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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.42 no.2 São Paulo June 2008

 

ARTIGOS

 

Freie Einfälle: a irrupção verbal do desconhecido

 

Freie Einfälle: la irrupción verbal de lo desconocido

 

Freie Einfälle: the verbal irruption of the unknown

 

 

Paulo Cesar Sandler*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor propõe uma análise do conceito de freie Einfälle (associações livres), conjugando a experiência clínica com uma descrição do campo semântico da expressão verbal na língua alemã. As duas permitem alcançar: 1) o paradoxo envolvido na formulação verbal de Freud; 2) a noção de determinismo psíquico como fenômeno originalmente probabilístico, determinando a forma verbal das freie Einfälle– e preciso, único, em sua indicação do fato inconsciente que o gerou: 1) de uma associação que não é racional nem tampouco de idéias expressas pelo paciente, mas se constitui no livre trânsito consciente/inconsciente; 2) de uma associação entre um estado de mente livre que possa intuir o âmbito numênico, vinculando paciente e analista; 3) de um sentido mais próximo ao de “tornar-se” e “estar uno consigo mesmo”, correspondente ao termo romântico alemão einfuhlung. O artigo é também um convite para uma conversa com estudiosos versados na riquíssima língua alemã, capacitados a avaliar a tentativa de um analista leigo nesta língua, porém interessado nela.

Palavras-chave: Psicanálise; Associações livres; Tornar-se; Estar uno a si mesmo; Movimento romântico alemão.


RESUMEN

Propongo hacer un análisis del concepto freie Einfälle (“asociaciones libres”), conjugando la experiencia clínica con una descripción del campo semántico de la expresión verbal en la lengua alemana. Las dos permiten alcanzar: 1) la paradoja alrededor de la formulación verbal de Freud; 2) la noción de determinismo psíquico como fenómeno originalmente probabilístico, determinando la forma verbal de freie Einfälle y preciso, único, en su indicación del hecho inconsciente que lo generó: 1) de una asociación que no es racional ni tampoco de ideas expresas por el paciente, pero que se constituye en el libre tránsito consciente-inconsciente; 2) de una asociación entre un estado de mente libre que pueda intuir el ámbito numénico, vinculando paciente y analista; 3) de un sentido más próximo al de “tornarse” y “estar uno consigo mismo”, correspondiente al término romántico alemán einfuhlung. El presente artículo es también una invitación para una conversación con estudiosos versados en la riquísima lengua alemana, capacitados a avaliar la tentativa de un analista lego en esta lengua pero interesado en ella.

Palabras clave: Psicoanálisis; Asociaciones libres; Tornarse; Estar uno consigo mismo; Movimiento romántico alemán.


ABSTRACT

The author proposes to analyse the concept freie Einfälle (“free associations”). The method is to match the clinical experience in psychoanalysis with a description of the semantic field of the verbal formulation in the German language. Both allow to reach: 1) the paradox involved in Freud’s verbal formulation; 2) the notion of psychic determinism as a probabilistic fact (rather than causal as it is regarded more usually than not). This probabilistic ethos of the free associations determine their form in a precise, unique way (therefore, determined) which means, truthful, as an indication of the psychic fact (or truth) which generated it. Therefore, I suggest the following vectors of the verbal formulation, to be amended by those of “flow” or “transitory flux” in perpetual motion: 1) of an association which is not rational nor the overtly explicit ideas stemming from the patient (akin to the manifest content of the dreams), but of a formulation that constitutes itself in the free transit between conscious and unconscious, mediated by the contact barrier (as defined by Freud and Bion); 2) of an association between a free state of mind which may intuit the numinous realm which links patient and analyst (the analyst’s free floating attention); 3) of an association nearer to the becoming and to be in atonement with oneself, corresponding to the German romantic concept of einfuhlung. The present study may also serve as an invitation to the scholars versed in the rich German language. They are entitled to evaluate this attempt of an analyst who is a layman in the German language, but interested in it.

Keywords: Psychoanalysis; Free associations; To become; To be at one; German romantic movement.


 

 

Salomão disse: “Não há nada de novo na face da terra”. E tanto é assim que Platão teve uma imaginação: “Todo conhecimento não passa de lembrança”. Então Salomão deu sua sentença: “Toda novidade não passa de esquecimento”.

Bacon, 1625

O erudito pode ver que uma descrição é de Freud ou Klein, mas fica cego para a coisa descrita.

Bion, 1975

 

Proponho uma análise do conceito freie Einfälle (“associações livres”), conjugando a experiência clínica a uma descrição do campo semântico da expressão verbal na língua alemã. Esta última, se tomada exclusivamente, pode arriscar superficialidade baseada em aparências– algo que a psicanálise ultrapassou– ou pode se aferrar à razão pura (no sentido dado por Kant ao termo), insuficiente para intuir os numena. A psicanálise busca se aproximar dos numena. A experiência clínica, por outro lado, embora possibilite a conceituação, não a elabora como sua tarefa precípua. Daí a presente proposta de casar os dois pontos de vista, que talvez possam ser mutuamente complementares.

Este estudo é feito por um psicanalista praticante com experiência em traduções, embora não da língua alemã; constitui-se principalmente do ponto de vista clínico sobre a linguagem.

 

Linguagem, a língua alemã e a psicanálise

A linguagem, como observou Bion (por exemplo, em Emotional turbulence, 1977), é um desenvolvimento humano que não foi criado para expressar sentimentos nem emoções. Voltaire insistia: o dom do discurso é usado para esconder e dissimular o que realmente se pensa. Freud, que a nosso ver (Sandler, 1997, 2001), vindo do Iluminismo e do Movimento Romântico, observa o paradoxo e desenvolve os insights polarizados de seus antecessores: neste esconder também se aloja a semente do revelar.

Alguns empregam a linguagem com o objetivo de elucidar a verdade (Bion, 1970, p. 3), mas isso requer não só um talento para procurar a verdade, mas também um talento para ultrapassar a concretude e sensorialização inevitavelmente embutidas na palavra. O termo “cão” abarca muito mais do que a imagem visual ou a lembrança acústica poderiam alcançar: a classe platônica “cão” se refere a todos os cachorros, a uma qualidade indefinível: “cachorrice” tem má amplitude vivencial. E o que dizer de “cãozinho”? Quantas associações pessoais poderiam ser evocadas? O cientista, como o poeta e o prosador fazem usos da linguagem que tenta abarcar esse âmbito da verdade tal como ela é.

Missão impossível. Este âmbito da mente, da realidade psíquica, das formas platônicas, dos numena, do inconsciente (cada um pode escolher o termo que lhe parece mais adequado), permanece incognoscível de modo último e, portanto, inefável: não pode ser enunciado verbalmente.

Usando as linguagens coloquiais, alguns poetas e prosadores tentaram se aproximar desse âmbito. Alcançam uma qualidade artística por meio da elaboração de símbolos cada vez mais complexos. Línguas são feitas de símbolos, e por símbolos entendemos aqui, após Gombrich (1959), representações que significam mais do que elas mesmas. Matemáticos e depois outros cientistas também elaboram sofisticados sistemas simbólicos com o intuito de representar e comunicar certas realidades que eles buscam apreender. No entanto, muitas vezes, em certos campos científicos, estes sistemas simbólicos se constituem em neologismos que cedo degeneram em jargões.

Parece-nos que algumas línguas são particularmente desenvolvidas para expressar o acontecer humano: o alemão e o russo, por exemplo. Subentende-se que este “acontecer” inclui a realidade psíquica e as tentativas de expressá-la por meio de palavras, sentimentos, emoções e afetos. Poetas e prosadores chegam mais próximos disso, e no alemão, que permite pela sua natureza uma atividade ainda mais plástica sobre a linguagem, a pessoa de certa forma “monta” palavras de um modo impossível em outras linguagens. Isso torna certos termos “válidos” sem que eles se constituam em neologismos, e geralmente pode se alcançar maior precisão comunicacional, diminuindo as penumbras de significado. Freud foi considerado notável em sua contribuição à língua alemã, pelo menos para os juízes do Prêmio Goethe de 1930.

Vamos então usar uma via de acesso, a formulação original em alemão, para examinar o termo associação livre, que nos parece aproximar-se do âmbito numênico do inconsciente. Estamos utilizando a expressão verbal “inconsciente” no seu sentido original alemão, unbewnt. Ou seja, “não conhecido” ou, mais coloquialmente, desconhecido. O uso contínuo desse termo de certa forma desgastou seu significado, afastando-o de sua raiz alemã, wissen, conhecer (como em wissenchaft, em que ciência é uma busca de conhecer). Nossa via de acesso ou ponto de vista será a língua alemã. Sendo este um encontro sobre a obra de Freud e a língua que ele usou, talvez este argumento baste para nossos objetivos. Outras justificativas para tanto, caso a escolha não pareça óbvia o suficiente, encontram-se em outro estudo (Sandler, 2000c), cuja inclusão alongaria excessivamente o presente texto.

 

Psicanálise e associações livres

Para podermos dizer se uma determinada prática é– ou não– psicanálise, Freud estabeleceu certos parâmetros, que têm sido devidamente esquecidos, caso tomemos por base o número de estudos publicados sobre eles ou que deles façam uso ou tenham ampliado aquilo que Freud observou sobre eles. Entre eles, há a percepção e abordagem em análise do triângulo edipiano e a existência do âmbito numênico ou “negativo” do inconsciente. Freud desenvolveu instrumentos para acesso e apreensão destes dois aconteceres que chamo aqui de parâmetros: 1) as expressões fenomênicas de sexualidade (o desenvolvimento psicossexual; taquigraficamente, “édipo”); 2) as associações livres e os processos oníricos.

Freud diferenciou psicanálise de movimento psicanalítico, em 1914. Este último tem sido quase invariavelmente dominado por moda (“Fashion-that cunning livery of hell”, sintetizou Shakespeare, o que pode ser vertido como “Moda, a ardilosa vestimenta do demônio”). Como tentei mostrar em outros estudos (Sandler, 1989, 1997), modas privilegiam imanências em detrimento de transcendências, confundindo mudanças necessárias devidas ao aparecimento de refutações que datam e descartam teorias pseudocientíficas com confirmações empíricas que mantêm a boa teoria científica como aquisição atemporal da humanidade. Bion e Green são vozes isoladas que não acompanham as modas; têm tentado desenterrar esses parâmetros. Eles jamais precisaram “voltar a Freud”, pois dele jamais se afastaram. Enfocaremos aqui aquilo que nos parece expressar a função poético-científica da mente, que compartilha com os processos oníricos a natureza do inconsciente: as associações livres.

Não havendo substituto para a experiência de análise pessoal para se saber o que vem a ser “associações livres”, com isso tento dizer que sem ela restam-nos abordagens imaginativas sob disfarce racional. Parece-nos que abordar o assunto a partir do vértice (ponto de vista) da língua alemã é um caminho frutífero, e o faremos de modo que tenta ser livremente associativo. Ele nos parece o mais próximo da experiência psicanalítica que podemos obter em um texto escrito, que “fala sobre” psicanálise, mas difere dela.

 

O princípio do determinismo psíquico

Não nos parece possível abordar conceitualmente o fato, “associações livres”, definido como método fundamental da psicanálise, desconsiderando o princípio do determinismo psíquico. Além da experiência clínica, este me parece o fator isolado na maior parte das dificuldades em se apreender o ethos do termo– que se confunde com o próprio ethos da psicanálise.

Um détour: língua alemã e psicanálise são, hoje em dia, indissociáveis da obra de James Strachey, Alix Strachey e Joan Rivière. Eles tentaram transportar (ou “transcriar”, no neologismo proposto pelos irmãos Campos, Augusto e Haroldo, para se referir a traduções e versões de textos em línguas diversas da original) o ethos psicanalítico para a língua inglesa. A generosidade de seu trabalho só pode ser comparada à magnitude do desprezo e dos ataques que este mesmo trabalho tem sido alvo. Será esta uma curiosa confirmação empírica das observações de Klein sobre a inveja que o bebê ávido pode ter, em relação ao seio que o alimenta? Na analogia, o movimento psicanalítico é o bebê; esta obra, o seio. Exceções honrosas como as tentativas de Ilse Gubrits-Smitis confirmam a regra. Por reconhecer o valor desta contribuição, cito, a respeito de determinismo psíquico, uma das cuidadosas e lúcidas introduções de Strachey:

[…] houve outra crença fundamental de Freud que era alicerçada de modo convincente através do exame das parapraxias: havia uma aplicação universal do determinismo aos eventos mentais. Esta é a verdade na qual ele insiste até os capítulos finais do livro: em teoria, seria possível descobrir as determinantes psíquicas até mesmo dos mínimos detalhes dos processos da mente (Strachey, 1960, p. xiii e xiv).

Esta é a regra prática, não apenas teórica, de tudo em psicanálise. Assim como na natureza e na ciência (principalmente na matemática; Sandler, 1997), nas quais tudo tem uma função, as determinantes do determinismo psíquico se baseiam no belo, na simplicidade e na função.

Nada do que um paciente fala na sessão é isento de função, que pode ser detectada e submetida à reflexão e comunicação. Isso não implica que tal tarefa seja possível e total; também na natureza há a imensa maioria de fatos que existem, mas ainda não conhecemos sua função. A ignorância humana a respeito dela não é evidência de sua inexistência– é apenas estímulo ao prosseguimento da investigação científica ou artística.

O conceito de determinismo psíquico tem sido alvo de muitos mal-entendidos e distorções; o primeiro deles creio que seja tentar filiá-lo ao positivismo, que me parece uma apreensão concretizada e superficial do conceito (Sandler, 1997). O determinismo psíquico na obra de Freud é importante na medida em que tais determinantes são inconscientes. “São portanto destituídos de causalidade; os determinantes são veículos ou apontadores do inconsciente, modos de acesso a ele e provas de sua existência” (Freud, 1901b, p. 239). Até o ponto em que posso perceber, é necessário enfatizá-lo: não há causalidade envolvida neste uso. O termo “apontador” pode ser usado como em cinofilia: há os cães pointers, que apontam a caça. A detecção dos determinantes psíquicos, assim como a detecção moderna da alucinação na vida cotidiana, tornada possível após o trabalho de Bion (notadamente em Transformações e em A memoir of the future), é um meio, não um fim prático, tampouco origem teórica.

As “idéias dotadas de objetivo”, alicerce básico de toda a psicanálise, na tradução inglesa, purposive ideas são aleatórias e selecionadas naturalmente no inconsciente em sua origem. Depois de formadas, perseguem esse objetivo e se manifestam na superfície dos fatos ocorridos (tanto na vida real como na sessão de psicanálise, amostra representativa desta vida real), contendo informações a respeito desses objetivos– e são aquilo e nenhuma outra coisa. É neste sentido que são determinadas. O determinismo psíquico em Freud diz respeito à possibilidade de constatação científica de algo real– ver os fatos tais como eles são, além do caos.

Dada minha impossibilidade pessoal de expressar o que Freud escreveu tão bem quanto ele, acrescido da disponibilidade de seus textos, cito alguns dos trechos que podem ser encontrados em sua obra a respeito de “determinismo psíquico”. O leitor precisa ter em mente que o “experimento de associação” citado por Freud neste texto refere-se às tentativas de dar uma forma científico-experimental às associações livres, introduzidas por Eugen Bleuler e seu então aprendiz Carl G. Jung, na Suíça, a partir da constatação de Freud. Eles padronizavam certos vocábulos, e pedia-se ao paciente que associasse algo a eles.

Todo um grupo de ações que eram vistas como isentas de motivação são, muito ao contrário, estritamente determinadas, e nesta medida contribuí para que se restringisse o fator arbitrário em psicologia… Pequenos atos que são levados a cabo aparentemente de modo casual e sem objetivo… revelaram-se “ações sintomáticas” vinculadas a um significado oculto cuja intenção era fornecer uma expressão que mantivesse tal significado fora da área perceptiva. A partir do momento que se pode familiarizar com esta visão do determinismo na vida psíquica, fica-se justificado em inferir, a partir das observações da psicopatologia da vida cotidiana, que as idéias que ocorrem ao sujeito no experimento de associação não podem ser arbitrárias, mas são determinadas por um conteúdo ideacional que está em contínua operação dentro do indivíduo (Freud, 1906, p. 104-105).

Freud estava tentando expressar a possibilidade de o analista se manter em contato constante com a realidade psíquica; ele buscava por suas manifestações. Em sua observação, pode-se constatar uma clara discriminação. De um lado, o que ele chama de “arbitrário”. Em nossos tempos, isso se traduz pela defesa relativista e idealista de uma teoria do caos mal-apreendida; caracteriza o “pós-modernismo” e a “hermenêutica”, que produz um “vale-tudo” interpretativo. Esse caos dos pós-modernos caracteriza arbitrariedade; não se pode confundi-lo com probabilidade. Na mente, como em um evento probabilístico qualquer, depois que um fato ocorreu, ele pode ser observado e constatado– é totalmente determinado, independentemente de sua origem indeterminada.

Quando os dados são lançados e um número é obtido, aquele número não é indeterminado. O determinismo psíquico para Freud é sinônimo de dizer: “A mente existe”– não é ligado a nada de causas. “Arbitrário”, por sua vez, embora possa dar margem a uma interpretação de probabilidade, constitui a verdadeira causalidade.

Os processos mentais são determinados; encontrei-me impossibilitado de crer que uma idéia produzida por um paciente, enquanto sua atenção estava diminuída, pudesse ser arbitrária e não relacionada à idéia que estávamos buscando (Freud, 1909, p. 29; grifo de Freud).

Como vocês podem ver, os psicanalistas são marcados por uma estrita crença na determinação da vida mental. Para eles, não há nada trivial, nada arbitrário ou ocorrido devido à própria sorte. Eles esperam encontrar em cada caso motivos suficientes com os quais, como regra, não se levantariam tais expectativas. A rigor, os psicanalistas estão preparados para descobrir muitos motivos para uma mesma ocorrência mental, e o que parece ser nossa ânsia inata por causalidade declara-se satisfeita com uma causa psíquica isolada (Freud, 1909, p. 38; grifos de Freud).

Freud delineava nesse texto aquilo que Bion iria denominar muitos anos depois de invariância: uma mesma ocorrência mental em que há “vários motivos”, a satisfação com a causa isolada; o grifo de Freud se dá nessa palavra (Bion, 1965).

Freud tinha exata noção de contingência e necessidade, naquilo que em algumas ocasiões denominou “séries complementares”:

A proporção dos fatores determinantes de nossa vida, entre as “necessidades”: de nossa constituição e as “chances” de nossa infância podem ainda parecer incertas em seus detalhes, mas, em geral, não é possível continuar duvidando da importância dos primeiros anos de nossa infância (Freud, 1910, p. 136).

[…] o que acontece ao sonhador em resposta ao elemento onírico vai ser determinado pelo pano-de-fundo psíquico (que nos é desconhecido) daquele elemento em particular (Freud, 1915-1917, p. 109).

O determinismo não é uma causano inconsciente, mas do inconsciente. Este é um aspecto muito delicado, que muitas vezes se confunde com “leituras”– novamente estamos com as nuvens relativistas do idealismo pós-moderno, que as defende ferrenhamente. Leituras são possíveis para o erudito que permanece cego para a coisa descrita, como disse Bion (1975, p. 9). Caso Freud fosse um mau escritor– algo que ele provavelmente não era, já que chegou a ganhar aquele prêmio de literatura que mencionamos acima– ou estivesse dando margens a interpretações ou leituras, por que se iria amofinar em escrever e reescrever e reformular?

Caso estejamos de acordo que o determinismo que Freud enfatiza é do inconsciente, ou seja, deste para os sonhos, sintomas, as manifestações fenomênicas, etc., pode-se perguntar: o que determina o inconsciente? As observações de Freud são claras a respeito: os instintos e as repressões. E as que determina? O embate entre o princípio da realidade e o princípio do prazer/dor/dor. De modo simultâneo, os instintos são biologicamente determinados, enraizados na sobrevivência da espécie, e pode-se falar com facilidade de determinismo também aqui. Antes de eles terem sido determinados, tudo foi caos e probabilidade, mas a partir do momento que se formou a espécie humana, há um determinismo de funções. Uma vez liberada, a energia das partículas descritas pela mecânica quântica é totalmente determinada.

E qual é a função do determinismo psíquico? Ele produz um novo ciclo de indeterminismo: …indeterminismo determinismo indeterminismo determinismo indeterminismo determinismo…: as associações livres. O determinismo psíquico em Freud traz em si o gérmen de novo indeterminismo, na medida em que as associações livres em uma sessão de análise, nossa verdadeira e última ferramenta de trabalho, são sempre uma viagem ao desconhecido.

A probabilidade ocorre; e percebida, estudada e aproveitada na matemática, na mecânica quântica, na genética mendeliana e naquela estabelecida por Jaques e Monod, atualmente praticada. Ela ocorre dentro da mente individual em termos de seleção natural, portanto determinística e errante ao mesmo tempo. “Intuição” (a respeito do si mesmo, só adquirível por meio do aprender com a experiência) é o termo que vai definir a seleção natural dentro da mente individual: que “pensadores” (unidades componentes das associações livres, previstos nebulosamente e imprecisamente sob nomes tão diversos como as mônadas de Leibniz, perceptos de Descartes e Locke), por serem realísticos e não delirantes, vão vingar, sobreviver e captar os pensamentos. Assim como no grande universo e na vida na Terra, sobrevivem às espécies mais adaptadas à realidade tal como ela é. Para os dinossauros, constituiu um verdadeiro delírio da natureza todo seu preparo com carapaças fortíssimas, altas tonelagens e presas e rabos longos, quando a realidade tal como ela era, advinda de algum cataclismo (probabilístico, indeterminado!) cósmico determinante (não mais incerto nem probabilístico) que as regiões geladas derretessem.

E derreteram. Os primitivos povos pensaram que se tratava de um dilúvio, e o ser humano, alicerçado naquilo que era, naqueles tempos, uma mínima probabilidade, tem dominado o planeta desde então. Na mente humana, isso ocorre a cada milésimo de segundo ou talvez a um tempo ainda infinitamente menor, provavelmente quântico, com toda probabilidade infra-quântica, ainda desconhecida, provavelmente inatingível, a julgar pelos progressos nos estudos dos neurotransmissores. A sobrevivência do mais forte, ao contrário da bestial distorção denominada “darwinismo social”, refere-se ao mais forte que seja mais verdadeiro, quer dizer, tudo aquilo que não se trate de algo que nossa mente tenha meramente fabricado, mas que nossa mente capte, que não esteja contaminado por idéias onipotentes de verdade absoluta, tudo aquilo que não tente impor à realidade aquilo que as leis do nosso desejo (princípio do prazer/dor) tentam impor.

Verdadeiro no sentido de conter amor e ódio (sentido de verdade), tentativa, engano, humildade, princípio da realidade a respeito de nós mesmos e de nossa falibilidade e pequenez. A intuição daquilo que serve para cada pessoa, naquele momento.

 

Associações livres, tornar-se, estar uno a si mesmo

Temos sugerido (Sandler, 1997, 2001, 2003) que uma postura básica do analista é sua possibilidade de tolerar paradoxos sem tentativas apressadas de resolvê-los. Associação livre é um nome paradoxal em nossa língua, vertido de modo direto e respeitoso do inglês, que conserva o ethos da expressão alemã, freie Einfall: é livre e simultaneamente éassociação; portanto, a um só tempo, livre-ligada: em uma formulação admiravelmente sintética, a percepção de Freud. Este médico que trabalhou em Viena foi alguém, na história do conhecimento e das tentativas de auxiliar outros alguéns, conseguiu suportar algo a respeito do paradoxo indivisível de ser e tornar-se, imanente e transcendente.

Na livre associação, conjugam-se constantemente mente e formação de imagens (“regressão”, na hoje pouco usada definição de Freud do item b, capítulo 7 de Die Traumdeutung), o mistério do pensar em forma compactada. Não vamos desenvolver aqui uma teoria do pensar como ela pode ser vista na formação das freie Einfälle, mas apenas assinalar onde a língua alemã nos ajuda a penetrar um pouco no seu ethos– a nosso ver, o próprio ethos da psicanálise.

Livre associação não é uma turbulência isenta de sentido, “salve-se quem puder” ansiolítico, justificativa para eclosões ligadas ao princípio do prazer/dor que redundam em falatórios por anos a fio, sem haver análise, denegrimentos de psicanálise, inclusive socialmente, alicerçando o pobre conceito que dela fazem determinadas pessoas ou grupos, justificativas de laissez-faire, laisser-aller, algo comum que tem tomado o nome de psicanálise. Muitos pacientes– e infelizmente, analistas também–, em nome de manifestações típicas do princípio do prazer/dor e da posição esquizo-paranóide, travestem por exemplo de “acolhimento” e/ou “maternagem” o que a rigor é sedução, necessidade de preencher um agendamento (luta pela sobrevivência), simples desinformação, ingenuidade e em certos casos pura má-fé: imaginam que associação livre é tudo que venha na cabeça do paciente.

Com os esclarecimentos de Klein a respeito de identificação projetiva e das fantasias de expelir a própria mente, ficou mais claro que desordenações indisciplinadas, nas quais palavras são mísseis, não constituem associações livres. A associação livre, como disse Strachey, é “algo relacionado ao assunto designado”, ou seja, determinado (Strachey, vol. 18, 1920). A associação livre em si, na sua forma, surge do inopinado, do desconhecido, é indeterminada. Uma psicanalista experimentada da década de 50, a dra. Frieda Fromm-Reichmann havia-se analisado com Freud e depois emigrou para os Estados Unidos indo trabalhar no então famoso William Alanson White Institute, de Harry Stack Sullivan, dedicando-se à terapia com esquizofrênicos. Ela recomendava enfática e formalmente (Fromm-Reichmann, 1950) que não se provocassem associações livres segundo o “experimento de associação” de Bleuler com psicóticos diagnosticados de esquizofrênicos, pois estes, segundo ela, poderiam ter um surto desencadeado nessas condições; na melhor das hipóteses, o material produzido era impossível de ser analisado. Era um modo primitivo de perceber que não se estava lidando com associações livres genuínas, mas com um delírio em que tudo é possível. Em consultório, estas formas passam por “contenção”, acolhimento, humanidade, por serem socialmente nubladas e dependerem de conluio com valores do analista. Da parte do analista, muito do que passa por “atenção flutuante”, o estado de mente do analista que lhe possibilita acesso às suas próprias associações livres, precisa ser diferenciada de contratransferência– algo só possível em análise pessoal do analista.

O mecanismo evolutivo das espécies descrito por Darwin compõe em uma dessas descrições transdisciplinares em que se isolou algo real e verdadeiro, válido para qualquer nível de observação que se considere. Vale para o funcionamento mental em sua intimidade mais profunda, sensivelmente captado por Freud: o desenvolvimento ontogenético de uma pessoa, desde que ela é criança, e para os que podem sobreviver pode adquirir verdadeiramente algum grau de maturidade, relativo à civilidade da avidez e da inveja alimentadas pelo princípio do prazer/dor e desafiados pelo princípio da realidade.

Vida é a contrapartida real, não concreta, da sobrevivência, que é sua contrapartida concreto-sensorial. As duas são a mesma coisa, no monismo perseguido pelas religiões mais antigas, recuperado em Psicanálise por Freud, Klein e Bion; mas limitações tanto de percepção (e de aproximação a “O”), como de discurso tal como ele é possível ao ser humano hoje em dia, impedem-nos de dizer que mesma coisa é esta. A ausência de maturidade significa morte mental tal como se verifica nos fanáticos religiosos ou subservientes institucionais de qualquer espécie. O mecanismo evolutivo é claramente visível em uma sessão de análise. Certas pessoas amadurecem, percebem limitações de sua onipotência, atingem o que Melanie Klein denominou de posição depressiva, por segundos que seja, suportam o paradoxo da volta à posição esquizo-paranóide; suportam a labuta diuturna do novo, tanto no pensamento onírico diurno (Bion, 1959a, b, c, p. 44, 50-59, 63), como dos sonhos noturnos (Freud, 1900), do casamento com a realidade, com o analista, com aquilo que é falado na sessão e abre, por vezes explosivamente, em regra inusitadamente, raras vezes evolutiva e anunciadamente, sempre sem regra, algo que não era conhecido até então.

Algo assim como pessoas que jamais praticaram esporte ou jamais tocaram um instrumento, ou fazer novos amigos, mas podem começar, por exemplo, quando são adultas– e se desenvolver nisso no novo dia. A Força libertária que se resume no mistério da vida, presente em todas as espécies, referida por Darwin, possibilita o surgimento de ainda novas associações livres, novas captações de pensares, novas aquisições. Essa força libertária, presente nos espermatozóides o no óvulo, representando algo muito próximo a “O”, mais próximo do que quase tudo que o ser humano conseguiu chegar até hoje (como E=mc2 e os outros exemplos já citados), está presente nas concentrações inomináveis e incalculáveis de energia dos buracos negros, está presente na conversa de um analista e de um paciente que possam esperar e aguardar até que sua intuição feminina e sua potência masculina “escolham”, exerçam esta “força”, “o todo poderoso amor”, na formulação do poeta Gilberto Gil, associem livremente a nova associação livre.

Mantém-se nisso, em uma espécie de historicidade, o processo de rede contínua que se continua enquanto há vida. Muitos se espantam com análises longas– se for análise mesmo, não é longa. Esses qualificativos não são adequados para assuntos de psicanálise– não por elitismo ou esoterismo, mas pelo fato de qualificativos serem inadequados para qualquer coisa que seja Natural ou relativo à vida tal como ela é. Excetuando-se qualificativos de apreciação (“ácido”, por exemplo, em confronto com “bonito”). Qualificativos advêm de julgamentos arbitrários, qualidades criadas frente a padrões criados, geralmente alucinatórios. Uma psicanálise é eterna enquanto dura. Não admite, em uma espécie de reserva ecológica ou de preservação de espécies em pleno século xx, da percepção que o tempo absoluto é uma invenção de nossa imaginação, fruto de nossa pequenez. Excetuando casos de conluio alucinatório, conversa socialmente orientada travestida de psicanálise (imitação concreta de psicanálise), inconsciência, análise é possível quando e enquanto há vida.

Alcançar uma associação livre, perceber-se qual um artista o que ocorre no instante que ocorre é a possibilidade, quando se abandona a crença calmante do já conhecido, do já localizado, do já ocorrido. O princípio do prazer anseia o futuro, sempre o futuro, o estado de não frustração; o princípio da realidade se impõe mostrando que as coisas são como são, e podem ser percebidas ou até certo ponto usadas, ainda que incompletamente. A velocidade da luz é deste modo e não é de nenhum outro; pode-se usá-la de alguma forma.

1)  Qualquer coisa que possa ocorrer, vai acabar ocorrendo. Embora isso possa ser enxergado como “destino” ou “fatalismo”, em psicanálise, Freud sempre ressaltou um dos ensinamentos que obteve de Charcot, ou seja, a possibilidade de aguardar-se, observando até que um padrão surgisse. A “associação livre”, talvez o fundamento mais íntimo do funcionamento mental que se conhece até o momento, é uma expressão disso.

2)  Paradoxalmente a “1”, qualquer coisa que possa ocorrer, pode igualmente não ocorrer– nunca.

Quando falamos em “seleção natural”, “E=mc2”, “buraco negro”, em relação ao grande universo; e “inconsciente”, “associação livre”, “fantasia inconsciente”, “posição esquizoparanóide e depressiva”, em relação à realidade psíquica, estamos praticando essa descrição dotada de brevidade e síntese que consegue dar conta da complexidade. Faz-se uma espécie de compressão. Um psicanalista experimentado recomendava que as interpretações, para terem um mínimo de eficácia psicanalítica, que em última instância se trata de uma eficácia epistemológica, pois a tarefa é somar, acrescer insight, e o paciente vai poder saber algo a respeito de algo que ele não sabia, precisa ser simples, breve e concisa– e dita em uma linguagem que o paciente possa compreender (ele precisa compreender a linguagem pela qual a interpretação é feita, não a interpretação). Premidos pelas necessidades práticas, os psicanalistas perceberam, antes dos matemáticos, a necessidade de “compactação”. A aquisição desta exige anos de análise– não é um assunto teórico ou algo que se adquira em livros. As freie Einfälle podem fazer esse trabalho de compactação e síntese de algo que “jorra” do inconsciente.

Muitos pacientes esforçam-se por fornecer relatos conexos por lógica ou reter-se em um assunto durante a sessão de análise. Imaginam-se colaborando, quando, a rigor, estão demonstrando o medo ao desconhecido, o medo à associação livre, o ódio à realidade psíquica e um ataque à sua própria criatividade. A associação livre é randomicamente governada. Em minha experiência, quando os pacientes praticam isso– e essa prática ocorre com alta freqüência–, o que está em jogo é medo. Obviamente, qualquer conluio do analista que deseje se envolver em redes lógicas, resolver rapidamente o assunto ou em função de qualquer outro fator pessoal dele, pode fechar o ciclo, e as associações verdadeiramente livres não vão emergir. É nesse sentido que o analista precisa colaborar para que as condições de uma análise se façam por existir, analogamente a um físico que utiliza um acelerador de partículas ou uma esfera de captação de nêutrons mergulhada nos mares gelados.

Se o analista pode aguardar, sem atribuir sentidos imediatos ou se prender no sentido que o paciente queira imprimir, emergirá algo do desconhecido. Subjacente, enterrado “arqueologicamente” como cedo intuiu Freud a respeito do inconsciente, sob os vários caminhos possíveis, representados, por exemplo, pelos vários relatos verbais que os pacientes fazem durante uma sessão, de assuntos aparentemente desconexos, repousam “espaços-fase” estáveis, muitas vezes da compulsão à repetição, muitas vezes de traços reais daquela pessoa, os quais fazem com que ela seja ela e nenhuma outra. Constituem situações nas quais o sistema da “dinâmica não linear” da mente comporta-se, mesmo que de modo rápido e fugidio, de um modo que pode ser caracterizado como um ciclo regular, antes de cair no caos probabilístico logo depois. Esta situação vale tanto para o grande universo, como para os fenômenos descritos na mecânica quântica, como para a atmosfera, o que for. Melanie Klein descreveu esse movimento como PS D, e penso que neste momento podemos ter um lampejo da acuidade e penetração de sua descrição, dado o fato de que ela data de 1946 e que os estudos da teoria do caos são da década de 80. Freud havia tentado formular o mesmo fenômeno, com um dos aspectos menos aceitos, até hoje, de suas observações: o instinto de vida e o instinto de morte, que são a rigor a mesma coisa. Mas o fato elementar e básico é o mesmo, em qualquer nível que se considere.

As redes de associações livres emergentes em uma sessão de análise, quando o analista é abstinente o suficiente para permiti-las, são uma espécie de “seguro contra a lógica racional”, o pensar linear ligado a localizações espaciais, relações de causa e efeito e separações entre mente e matéria da tradição aristotélico-cartesiana da mente ocidental. Quanto mais lógica a comunicação, mais longe do inconsciente estamos. Quanto mais livremente associativa, mais perto dele podemos ficar.

Mas o termo em português e em inglês talvez deixe a desejar quanto a expressar de modo que me parece tão claro que o termo em alemão expressa o fato. Luiz Alberto Hanns (1996) assinala que o termo pode ser usado adequadamente de moto conotativo (na melhor das hipóteses, eu acrescentaria). Uma das formas pelas quais se compreende o termo acaba significando algo oposto a seu sentido original: ele se referiria a cadeias associativas, que bem se poderiam chamar “associações presas”.

Minhas investigações quanto à língua alemã coincidem quase totalmente com os precisos (penso que científicos) registros de Hanns em sua obra Dicionário comentado do alemão de Freud. Remeto o leitor a esse dicionário (p. 270 e segs.) para os significados da palavra, pois desconheço modo melhor de expressá-los. A diferença de minha proposta constitui-se em alguns acréscimos provenientes da experiência clínica.

Ein , além do significado de “dentro” ou “penetrar”, também quer dizer, “um”, a conotação aritmética. Quanto a fallen, ressalto, dentre os significados apontados por Hanns, o de “cair” (como no inglês, fall) e o de um fluxo irruptivo, vivo; ambos podem ser vistos clinicamente. A imagem poderia ser de fall, “outono”, quando as folhas caem naturalmente da árvore que as gerou.

O termo se refere ao trânsito consciente-inconsciente. Algo “cai”. “Cai” do inconsciente para o consciente, de modo probabilístico; o ein lhe dá uma forma única, pois é aquela associação– e nenhuma outra– que adquiriu forma na consciência para poder ser pensada. O termo duplo em alemão dá o sentido associativo, “um que cai”. O determinismo se refere a uma ligação da imagem (ou palavra) com o inconsciente, ligação única biunívoca com algo real do inconsciente. A probabilidade se dá no modo formal; quais restos diurnos no sonho exercem a função análoga à da bricolagem.

Um dos fatores clínicos que me parece essencial se refere ao fato de o sentido “associação” não se restringir a um pensamento associado a outro de modo lógico. Isso poderia ser indicado pelo termo assoziation. A experiência real de análise pode prover a intuição para se perceber a natureza onírica das livres associações: a associação é com o inconsciente; mais precisamente, de um momento em que ocorre um livre movimento entre consciente e inconsciente. A einfall tenta descrever um funcionar do inconsciente e uma função da consciência, definida por Freud como o órgão sensorial para a apreensão da qualidade psíquica (cap. 7, itens C, D e F de A interpretação dos sonhos).

Não se trata então de associação lógico-racional entre as várias frases e palavras emitidas ou faladas, fato que poderia ser mais bem descrito pelo termo alemão assoziation. Não é uma associação discursiva. Trata-se de uma associação vivencial no aqui e agora, é uma emanação do inconsciente vivificada no ouvir do analista. A função do analista é sempre enfatizada por Freud, no que se refere tanto ao ambiente que permite ao paciente ter suas freie Einfälle, como na necessidade imperiosa de interpretá-las para que elas continuem surgindo. Realmente, a experiência mostra que se o “analista conversar com o paciente de modo que alcance algo de seu inconsciente, a conversa flui e a associação, além de se dar do inconsciente para o consciente, também se dá entre o que o analista fala e o que o paciente fala”.

Isso é absolutamente claro em vários estudos, dentre os quais destaco A dinâmica da transferência, de 1912, e A repressão, de 1915; a natureza inconsciente das Einfällen fica explícita em muitos outros, desde o início, como A psicoterapia da histeria (1895), permanece (por exemplo, em O inconsciente (1915) e se mantém inalterada até o final (“Análise terminável e interminável”, Um esboço de psicanálise e Construções em análise), quando adquire inclusive o poder de validação empírica, do status científico da interpretação do analista. Da atenção livre flutuante do analista é que se possibilitam mais associações, sendo a primeira o equivalente delas na mente do analista. Um estado de mente livre, frei, mas ao mesmo tempo “ligado”, naquilo que existe, que é (na realidade psíquica). Ou, na formulação posterior de Parthenope Bion Talamo, “uma intensa atenção em nada em particular”, no qual o ethos psicanalítico é recuperado pela obra de seu pai, Wilfred Bion.

Freie Einfälle têm a mesma natureza do conteúdo latente, outro conceito freqüentemente expresso de modo diferente daquele que Freud criou; na acepção original, o conteúdo latente é uma construção a dois, analista e analisando, advinda dos sonhos relatados e das associações livres, tanto do analista (que as retira de sua experiência prévia com o paciente e de seus inquéritos), como do paciente a este sonho. A análise semântica– tanto do termo em alemão como do fato freie Einfall durante a sessão– alcançaria apenas o conteúdo manifesto das freie Einfälle. Na vida real de um analista e de um paciente, um sonho inteiro, por exemplo, pode ser uma associação livre. Freie Einfall– “uma cai”, “uma jorra”, literalmente– pode ser captada, inicialmente, pelo paciente.

Outro acréscimo advindo da clínica diz respeito a outro sentido profundo da palavra Einfall, sobre um sentido muito preciso do fluxo ou jorro: é para dentro do próprio indivíduo pensante, quando ele pode praticar introspecção; trata-se de algo inconsciente e relaciona-se à pessoa poder ser, ou como diz Bion, “tornar-se” quem ela é (Bion, 1965). Para captar esse sentido, advindo exclusivamente de prática clínica, podemos apelar para o termo em alemão einfuhlung para visualizá-lo. Ele fornece a dimensão individual que mais caracteriza a psicanálise: um estado de autocontato, que pode ser traduzido como “estar uno consigo mesmo”. Até o ponto que pude investigar, apenas três autores usam o termo, que nos ajudaria a apreender o que vem a ser uma “associação livre”: Freud e Ferenczi, que usam o termo einfuhlung, e Bion, que a usa em inglês, atonement (Bion, 1970, 1977; Sandler, 2005). Daí a importância central do conceito para Freud, de colocá-lo como uma “regra fundamental da psicanálise”.

 

Os termos e o que eles não revelam

A questão não me parece de forma nenhuma se ligar a alguma necessidade de reformar o termo em português ou em outra língua. Em princípio, como me expressei em outras ocasiões (na revisão do Dicionário de psiquiatria de Campbell, 1986), termos consagrados pelo uso, mesmo que criticáveis, não devem ser substituídos, pois o risco de confusão é considerável e geralmente o uso justificável pelo erudito é rejeitado pelo usuário; basta ver o destino de palavras como ludopédio, delusão e muitas outras. A questão é captar o ethos do termo. A rigor, muitas pessoas podem chamar-se “João”, mas quem conhece um João não vai confundi-lo com outro, e isso independe do nome. O conhecimento em psicanálise só pode ser obtido por meio de análise pessoal; isso talvez ilumine o fato de haver multiplicidade de entendimentos de muitos termos.

Se o presente estudo puder contribuir para a apreensão que me parece corresponder ao original, talvez ele seja de utilidade para psicanalistas; fica como convite para uma conversa para aqueles estudiosos versados na riquíssima língua alemã, capacitados a avaliar a tentativa de um leigo interessado.

 

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Endereço para correspondência
Paulo Cesar Sandler
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP
Rua Gomes de Carvalho, 892, cj. 31/32
04547-003– São Paulo SP - Brasil
Tel.: +55 3045-0115
E-mail: sandler@uol.com.br

Recebido em 18.6.2007
Aceito em 10.10.2007

 

 

* Analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP; mestre em medicina pela USP; psiquiatra pela AMB; sócio honorário da Academia Lancisiana de Medicina (Roma).

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