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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.42 no.2 São Paulo June 2008

 

DIÁLOGO

 

História e/em psicanálise? E qual é o papel do historiador/psicanalista ou da dupla analítica nesta construção? Comentário à entrevista de Fernando Novais

 

History and/in psychoanalysis? And what is the role of the historian/psychoanalyst or of the psychoanalyst, or of the psychoanalytical pair in this construction? Comment to Fernando Novais’ interview

 

Historia y/en psicoanálisis? Cual es el papel del historiador/psicoanalista, o de la dupla analítica, en esta construcción? Comentário a la entrevista de Fernando Novais

 

 

Ruggero Levy*

Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor, a partir da entrevista do prof. Fernando Novais à Revista Brasileira de Psicanálise, tece livremente alguns comentários. Centra-se principalmente em compreender como foi e como é vista a questão da história passada do sujeito na psicanálise. Diferencia uma posição inicial da psicanálise de tentar reconstruir a história factual do sujeito, com uma postura mais contemporânea de aceitar que se constrói uma história possível numa tarefa conjunta da dupla analítica.

Palavras-chave: Construção em análise; Reconstrução; Psicanálise e história.


RESUMEN

El autor, a partir de la entrevista del prof. Fernando Novais a la Revista Brasileira de Psicanálise, teje libremente algunos comentarios. Trata principalmente de centrarse en comprehender como fue y como se aborda la cuestión de la historia pasada del sujeto en el análisis. Diferencia una posición inicial del psicoanálisis de tratar de reconstruir la historia factual del sujeto, con una postura mas contemporánea de aceptar que se construye una historia posible en una tarea conjunta de la dupla analítica.

Palabras clave: Construcción en análisis; Reconstrucción; Psicoanálisis e historia.


ABSTRACT

The author, based on the interview given by Dr. Fernando Novais to the Revista Brasileira de Psicanálise, freely makes some comments. It is primarily centered on understanding how the question of the past history of the subject in psychoanalysis is and seen. It differentiates an initial position of the psychoanalysis of attempting to reconstruct the factual history of the subject, with a more contemporary posture of accepting that a possible history has been built as a result of a joint task of the analytical pair.

Keywords: Construction in analysis; Reconstruction; Psychoanalysis and history.


 

 

A instigante entrevista com o prof. Fernando Novais foi estímulo para inúmeras conjecturas: quais são as esferas de existência do homem? De que esfera da existência se ocupa a psicanálise? É a psicanálise uma ciência? Ciência para Novais é a área de investigação que possui um objeto bem delimitado e um método de investigação próprio. Temos nosso objeto bem delimitado e um método de investigação próprio? Embora eu pense que sim, nosso objeto é o inconsciente e o nosso método é próprio e bem descrito por vários autores, não me deterei nesta discussão. Farei uma breve digressão sobre este tema apenas para dialogar um pouco com o prof. Fernando Novais.

Nosso objeto de investigação, embora complexo e inefável, existe. Bion (1965) diria que o objeto da psicanálise é a experiência emocional ocorrida no campo analítico. Desde outro vértice poderíamos dizer que o objeto da psicanálise é o inconsciente expresso na relação transferencial. Por outro lado, podemos afirmar também que Freud criou um método próprio para a investigação do inconsciente. O método psicanalítico segue com suas bases válidas desde sua criação até hoje. A definição mais clara nos dá Donald Meltzer:

[O método] consiste em estabelecer uma relação entre duas pessoas num contexto muito controlado e estudar os acontecimentos que transpiram quando o analista, pessoa especializada em ter uma sensibilidade em relação às outras pessoas e que possui um contato profundo com seu inconsciente, limita sua atividade tanto quanto possível à interpretação da transferência (Meltzer, 1973, p. 23).

Os recursos técnicos são vários: livre associação do paciente, atenção flutuante do analista, uso do divã, setting bem definido, alta freqüência de sessões, etc. Mas esta breve digressão teve a finalidade apenas de aproveitar palavras de Novais para situar rapidamente o status científico da psicanálise, dentro da definição já citada.

Mas, das várias reflexões que me despertou a entrevista com Fernando Novais, resolvi deter-me um pouco mais na pergunta inicial da entrevista: “Qual o papel da história e do historiador?” Evidentemente, por não ser historiador, mas psicanalista, me farei a pergunta: Qual o papel da história na psicanálise? O que é fazer história em psicanálise? E qual é o papel do historiador/psicanalista ou da dupla analítica nesta construção?

Nos primórdios da psicanálise, Freud, na ânsia de torná-la uma ciência natural, acreditava que os fatos psicanalíticos deveriam ter uma correspondência com os fatos reais vividos na infância do sujeito (Hanly, 1992). Ou seja, na “história vivida” do paciente deveriam ter fatos reais que correspondessem de algum modo às produções oníricas e sintomas neuróticos trazidos ao analista. Em epistemologia, a busca da verdade por correspondência tem como ciência prototípica a física (Rezende, 1999). Nesse tipo de postura científica a hipótese de trabalho deve necessariamente corresponder a um fato real, o que lhe confere veracidade. Assim, o resultado de uma fórmula da física newtoniana a respeito da força da gravidade, por exemplo, deve poder corresponder sempre a um fenômeno real. Uma maçã atirada de uma altura determinada deverá sempre levar um tempo determinado para chegar ao chão, caso o experimento for realizado na Terra, onde a força da gravidade é uma constante.

Pois Freud, em busca do realismo científico (Hanly, 1992), freqüentemente assumia essa postura científica. O exemplo mais ilustrativo é a clássica análise do Homem dos Lobos. No trabalho de interpretação do sonho dos lobos, Freud, como um verdadeiro historiador envolvido na reconstituição de um evento histórico, reconstrói a “cena real” que certamente deveria ter ocorrido, desde seu ponto de vista da época. Era a busca da correspondência quase absoluta. Postula que o Homem dos Lobos não apenas teria assistido ao coito dos pais, mas inclusive procurou determinar a posição em que eles estavam. Embora Freud utilizasse também outros critérios científicos, por exemplo, a verdade por coerência (Hanly, 1992), esta “objetividade” lhe parecia essencial para a psicanálise poder reivindicar um lugar como ciência. Nesse contexto, então, o psicanalista/historiador seria aquele em busca de reconstituir a verdade objetiva dos fatos, procedimento chamado de reconstrução.

Então, durante muitos anos a reconstrução da “verdade histórica” ocupou um papel central na psicanálise. Entretanto, na medida em que a psicanálise foi desenvolvendo novos conceitos, houve uma modificação substancial nesse sentido. Inicialmente, a partir das contribuições kleinianas. Klein, em seus trabalhos clássicos, passou a dar uma centralidade enorme às projeções do paciente sobre sua realidade externa, e considerava que o “mundo interno”, com seus objetos e relações de objetos internas, criavam-se a partir da introjeção das figuras parentais, porém distorcidas pela projeção prévia. Assim, passou a considerar-se ser praticamente impossível saber se os objetos internos que surgiam na sala de análise eram fruto da realidade factual ou se eram fruto das distorções originadas na mente do sujeito. Tornou-se difícil estabelecer no material onírico ou narrativo do paciente discriminar o quanto de objetividade e subjetividade havia.

Especialmente a partir das contribuições de autores neokleinianos, como por exemplo, Betty Joseph, a ênfase no “aqui e agora” adquiriu uma prioridade destacável, embora houvesse divergências quanto à importância das interpretações de reconstrução da história e quanto ao momento da análise em que era conveniente fazê-las. A transferência deixou de ser considerada como reminiscência do passado, mas como externalização do mundo interno. Assim, na técnica as intervenções dirigidas ao passado na tentativa de reconstruí-lo ou elaborá-lo passaram a ser substituídas prioritariamente pelas intervenções dirigidas ao imediato da relação analítica, pelo menos nas correntes de inspiração kleinianas. Considera-se, deste modo, que o que importa são as modificações que o processo analítico poderá produzir no mundo interno do paciente; as modificações nos objetos e nos estados mentais passam a ser prioritárias, assumindo pouca importância, dependendo do autor, a sua referência a fatos do passado. Uns chegavam a dizer que a reconstrução seria “desnecessária e desorientadora”, pois distrairia o paciente da experiência emocional da sessão (Spillius, 1988).

Mas, após Klein, veio Wilfred Bion e ele, como todos sabem, fez rupturas importantes tanto na teoria quanto na técnica. Mas colocarei em destaque as que me parecem importantes para o tema deste comentário e que se prestam para a articulação que pretendo fazer. Para Bion, O é a realidade última. É a experiência em si mesma que só pode ser “sida”, vivida, experimentada. Enunciados sobre ela feitos pelo próprio sujeito ou pelo analista são transformações de O. Fernando Novais nos dizia que existe a história como acontecimento, experiência vivida, e assim todos fazem e tem história. Mas tem a história como narrativa, reconstituição do passado, e esta os povos primitivos não têm, apenas os mais desenvolvidos. Há um enorme e significativo paralelo nesses conceitos. Pois, para Bion, o fato apenas acontecido, sem as transformações psíquicas que permitam representá-lo e posteriormente colocá-lo em narrativa, é um fenômeno protomental. Precisará passar pelas transformações necessárias para tornar-se um fenômeno psíquico.

Mas e qual a relação disso com o analista/historiador? O analista será ao mesmo tempo protagonista da história e historiador. O analista deverá poder viver o momento “histórico” como e com o paciente, sentir epidermicamente a vivência trazida à sessão, tornar-se O no dizer de Bion. Posteriormente, deverá fazer enunciados sobre a experiência vivida para gerar compreensão sobre ela, colocar em narrativa a história “acontecida”. Ao fazer isso, transformar O, o fato é narrado, “historizado”, tornado passado. A relação analítica oscila e deve poder oscilar, é essencial à sua natureza entre presente/passado. Mas é o presente/passado da imediatidade da experiência. Embora se possa dizer, paradoxalmente, que o passado da vida do paciente também está presente nos fatos ocorridos na sala de análise. De todo modo, para haver ganho analítico, crescimento mental, os fatos acontecidos precisam ser representados, narrados, historiados. Sem dúvida, é outro tipo de “história” que estamos fazendo, não mais aquela reconstrução do passado “objetivo” do paciente, mas a “história” recente da experiência da dupla analítica.

Outro ponto de contato com a entrevista de Novais. Este afirma com propriedade que mito e história se contrapõem pela sua relação com a temporalidade. O mito é atemporal, transpassa o tempo e segue sendo atual. “O mito ocupa para o primitivo o lugar da memória histórica” (Novais, entrevista à Revista Brasileira de Psicanálise). A história introduz a temporalidade. No funcionamento individual e desde a perspectiva teórica da psicanálise, Bion (1963) dirá algo muito similar: “[…] os mitos servem como uma contraparte primitiva das formulações sofisticadas… São vitais, mas carecem de precisão, uma vez que são primitivos e pictóricos –, daí a necessidade de formulações sofisticadas, como em ciência” (p. 78). Ou seja, são registros narrativos, ricos em imagens, da experiência humana. Bion os coloca na mesma categoria de abstração dos sonhos em relação à representação da experiência em si mesma. Acima deles estão os conceitos e as teorias científicas. Mas são imprescindíveis tanto no plano coletivo, criando os mitos públicos, como no individual, criando os mitos privados. No entanto, dão início a um processo de conhecimento de si ou do mundo. Esse processo de conhecimento de si mesmo num tratamento psicanalítico ocorre no calor intenso de uma relação humana da dupla analítica e resulta na construção de uma história possível do sujeito, realizada por aquela dupla.

Iankilevich et alli (2008), aprofundando o tema da historização em um excelente trabalho, afirmam: “Historizar vai além de simbolizar, ainda que esse seja seu fundamento. É contar e recontar, arranjar e rearranjar, fazer conexões constantemente, tecer os fatos em redes complexas e diversificadas, capazes de mudar, rearranjar-se para dar conta de novas experiências. Mudança que estabelece um novo quadro, uma ‘nova versão do mito’, crescimento mental, capacidade de pensar, saúde mental” (p. 4).

História e psicanálise se entrelaçam de inúmeras formas. Ocupam-se especialmente de entender– mas a psicanálise também de tratar– a constituição de um sujeito, de um povo ou de uma civilização. Estudam as memórias, os mitos, os registros simbólicos, oníricos, na ânsia de conhecer do modo mais acurado possível o seu objeto de estudo, seja individual, seja coletivo.

Hoje em dia, a psicanálise se ocupa ainda de fazer hipóteses reconstrutivas do passado do indivíduo através do conhecimento de seu presente enunciado em seus registros simbólicos. Mas faz também– e talvez de modo predominante– construções simbólicas, míticas e conceituais, de experiências emocionais, seja da vivência imediata do paciente na sala de análise, seja de vivências primitivas que permaneceram em estado bruto, protomental, não simbolizadas (Levy, 2005) e que irrompem na relação analítica.

 

Referências

Bion, W. R. (2004). Elementos de psicanálise. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1963.)        [ Links ]

Hanly, C. (1995). O problema da verdade na psicanálise aplicada. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1992.)

Iankilevich, E. et. alli (2008). Historizando: reflexões sobre a clínica psicanalítica. Trabalho selecionado para ser apresentado no Congresso da fepal, em Santiago do Chile, 2008.

Levy, R. (2005). Trauma e não simbolização. Trabalho apresentado no 44º Congresso da ipa, Rio de Janeiro.

Rezende, A. M. (1999). A questão da verdade na investigação psicanalítica. São Paulo: Papirus.

Spillius, E. (1998). Introdução a desenvolvimentos da técnica. In Melanie Klein hoje: Desenvolvimentos da teoria e da técnica. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1990.)

 

 

Endereço para correspondência
Ruggero Levy
Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre SPPA
Rua Itaqui, 98/203
90460-140– Porto Alegre RS – Brasil
Tel.: +55 51 3332-9009
E-mail: ruggerol@terra.com.br

 

 

* Membro efetivo e analista didata da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre SPPA.

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