transferência e o que é relação. Um tema fundamental, que é também a re-proposição em termos mais elaborados e complexos, de uma linha vermelha problemática que atravessa toda a psicanálise clínica desde “Anna O.” e que se organizou com prevalência em termos de um debate sobre a teoria da técnica: basta pensar no título exemplifi cativo, a contraposição entre R. Greenson (1969) e os kleinianos em relação às interpretações de transferência e extratransferência.8

Agora, por exemplo, Ferro e Bezoari (1991) conjugam de forma original o modelo transformacional de Bion com aquele da situação analítica como campo bi-pessoal dos Baranger, que nos propõem os conceitos de “fantasias inconscientes bi-pessoais”, de “oscilação relação-transferencial” (R.-T.) e em relação ao campo da técnica de “interpretações fracas” e de “interpretações vestidas”. Estes conceitos, em particular aqueles que avançam o território da técnica, parecem-me muito relevantes se os considerarmos como uma fecunda evolução da tradição técnica kleiniana: mas também é verdade que são temas amplamente tratados de forma lúcida e “previdente” (à luz dos atuais desenvolvimentos da clínica psicanalítica) por Balint que já na metade dos anos “40 expressando uma explícita diferença das posições de M. Klein sobre os quais ele fundou com a sua crítica à inclinação não só biologizante, mas também relacional da técnica psicanalítica, a sua aproximação original que contribuiu de forma conspícua à formação de uma diferente tradição técnica e clínica que atribui à tolerância da regressão do paciente e ao não-interpretar, uma dignidade como a de se fazer uma interpretação (por exemplo, H. Stewart, 1989).

Em relação aos temas de clínica e técnica, ou seja, o que é transferência e o que é relação, Balint (como Winnicott) chama a nossa atenção para uma dimensão da experiência do paciente que não é nem transferência nem relação, embora tanto uma como a outra constituam as vias de acesso. Uma dimensão que fi caria fora de um modelo da situação psicanalítica que enfatizasse de forma excessiva o aspecto de relação ou campo bi-pessoal do qual a identifi cação projetiva, seria o mecanismo relacional sempre presente que funda e estrutura: o par em trabalho, mas também a mente individual, como introjeção de um funcionamento de tipo digestivo.

A articulação da situação analítica proposta por Balint com a teoria das três áreas da mente inclui, em certas condições da análise com certos pacientes, uma confi guração da contribuição do analista a qual natureza consiste em colocar-se a serviço de um processo que acontece no paciente e que diz respeito somente a ele.

Posso indicar alguns desenvolvimentos de pesquisa clínica e teórica sobre a situação psicanalítica que se distanciam desta consideração. A noção de contratransferência a qual excessiva dilatação conceitual ou o uso operativo excessivo pode terminar em um mecanismo racional subentendido, por exemplo, na metáfora da situação analítica como “jogo de xadrez”. Uma metáfora que no fundo se sobrepõe àquela “dos passos de valsa” usada pelos psicólogos do desenvolvimento para defi nir a natureza do sistema interativo-comunicativo do par mãe-criança e que descreve de forma efi caz e evocativa uma parte relevante do processo psicanalítico, mas que deixa nas sombras a radical subjetividade do paciente em análise. A específi ca contribuição do analista que não inter-fere nesta subjetividade, mas que aliás, coloca-se a serviço de um processo que a deixe emergir, é uma estrutura que se pode difi cilmente considerar em termos de contratransferência, ou se quisermos, de reverie.

De fato, na atual dilatação da contratransferência está implícita a noção que o analista é um objeto para o paciente, assim como na reverie a mãe é o pólo receptivo, o alvo das identifi cações projetivas da criança. O conceito winnicottiano de holding, que descrimina a função da mãe enquanto ambiente e a sua posição enquanto objeto, parece mais usável clinicamente, pois deixa mais espaço para descrição dos momentos da análise em que a presença do analista não é ainda aquela de um objeto para o paciente. Holding, enquanto função da “preocupação materna primária” pode ser metaforicamente referida à “preocupação terapêutica” que constitui um aspecto fundamental da função de cuidar do paciente, vem distinta sutilmente por Winnicott do conceito de handling e de object presenting.

Os primeiros dois conceitos, holding e handling, referem-se aos processos de maduração espontânea da integração e da personalização, constituem o aporto silencioso da mãe (o não interpretar do analista) que sustenta o self germinativo da criança, enquanto o object presenting mais ativo (assim como é ativa a função de interpretar) pode ser visto como uma ponte que com a oferta de objetos escolhidos pela mãe, coloca em movimento o entrar em relação através da identifi cação projetiva como forma que estrutura o self e o objeto. Talvez não seja supérfl uo especifi car que nesta descrição esquemática não me refi - ro a uma seqüência genético-cronológica: aqui é crucial a distinção de Winnicott (1957) entre “precoce” e “profundo” e, portanto, utilizando a relação mãe-criança como metáfora, faço uma alusão à co-presença de diversos níveis de experiência e de diversas funções psicanalíticas cuja esquematização pode talvez aproximar-nos e distinguir o interpretar do não-interpretar.

Uma concepção excessivamente “objetal” do analista dentro da situação analítica pode talvez esclarecer-se com um exemplo extremo que se refere ao autismo infantil como estado de auto-sensualidade sem o objeto. Lembro-me dos comentários de Frances Tustin em que ela advertia-nos a não usar excessivamente a contratransferência para tentar compreender o comportamento da criança autista durante a sessão com a intenção de evitar o risco de preencher o vazio comunicativo com uma “construção mental” que, apesar de sensível, teria sido toda do terapeuta e também sobreposta à criança “em carne e osso” (flesh and blood) destruindo assim a possibilidade de contemplar de fora, sem interferir, o seu esforço em produzir alguma coisa.

Na linguagem de Balint esta é a posição do analista não intrusivo (unobtrusive): a única coisa que sabemos é que o processo de criação é imprevisível. O exemplo é aquele do paciente silencioso que está criando alguma coisa, algo que o analista não pode saber e que não pode ser compartilhado enquanto está sendo criado; o analista pode somente permanecer com ele olhando-o de fora durante a sua obra. “Toda intrusão através de interpretações, que tende a polarizar a atenção, destrói de forma inevitável, para o paciente, a possibilidade de criar algo fora de si” (Balint, 1968, p. 304; trad. ligeiramente modifi cada pelo autor).

Não consigo encontrar uma explicação mais adequada para entender, do ponto de vista clínico, o signifi cado daquela passagem tão famosa quanto misteriosa e fascinante em que Freud (1914), tentando explorar os aspectos constitutivos da individualidade da pessoa, afi rma que para que se produza o narcisismo deve-se juntar ao auto-erotismo uma nova ação psíquica.

 

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Endereço para correspondência
Vincenzo Bonaminio
Società Psicoanalitica Italiana SPI
Via Nomentana, 256
00162 – Roma – Italia
E-mail: vibonam@tin.it

 

 

1 Este artigo foi originalmente publicado na Rivista di Psicanalisi (1993, 39, 3:453-477) em versão mais extensa, com o título “Del non interpretare”. O autor autoriza sua publicação em versão reduzida na Revista Brasileira de Psicanálise. Tradução de Francesca Cricelli e revisão de Ana Rita Nuti Pontes (membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo sbpsp e membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto sbprp).
2 Analista didata e supervisor, membro efetivo da Società Psicoanalitica Italiana SPI; professor adjunto de psicologia no curso de Medicina e Cirurgia e pesquisador e docente de psicopatologia dinâmica e psicoterapia infantil no Departamento de Ciências Neurológicas e Psiquiátricas da Idade Evolutiva da Sapienza Università di Roma.
3 Locução latina que signifi ca “fora dos muros da cidade”. [NT]
4 Antes de proceder e explicar por que decidi apresentar as coisas desta forma gostaria de relembrar que o verbo interpretar provém etimologicamente da voz latina interprete(m) ‘mediador’, por sua vez explicada pela sua composição com inter, ‘entre’ e um derivado de pretiu(m) ‘preço’. (M. Cortellazzo – P. Zolli, 1983).
5 A identificação extrativa da qual fala Bollas, 1987.
6 Maná: segundo a Bíblia, alimento milagrosamente oferecido por Deus aos Hebreus durante os quarenta anos de peregrinação no deserto, o alimento consiste em uma substância doce, branca, com sabor parecido ao mel, esta substância descia durante a noite e fundia-se com o calor do sol. O termo é também usado para indicar uma nutrição espiritual. (Fonte www.demauroparavia.it). [NT]
7 Maggese (em italiano): prática agrícola muito antiga que consiste em deixar o terreno não cultivado após
ter-lo utilizado de forma oportuna durante um período mais ou menos longo, com a motivação que este
reconstitua a sua fertilidade. (Fonte www.demauroparavia.it; tradução e adaptação da tradutora.)
8 “Extra-transferência” é a parte da relação analista-paciente que não pode ser considerada (ou que alguns autores não consideram como transferência. O equivalente em inglês é extra-transference, ou seja, “o que está fora” ou “além” da transferência.).

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