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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.42 n.2 São Paulo jun. 2008

 

DIÁLOGO

 

“Sem memória não existe gente, existe?” Comentário à entrevista de Fernando Novais

 

“¿Sin memoria no existen las personas, existen?” Comentário a la entrevista de Fernando Novais

 

“Without memory there are no people, are there?” Comment to Fernando Novais’ interview

 

 

Marcio de Freitas Giovannetti*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor faz aproximações entre as idéias trazidas por Fernando Novais e alguns conceitos freudianos, como o de a posteriori. Ressalta também a importância do pensamento livre e libertário tanto para o historiador quanto para o psicanalista.

Palavras-chave: Memória; Anacronismo; A posteriori.


RESUMEN

El autor aproxima ideas de Fernando Novais con algunos conceptos de Freud, como “a posteriori”. También enfatiza la relevancia del pensamiento libre e libertario para el historiador así como para el psicoanalista.

Palabras clave: Memoria; Anacronismo; A posteriori.


ABSTRACT

The author approaches ideas brought by Fernando Novais and some Freud’s concepts, such as “a posteriori”. He also emphasizes the relevance of the free and libertarian thought for the historian and the psychoanalyst.

Keywords: Memory; Anachronism; A posteriori.


 

 

1. Numa entrevista à Folha de S. Paulo, publicada em 11 de maio de 2008, Umberto Eco diz: “Estamos em velocidade tão grande, que não existe biblioteca científica americana que cite livros de mais de cinco anos atrás. O que foi escrito já não conta, e isso é uma perda também quanto à relação com o passado. […] Essa velocidade vai provocar a perda da memória… A memória é nossa identidade, nossa alma. Se você perde a memória hoje, já não existe alma, você é um animal… diminuir a memória é renunciar a alma.” (Folha de S. Paulo, caderno Mais!, p. 4, 11.5.2008).

A belíssima entrevista de nosso grande historiador Fernando Novais, que abre este número da Revista Brasileira de Psicanálise, tem, como não poderia deixar de ser, a memória como ponto central. “Sem memória não existe gente, existe?”, pergunta ele aos entrevistadores, todos psicanalistas. E agrega: “Memória é a característica instituinte da humanização do símio”. E assim, com erudição e verve únicas, entra de chofre na questão fundante da história e da psicanálise, o acontecer humano e suas narrativas.

2. Mais que uma entrevista, o que Novais nos oferece é uma ampla reflexão– uma preciosa aula– que nos transporta desde os tempos primeiros à contemporaneidade, apontando sempre que o dizer humano é sombreado pelo anacronismo, conceito absurdamente próximo do conceito freudiano de Nachträglichkeit, a posteriori. E, com isso, traz à tona a complexidade que envolve toda narrativa humana, especialmente quando o objeto de estudo é o próprio ser humano. “O importante é tirar as conseqüências disso”, nos diz ele, enfatizando que a história (assim como a psicanálise, ajunto eu) não é ciência, apesar da historiografia moderna assim o querer. Pois ela não muda a natureza do discurso do historiador. O paralelo que se faz com a clínica psicanalítica é por demais óbvio e instigante. Especialmente se nos detivermos na diferença que Novais faz entre método e técnicas de investigação, afirmando que aquilo que se chama método em história não é metodologia. E o que chamamos método psicanalítico? Não seria também uma técnica mais elaborada?

3. “As variáveis que estão no átomo podem ser milhares, mas não são infinitas. Em um poema, as variáveis são infinitas”, diz Novais. Se lembrarmos que o próprio Freud nos alertou para o fato de que por mais que analisemos um sonho ele vai sempre nos apresentar um resto, um inapreensível, um ponto no qual ele se funde com o indizível ou o irrepresentável, o seu umbigo, vamos nos aproximar do fato de que o cotidiano do psicanalista implica numa “dangerosíssima viagem” através dos aconteceres humanos. Assim, o aqui e agora da psicanálise ganha uma nova dimensão, se considerado dentro da perspectiva histórica proposta por Novais, assim como o conceito de superego: o atavismo filogenético, a herança e a culpa primordiais derivadas do mítico banquete totêmico arremessam o ser humano a um paradoxo insolúvel, o das várias esferas da existência, cada uma delas com seus níveis de realidade: a estrutura, a conjuntura e o acontecimento.

4. A história está muito mais perto da literatura que da ciência, considera Novais. Se tomarmos o texto freudiano como paradigma do campo psicanalítico, é também para isso que ele aponta no seu constante se refazer e se recontar, propondo-se sempre como uma aproximação possível às várias esferas da existência com seus diversos níveis de realidade. Nunca como a palavra final ou definitiva. No plano conceitual, a teoria das pulsões talvez seja o melhor exemplo das transformações estruturantes de sua obra, colocando-a em constante movimento, jamais a paralisando. Daí, justamente daí, sua abrangência e força únicas, estruturadoras, que são de um pensamento original. E de uma nova práxis.

Nem o pensamento psicanalítico, nem a práxis clínica dele derivada são passíveis de serem situados dentro da ciência clássica. Daí, justamente daí, o seu potencial revolucionário. Quando Novais faz a irônica alusão às verbas para pesquisa em história, “não podemos falar que não é ciência, pois precisamos das verbas”, não há como deixar de fazer um paralelo com as grandes verbas da ipa para as pesquisas empíricas. E seriamente pensar nos rumos tomados pela política científica da ipa, na atualidade…

5. O pensamento brilhante e em constante desenvolvimento de Novais desconhece dogmas sendo, por isso mesmo, dialógico por excelência. “Clio, a musa da história, está sempre no cio”, diz ele, como que referendando esta abertura constante ao diálogo que fica evidente na forma em que as citações de outros pensadores, filósofos, sociólogos e historiadores, vão emergindo em sua fala, recuperados que são como interlocutores, nunca como argumento de autoridade. É interessante notar como Novais parece não se querer deter na importância histórica do Seminário Marx do qual foi um dos participantes. De 1958 a 1964, ele abrigou a nata dos então jovens professores paulistas, transformando-se na cozinha mesmo daquilo que veio a ser o pensamento mais lúcido e original a respeito do Brasil e do brasileiro– e das relações de um e de outro com o mundo– elaborado nas últimas décadas.

Excesso de modéstia, no meu modo de ver, mas também uma forma de não se deixar colocar no lugar cristalizado de autoridade. Uma forma muito própria de, ao responder, interpretar a transferência que, logo de início, se estabeleceu no grupo de entrevistadores para com ele… Num outro plano, é necessário enfatizar sua recusa em falar dos textos “históricos” freudianos. Alegando não ter o conhecimento necessário de Freud para tornar público seu pensamento a respeito deles, Novais nos deixa, no mínimo, curiosos a esse respeito. Mas essa é uma outra história…

 

 

Endereço para correspondência
Marcio de Freitas Giovannetti
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP
Rua Itacolomi, 601/33, Higienópolis
01239-020– São Paulo SP - Brasil
Tel.: +55 11 3159-8604
E-mail: giovanetti@uol.com.br

 

 

* Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.

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