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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.42 n.1 São Paulo mar. 2008

 

RESENHA

 

Resenha: Cláudia Aparecida Carneiro*

Instituto de Psicanálise Virgínia Leone Bicudo da Sociedade Psicanalítica de Brasília

 

 

O ser interior na psicanálise: Fundamentos, modelos e processos

Walter Trinca. São Paulo: Vetor, 2007, 380 p.

O modo claro, didático, e o esforço científi co com que apresenta as idéias desenvolvidas ao longo de seu trabalho psicanalítico tornam o novo livro de Walter Trinca, O ser interior na psicanálise: Fundamentos, modelos e processos, um compêndio que reúne, num todo coerente, os estudos e dados obtidos em mais de trinta anos de experiência clínica e pesquisa.

Em 1999 Trinca introduziu em seu livro Psicanálise e expansão de consciência: Apontamentos para o novo milênio a noção de ser interior e a infl uência deste sobre o self, disposta num contínuo de contato que corresponde a uma grande amplitude de situações mentais, determinadas, entre outros fatores, por maior ou menor contato com o ser interior. No novo livro, o autor apresenta um modelo sistemático e abrangente, destinado a auxiliar a compreensão psicanalítica das perturbações psíquicas, a partir desses e de outros conceitos elaborados e descritos em vários de seus livros publicados nas últimas duas décadas.

Sem a pretensão de originalidade ou de reformulação de teorias psicanalíticas correntes, o autor as utiliza para estruturar alguns elementos psicanalíticos num modelo que, acredita ele, possa contribuir para a diminuição da distância que por vezes se encontra entre as teorias gerais e a prática do atendimento clínico. Trata-se de “um modo de praticar a psicanálise não como teoria, e sim como atitude mental” (p. 18). Quem lê o livro se benefi cia dessa experiência.

O modelo desenvolvido por Trinca propõe uma compreensão de conjunto das perturbações psíquicas, um fio condutor que percorre várias situações clínicas, habitualmente descritas pelo psicanalista como padrões de funcionamento mental. O autor os descreve como sistemas mentais determinantes, que podem ser observados na clínica sob as formas de narcisismo, voracidade, inveja, falso self, homossexualidade, destrutividade anti-social, psicose branca, fobias e pânicos, para mencionar alguns.

Mas retomemos o primeiro capítulo, no qual o autor desenvolve o conceito de ser interior, noção fenomenológica introduzida na psicanálise para referir a realidade primária de ter um ser, o ser que essencialmente somos, matriz de existência, um foco de vida criadora. Rapidamente associamos tal noção ao conceito freudiano de pulsão de vida. O autor se encarrega de distinguilo: “Esse foco não são as próprias pulsões; ele utiliza as energias das pulsões a seu favor, sem se confundir com elas” (p. 24).

Também se opõe ao vínculo com a noção arquetípica de totalidade, o si-mesmo de Jung. Reitera que o ser interior realiza uma “abertura individual à expansão”, enquanto o conceito jungiano é o somatório das possibilidades contidas no conjunto dos indivíduos humanos, conforme descreve.

A idéia desenvolvida por Trinca aproxima-se das teorias de Winnicott, que, a propósito, foram o ponto de partida dos estudos desenvolvidos pelo autor. Trinca vislumbra uma relação entre o ser interior e o espaço potencial descrito por Winnicott: “algo” acontece entre o bebê e o objeto, permitindo-lhe integração na presença de uma mãe sufi cientemente boa. Algo que não é senão o próprio ser profundo, pronto para exercer sua atividade normal de integração.

Nos capítulos seguintes o autor discorre sobre as relações entre o ser interior e o self, organização psíquica globalizante, campo de experiências e confl itos que pode ou não estar permeável à infl uência de contato com o ser, cuja natureza é não-sensorial. Maior contato, mais aproximação com a verdade existencial da pessoa. Quanto mais distanciado de contato, mais o self se encontra suscetível a forças confl itantes, fragmentárias e turbulentas. Sob o distanciamento de contato, o self recorre ao uso de sensorialidade ou responde com fragilidade. Uma “escolha” ou outra se instala no self sob a forma de um sistema mental determinante.

Ao percorrer as páginas do livro, temos clareza sobre aonde o autor quer chegar: ele aborda exaustivamente a premissa de que as perturbações psíquicas, vistas sob essa ótica, estão estritamente relacionadas ao distanciamento de contato com o ser interior. Quando o distanciamento se realiza, outros fatores que desempenham funções psicopatológicas atuam simultaneamente: a constelação do inimigo interno, a sensorialidade, a fragilidade do self, a angústia de dissipação do self, a estruturação inconsciente. Processos que se relacionam entre si e, por essa qualidade, são descritos por Trinca como variáveis que se inserem num eixo de contínuo de contato.

Para ilustrar imageticamente as relações entre o ser interior e o self, o autor supõe uma caverna que contém muitas formas e objetos, alguns em total obscuridade, outros quase invisíveis ou mal vistos e outros que recebem luz. De forma bem resumida, a caverna fi gura o self, a luz que entra e ilumina alguns objetos e formas corresponde à infl uência do ser interior e os graus variáveis de luz e sombra representam maior ou menor distanciamento de contato, que se dá em graus, de acordo com o modelo apresentado.

No capítulo 7, Trinca dispõe grafi camente os graus de contato com o ser interior no eixo de contínuo que abrange os estados oclusivo, inconsciente e consciente. Retomando a interessante alusão à caverna, o ser profundo na visibilidade corresponde ao estado consciente e, na invisibilidade, ao estado oclusivo, no qual predominam processos mentais peculiares à personalidade psicótica. Numa posição intermediária no eixo, o ser mal percebido corresponde ao estado inconsciente, em que sobressaem os aspectos neuróticos da personalidade.

É notável o nível de detalhamento com que o autor expõe suas idéias, compondo um modelo destinado a facilitar o trabalho clínico do psicanalista, e servindo-se para tal das descobertas psicanalíticas mais representativas, encontradas sobretudo nas obras de Freud, Klein, Winnicott e Bion. Walter Trinca oferece uma compreensão das perturbações psíquicas a partir de um modelo que, sem ser reducionista, propõe diminuir o nível de complexidade para se entender o funcionamento psíquico e organizar o pensamento clínico.

Por essa razão, em vez de detalhar sintomas e síndromes, prefere descrever os sistemas mentais determinantes como componentes básicos das perturbações psíquicas e organizá-los num sistema geral que se fundamenta na hipótese da continuidade dos graus de contato. Nessa hipótese, quanto mais a pessoa se distancia de contato consigo, mais grave é a natureza da perturbação psíquica; quanto mais ela se aproxima do contato, mais integrada se torna.

Dizendo de outra forma: o self, como “órgão de contato” (p. 33), é constantemente influenciado pelo ser interior e pela constelação do inimigo interno. No contexto da teoria kleiniana, o ser atua como as “partes boas” do self, enquanto a constelação, vinculada à pulsão de morte, corresponde às “partes más”. Metaforicamente, de um lado o self recebe luz, de outro recebe sombra. Essas três esferas mantêm uma relação dinâmica entre si, e nesse ponto encontramos mais uma contribuição bioniana ao modelo desenvolvido por Trinca, a de interação permanente entre as posições esquizoparanóide e depressiva, que oscilam nas duas direções.

O modelo dialético de Walter Trinca pressupõe um jogo de forças confl itantes que só pode ser superado em condições avançadas de contato consciente com o ser interior, quando se registram graus elevados de experiência de imaterialidade. À medida que fl ui a leitura, torna-se cada vez mais coerente e compreensível o panorama psíquico proposto no livro, bem como a dinâmica dos fatores que o moldam. Ou seja, tendo como foco a relação entre o ser interior e o self, uma das bases da vida mental se assenta no contato com esse ser. E é com base nos graus de proximidade e de distanciamento de contato que a dinâmica psíquica e suas perturbações podem ser entendidas.

Esclarece o autor que, quando o distanciamento de contato se intensifi ca, a pessoa se confronta com pelo menos três alternativas: a fragilidade do self e o incremento da angústia; o acréscimo ou novas modalidades de sensorialidade; a elaboração mental por meio da retomada de contato. “O que poderá determinar se será a sensorialidade, a fragilidade ou a mobilidade psíquica que predominará no self vai depender do balanço geral das forças presentes na personalidade como um todo” (p. 105). Assim, torna-se possível unifi car as perturbações psíquicas num eixo constituído por um campo de variação contínua entre infi nito negativo e infi nito positivo, que abrange desde as psicoses mais graves até os estados ampliados de consciência e tem como variáveis a fragilidade do self, o uso da sensorialidade ou a mobilidade psíquica.

Não seria possível sintetizar aqui, com fi delidade e precisão, a combinação dos vários fatores que respondem por perturbações psíquicas, os quais Walter Trinca organiza criteriosamente numa escala unifi cada, enquanto recheia o livro de exemplos esclarecedores de sistemas mentais possíveis. A título de ilustração, vale destacar a referência que faz às patologias do vazio.

Ressalta o autor que essas patologias se estabelecem (e se diferenciam) em função da natureza da “escolha” que ocorre entre a sensorialidade e a fragilidade do self. O emprego da sensorialidade conduziria às patologias do cheio; a recusa à sensorialidade, às patologias do vazio. Grosso modo, as formas mais comuns de perturbações psíquicas poderiam ser divididas em patologias da sensorialidade (ou do cheio) e patologias da fragilidade (ou do vazio). Diz o autor:

Uma vez que seja possível distinguir-se no self entre o preenchimento sensorial e a manutenção da fragilidade, verifi ca-se claramente que o vazio não se confunde com o preenchimento sensorial. Ao contrário, é constituído justamente pela negativa ao preenchimento, que se presentifi ca como fragilidade. Nesse caso, o vazio não é mais do que a fragilidade que, em graus progressivos, se transforma em esvaziamento do self (p. 288).

Trinca dedica a parte final do livro ao processo de integração do self e à inclusão, no eixo do contínuo, de novas variáveis como os sonhos e as imagens mentais espontâneas. Entre o nível baixo oclusivo e o nível alto consciente na variação do contínuo, “há desde sonhos altamente desagregados, com insufi ciência da função alfa e predominância da pulsão de morte, até sonhos altamente elaborados, com forte presença da função alfa e predominância da pulsão de vida” (p. 348).

Walter Trinca é especialista em pesquisa. Orientou e supervisionou cerca de sessenta projetos em psicologia clínica. Desenvolveu uma diversidade de projetos próprios, entre eles o estudo psicanalítico das fobias, a arte interior do psicanalista, as formas de pensamento clínico e a descrição das experiências de imaterialidade. O Procedimento de Desenhos-Estórias idealizado por ele, técnica projetiva de investigação clínica da personalidade, já foi utilizado em mais de trinta teses e dissertações. Mais uma vez o autor contribui generosamente para o pensamento psicanalítico. O compromisso que assume ao divulgar as idéias do livro, nas palavras do autor, é oferecer meios que possibilitem diminuir o sofrimento e lutar em prol da vida, contra toda espécie de destruição mental.

 

 

* Membro filiado do Instituto de Psicanálise Virgínia Leone Bicudo, da Sociedade Psicanalítica de Brasília SPB; jornalista.

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