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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.42 n.2 São Paulo jun. 2008

 

ARTIGOS

 

Suspensão corporal e as três dimensões da intercorporeidade

 

Suspensión corporal y las tres dimensiones de la intercorporeidad

 

Body suspension and the three dimensions of the intercorporealty

 

 

Daniel Rodrigues Lirio*

Sociedade de Psicanálise de Brasília

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo focaliza a suspensão corporal, que consiste na elevação de uma pessoa por meio de ganchos cravados em sua pele. Essa prática é um fenômeno tipicamente contemporâneo e, facilitada pela internet, tem-se difundido intensamente no mundo ocidental. Para compreendê-la, utilizamos uma escuta psicanalítica para ressaltar a dinâmica da relação entre as personagens típicas de um evento de suspensão: a pessoa suspendida, a pessoa que suspende e a platéia. Pretendemos, então, enfocar o caráter intersubjetivo dessa intervenção corporal e, para tanto, utilizamos a noção de intercorporeidade. O seu desenvolvimento inspira-se em instrumentos já utilizados para pensar a intersubjetividade: a condição fusional mãe-bebê, a empatia, o voyeurismo, a relação especular e a mediação simbólica.

Palavras-chave: Alteridade; Corpo; Pós-modernidade; Dor; Intercorporeidade.


RESUMEN

Este artículo enfoca la suspensión corporal, consistente en la elevación de una persona a través de ganchos clavados en su piel. Esta práctica es un fenómeno típicamente contemporáneo que, facilitado por la internet, se ha difundido intensamente en el mundo occidental. Para comprenderla, utilizamos una escucha psicoanalítica destinada a resaltar la dinámica de la relación entre los personajes típicos de un evento de suspensión: el suspendido, el que suspende y la platea. Pretendemos, así, destacar el carácter intersubjetivo de esa intervención corporal y, con esta finalidad, utilizamos la noción de intercorporeidad. Su desarrollo se inspira en instrumentos ya utilizados para pensar la intersubjetividad: la condición fusional madre-niño, la empatía, el voyeurismo, la relación especular y la mediación simbólica.

Palabras clave: Alteridad; Cuerpo; Posmodernidad; Dolor; Intercorporeidad.


ABSTRACT

This article focus on the body suspension, which consists in the elevation of a person by means of hooks pierced on the skin. This practice is a tipical contemporary phenomenon and, facilitated by internet, has been intensely diffused over the western world. In order to comprehend it, we use a psychoanalitical aproach to emphasize the relation dynamics among the typical actors of a suspension event: the suspendee, the suspender and the audience. In order to focus the intersubjective basis of this body intervention, we use the notion of intercorporealty. Its development is inspired on tools already used to comprehend the intersubjectivity: the fusional condition mother-baby, the empathy, the voyeurism, the specular relation and the simbolic mediation.

Keywords: Alterity; Body; Post-modernity; Pain; Intercorporealty.


 

 

Deitado de bruços em uma cama dura, ele sente o forro de papel áspero e branco, dizendo que tudo está muito limpo e muito branco. Sem camisa, ele sente um vento frio escapar pela janela e anunciar as primeiras horas da noite. Ouve um zumbido de abelhas, que mais parece pessoas cochichando um segredo, o qual ronda seus ouvidos em uma mensagem secreta e clara. Sua pele, bem sabido, aguarda em uma quentura desconhecida, antecipando o frio afiado e brilhante de ganchos virgens e profanadores.

Carlos, nosso protagonista da noite, está prestes a passar por uma experiência intrigante, intensa, complexa e, de alguma forma, misteriosa. Em breve, ele sentirá a agulha lhe morder a carne e um fio quente escorrer por suas costas; depois, será conduzido pela maca trepidante a uma sala grande, de teto alto e cheia de olhos orgânicos e mecânicos. Ele sentirá sua pele puxar, puxar, a tensão aumentará, muito. Daí pra frente, não sabemos o que acontecerá; suas sensações e sentimentos lhe pertencem, e só a ele.

Essa prática– digamos– inusitada é mais comum do que imaginamos e ocorre com freqüência nas grandes cidades brasileiras. É conhecida como “suspensão corporal” e consiste, grosso modo, em elevar uma pessoa por meio de ganchos cravados na pele. Originalmente um ritual de hindus e de índios americanos, foi retomada na década de 60, nos eua, por Fakir Musafar, integrante do grupo Modern Primitives, como parte da pesquisa e difusão de intervenções corporais (Vale & Juno, 1989). Atualmente ela é praticada por milhares de pessoas no mundo todo e está intrincada na cultura da modificação corporal ou cultura “mod”, com piercings, tatuagens, implantes, brandings etc.

Comum aos olhos dos praticantes, os primeiros contatos causam muito espanto e instigam freqüentemente a pergunta: “Por que fazer isso?”. Essa pergunta marca, de início, o lugar do estranhamento, o lugar de quem fala do ponto de vista da racionalidade e busca, na intencionalidade das atitudes, a baliza para a compreensão dos fenômenos humanos. Da mesma forma, se alguém se preocupasse em perguntar por que uma mãe olha nos olhos do bebê e sorri, por que um pai pega seu filho no colo, por que um homem abre a porta a uma mulher, poderia ouvir: para demonstrar afeto, para a criança se sentir protegida e não precisar andar, para ser cordial– são respostas para quem busca nos atos a razão, a explicação. Certo desconforto com as respostas encontradas pode nos levar, contudo, a outras estratégias investigativas.

Outra aproximação dos fenômenos– mais psicanalítica– seria questionar não o “porquê” de uma determinada prática, mas o complexo de afetos nela imbricado, o que diz do praticante, que tipo de relação ela institui, em que lugar ela coloca os outros envolvidos e que subjetivação ela promove no corpo dos adeptos. Aqui também nos deparamos com impasses, em virtude das diferentes possibilidades de leitura da obra freudiana. Novamente, um determinado enfoque implica a escolha de um determinado caminho investigativo.

Em alguns momentos de sua obra, mais próximos do Projeto para uma psicologia científica (1895), Freud caracteriza os vínculos afetivos como investimento, catexia ou ocupação (Besetzung) de energia psíquica na representação ou idéia (Vorstellung) de um objeto, constituída por um conjunto de imagens advindas da percepção. Um entendimento do psiquismo com base nessa perspectiva apontaria para um funcionamento mais solipsista do humano. Nele, há um corpo representado localizado na mente (Seele), a qual reside na cabeça da pessoa.

Outra leitura, também possível a partir das teorizações sobre o narcisismo, a libido, entre outras, apreende as relações de objeto como transcendentes ao sujeito. O que é essa energia que sai do ego e a ele retorna (ou não), constitui circuitos libidinais alargados e propicia vínculos com as outras pessoas? Nessa abordagem, dizer de um corpo representado localizado na mente implica dizer que esta se localiza ao longo de todo o corpo físico. As palavras e os atos, portanto, não são meros signos de um aparelho psíquico, são apresentações de corpos que sentem, sofrem, alegram-se, ignoram-se; desequilibram-se. Em suma, o si mesmo só poderá ser experimentado por meio do outro. É essa a perspectiva por nós utilizada para pensar as intervenções no corpo.

A encarnação da mente, fundamento da intersubjetividade, é um processo a ser conquistado. Seguindo Freud, alguns psicanalistas, como Ricardo Rodulfo (2004) e Cristophe Dejours (1991), apontam a necessidade de transformação da carcaça orgânica em corpo subjetivado ou simplesmente a passagem do soma ao corpo. Essa transição é subversiva, pois inaugura uma nova lógica de funcionamento. Assim, a história de vida pessoal compreenderia uma seqüência de reescrituras dos órgãos em corpo por meio das quais “o isso desenhado pela anatomia deve ser desenhado novamente para que seja corpo próprio” (Rodulfo, 2004, p. 71). Atentemos, contudo, ao caráter de inacabamento da reescrita do corpo em soma, como exigência de constante reedição. Nesse sentido, as bordas corporais não seriam constantes, mas provisórias: não vivemos em casas de alvenaria, vivemos em tendas, cabanas, barracas.

A suspensão corporal é particularmente sonora a uma escuta psicanalítica ao colocar em jogo, como regra, no mínimo três linhas melódicas. Carlos, cujo corpo é suspenso, será chamado suspendente. Há aquele que “conduz” a suspensão materialmente, esclarece seus fundamentos e tenta tranqüilizar o praticante para garantir uma boa experiência, a quem chamaremos suspensor, e há a platéia, que participa por meio de incentivos, tira fotos, observa e entra com o próprio corpo ao estar presente à suspensão.

Inicialmente um integrante da platéia, Carlos passa para a maca onde serão colocados os ganchos e, assim, muda seu lugar na estrutura do evento; passa de espectador a suspendente e altera o lugar dos outros para minha platéia, meu suspensor. Esse deslocamento marca a passagem de seu corpo de corpo-olhos para corpo-visível-à-platéia, corpo-manipulável pelo suspensor, enfim, corpo-sede, epicentro das sensações envolvidas no evento de suspensão. À relativa constância dos corpos dos que “ficam”, contrapõe-se a absoluta inconstância de quem “vai”: o corpo sobe, desce, gira, balança, treme, oscila e tem seu contorno transformado com a pele esticada sob a tensão dos ganchos. É um corpo de sensações para si, mas, também, um corpo visível a espectadores fascinados. Eu e não-eu opõem-se, assim como a inconstância do eu e a constância do não-eu (platéia).

Há um clima de tranqüilidade e cumplicidade no evento. De um lado, a platéia, especialmente os iniciados, imaginam algumas sensações de Carlos; do outro, há uma segurança dos presentes de que eles não sentem a dor, não sangram, mantêm-se tranqüilos em sua condição de testemunhas, não misturadas com o suspendente. Poderíamos então afirmar que a intervenção circunscreve-se ao corpo suspendido? Não, se considerarmos a prostração de alguns espectadores no dia seguinte– particularmente, eu mesmo, quando assisti às suspensões, na SusCon 2006, senti-me seguro no dia, mas meu corpo ficou extremamente fragilizado no dia seguinte, como se eu estivesse gripado. Podemos supor, então, a partir de alguns relatos, uma afetação bastante intensa entre os corpos, justaposta ao clima de relaxamento e curtição típico do evento. Os corpos afetam-se mutuamente, mesmo que isso não seja mediado pela consciência.

Nossa proposta de investigação desse processo consiste em uma reformulação de alguns dispositivos já conhecidos para pensar a intersubjetividade: a fusão, a especularidade e a mediação simbólica. Em nosso estudo, eles serão compreendidos conforme uma lógica corporal, pressupondo-se que não existe subjetividade sem corpo, mas corpos subjetivados. Em suma, abordaremos os fenômenos intersubjetivos como processos intercorporais.

 

Dimensão fusional da intercorporeidade

Ao contrário do que poderíamos apressadamente imaginar, a atitude do suspensor para com o suspendente é de cuidado e atenção. Para promover uma boa experiência será preciso considerar e antecipar as sensações envolvidas, como forma de preparação e aceitação. Na grande maioria dos casos, os suspensores também são praticantes e, portanto, têm uma memória corporal das sensações eliciadas. Juntamente com o conhecimento dos procedimentos e normas técnicas, há o próprio corpo em jogo como fonte de saber sobre a experiência.

Obviamente, Carlos sentirá dor, mas a integridade do suspensor é prova de que seu corpo está seguro. A presença, a tranqüilidade da respiração, a firmeza dos movimentos, o timbre encorajador na voz, enfim, um campo de trocas pré-verbais constitui a dimensão fusional da prática. Abordar a idéia de intercorporeidade pressupõe uma comunhão inconsciente entre os corpos, no sentido de uma condição não integrada, em vias de integração. Ela propicia o compartilhamento, pois a pele, enquanto membrana separadora, é nela colocada em questão.

Nessa perspectiva, as trocas são apenas possíveis se além de diferenciação houver indiferenciação entre os corpos, ou seja, se houver um tecido mutuamente compartilhado no qual ocorra o tráfego de conteúdos díspares. Para falar desse elemento, Merleau-Ponty utiliza o termo carne (chair), constituído por um elemento geral que possibilita a simultaneidade do “tocar” e do “ser tocado” (Coelho Jr., 2003). Portanto, conforme o filósofo, a carne promove– o termo é ótimo– uma “promiscuidade” entre os corpos.

As marcas ou modificações corporais, como piercings, tatuagens e implantes, e a suspensão corporal, considerada uma modificação mental, são intervenções corporais realizadas por um outro e, nessa medida, afinam-se também a uma escuta psicanalítica. Para Gilberto Safra, a oportunidade de ser no mundo inicia-se com o fenômeno estético configurado no contato do “corpo” da criança com o corpo materno (Safra, 2005, p. 48). A mãe devotada modela seu corpo em sintonia com os ritmos e a tonicidade do corpo do bebê. Dessa forma, a criança terá experiências de conforto e sentirá o meio ambiente como acolhedor. Esse conjunto primário de sensações, sensações do corpo de um outro, é o protótipo da constituição do self e da humanização que transforma o soma “do filho do homem” em corpo:

Há, inicialmente, uma organização de self, decorrente dos registros estéticos-sensoriais, que se estabelece no encontro do corpo do bebê com o corpo materno. As experiências organizam-se em formas sensoriais: de sons, de calor, de tato, de ritmos e de motilidade, entre outras. Estes inúmeros registros são presenças de vida, de ser. São fenômenos em que a presença da mãe é o self da criança. São formas que são significadas pelas diferentes qualidades afetivas do encontro entre mãe e bebê. O importante é que este caleidoscópio de sensações capacita a criança a ter um corpo que paradoxalmente é presença de um outro. Não é um corpo coisa, mas torna-se um corpo humano: é o soma com pegadas da passagem de alguém devotado (Safra, 2005, p. 78.).

Ou seja, o bebê mama seu próprio corpo do seio da mãe; de todas as sensações, o bebê sorve sua pequena humanidade, e por isso diz-se daquele corpinho ser pura sensação, pura recepção estética. As satisfações estéticas desse encontro inauguram zonas erógenas do corpo do bebê (Safra, 2005, p. 99). Vemos, assim, que o processo de concepção do bebê desliza para além do nascimento. O fato do corpo da criança se fazer em contato com o corpo materno marca sua origem como determinada pela presença de um outro, ou seja, o eterno descentramento pelo qual o outro se constitui como a referência original. Na verdade, esse descentramento de si em direção ao outro seria a própria fundação da humanidade: “Um corpo não transfigurado pela presença de outros é um corpo-coisa e não encontra meios de perceber subjetivamente a vida no mundo.” (Safra, 2005, p. 51.)

Carlos, nosso protagonista eminentemente fictício, mas igualmente absolutamente encarnado, terá passado por momentos de fusão com o corpo de sua mãe como etapa do processo profundamente obscuro de constituição de sua, digamos, psique. Essa fusão e transfiguração originais são o protótipo das futuras reedições. Elas prefiguram o modo como ocorrerá a inserção de seus cotovelos e tornozelos em jogos eróticos com sua namorada um tanto peculiar, o relaxamento no divã e a adaptação ao tempo de seu barbado analista e, por que não, o seu atravessamento pelos ganchos e pelo olhar de seu suspensor.

Vejamos, então, a natureza dessa transfiguração. Quando meramente nomeados, os atos de perfurar e puxar a pele indicam uma atitude bruta e violenta. No entanto, paradoxalmente, o modo, o ritmo e o tom afetivo das intervenções, se bem observados, sugeririam, ao contrário, um profundo cuidado e, às vezes, até um carinho com o corpo do outro. Isso pode ser visto no aviso ao suspendente antes de cada perfuração, no cuidado com a precisão do movimento, firme e retilíneo, na tentativa de elevar e descer o suspendente de forma suave– apesar da dificuldade dessa manobra–, nos curativos efetuados e nos cuidados para evitar sangramento desnecessário ou contaminação. Interessante notar a freqüência com que é mencionado nos relatos o momento de retirada das bolhas de ar da pele, decorrentes da suspensão. Etapa aparentemente secundária, parece marcar profundamente alguns praticantes, seja pela demonstração de cuidado, seja pelo bônus de contato– apesar do uso das luvas cirúrgicas, obviamente.

Agressividade e cuidado, dor e prazer. Termos opostos, conjugados, levam-nos ao conceito de masoquismo erógeno ou originário. Esse caminho nos será tão mais proveitoso quanto mais nos permitirmos retroceder a um estado em que dor e prazer pouco se diferenciam, tratando-se, antes, de energia, libido, uma carcaça a ser subjetivada como corpo e um outro que desempenha funções de meio ambiente, imagem, fonte e destino de energias. Nesse momento falaríamos, então, de uma erogeneidade originária, em que a dor não é dor e o prazer não é prazer, mas valem especialmente pela capacidade de veicular a presença do outro no corpo próprio e assim erotizar, corporificar.

Aqui nos cabe apontar a limitação da linguagem para descrever processos aquém da dor e do prazer. Carlos conta da diversão da prática, a euforia das endorfinas e da adrenalina e do quão legal é sentir-se flutuando, livre pela superação da dor e de seus medos. A certa altura, no entanto, ele silencia, reticente; há algo inapreensível pela linguagem, acessível apenas aos iniciados. Em seguida, volta a disparar uma série de motivações e prazeres advindos com a sua suspensão, até silenciar novamente, insatisfeito. A abordagem psicanalítica leva-nos, então, a uma dupla escuta, para simultaneamente valorizarmos o relato de Carlos e atentarmos ao fato de ele sempre dizer mais do que fala. A estratégia será, então, investigar o sempre mais no interior de seu discurso, pedir auxílio ao arsenal teórico psicanalítico e à análise do discurso para que tornem mais nítidas a melodia de nosso protagonista– ao invés de emudecê-lo.

Conversando com Carlos sobre sua primeira suspensão corporal, intuímos uma curiosa dicotomia em seu discurso, quando ele altera a referência a seu corpo de pele (skin) para carne (flesh), sendo a primeira marcada pela passividade e objetividade e a segunda pela atividade e subjetividade. Essa alternância nos permite aprofundar a compreensão da suspensão corporal para além de sua dimensão explícita. O termo “carne” indica a parte do corpo que ganha vida com a intervenção. Mais do que fonte de dor e prazer, ela aparece como tecido subjetivado, percorrido pelo imaginário do suspendente; uma terra remexida e fertilizada pelo outro.

O conceito freudiano de vivência de satisfação transcende largamente o mero prazer físico, colocando em jogo um tecido polimorfo de descentramentos corporais. O oral, o anal e o genital seriam antes adensamentos que limitações, pois nenhuma vivência de satisfação se restringe a áreas predeterminadas (Freud, 1905/1976b, 1914/1976c; Rodulfo, 2004, p. 107). É preciso pensar a vivência de satisfação, fundamentalmente, como uma experiência detonadora da subjetivação e, por conseguinte, da corporificação. O prazer e a dor seriam menos finalidades em si que meios para promover a experiência de satisfação, processo pelo qual a pessoa se humaniza. A tessitura da satisfação erigiria o que Rodulfo, seguindo Aulagnier, chama de zona objeto, momento de não-diferenciação entre sujeito e objeto (Rodulfo, 2004, p. 70, 143, 144). As duas formas por excelência de constituição da zona objeto seriam o abraço acolhedor materno e a relação sexual, que implicam simultaneamente o prazer, a fusão e o contorno de uma corporeidade.

De acordo com nossos estudos, a prática de suspensão constitui-se como processo intersubjetivo, coletivo e baseado em profunda cumplicidade. Assim, inferimos a aparição do outro como elemento transformador de uma vivência possivelmente prazerosa ou dolorosa em uma experiência de satisfação. A possibilidade de Carlos fazer uma boa suspensão está, portanto, diretamente relacionada à constituição de uma cumplicidade com seu suspensor.

Pensemos, do ponto de vista econômico, sobre o surgimento desse vínculo. No transcurso da experiência, fortes sensações percorrem o corpo de Carlos. Se considerarmos essa excitação como uma energia que não tem como ser escoada, da qual o aparelho psíquico deve dar conta, somos levados à discussão de Freud em Introdução ao narcisismo (1914/1976c) de que haveria um tipo de ligação objetal de fundo narcísico advindo do excesso de energia. Se o excesso de energia é patológico, diz Freud, é preciso amar para não adoecer, ou seja, se o ego estiver excessivamente catexizado, será preciso investir, efetuar ligações objetais, a fim de ampliar o circuito pulsional e, assim, ampliar o circuito energético (Freud, 1914, p. 101). Nesse sentido, sugerimos que, para a vivência de satisfação, o suspensor estimula uma fonte de energia e oferece o próprio ser para aumentar o circuito libidinal.

Em suma, a transfiguração pelo outro erotiza zonas do corpo; algumas delas, até então, pouco importantes na economia erótica: parte superior das costas, posterior das pernas e joelhos. Em outras palavras, a relação entre os corpos condiciona novos circuitos eróticos no corpo do suspendente. Essa perspectiva marca a importância da presença física da platéia e do suspensor no modo de Carlos sentir seu próprio corpo. Isso implica uma primeira dimensão da intercorporeidade, marcada, conforme dissemos, por uma comunhão inconsciente das sensações entres os corpos.

Safra chama a atenção para que, caso alguma parte do corpo não tenha sido transfigurada pelo outro, a pessoa poderá senti-la como um corpo estranho, alheio a si (Safra, 2005, p. 78.). Embora essa não seja uma função necessária das mods, elas podem corporificar as “partes esquecidas”, ventilar aqueles lugares empoeirados, cheios de mofo, e dar-lhes a vivacidade perdida ou inédita. Conforme os diversos relatos por nós analisados, muitas pessoas se modificam para melhor se apropriarem do corpo, para senti-lo como seu. Lembremos que uma modificação é geralmente feita por outra pessoa, que toca a pele, transfigura e cuida. A transfiguração é a base da constituição tanto do sentimento de si como da capacidade de lidar com uma alteridade.

 

A dimensão visual da intercorporeidade

Na dimensão fusional, o olhar desempenha um papel táctil, empático e mantém-se, portanto no registro do unitário– ou, para sermos mais rigorosos, no campo do indiferenciado, anterior a qualquer dicotomia. Mas há também um forte componente estético na suspensão, decorrente do fascínio visual do evento, em que o suspensor se junta à platéia como mais um espectador. Há aqui uma divisão inicialmente clara entre vidente e visível, eu e não-eu: constitui-se o regime do duplo.

O corpo do suspendente dá-se a ver a uma platéia fascinada, produzindo um espetáculo de surpresas previsíveis: o sangue, a pele esticada, a levitação, a coreografia no ar. Na colocação e retirada dos ganchos, o fio vermelho de sangue e, com ele, uma enxurrada de câmeras fotográficas e filmadoras. A luz é o fundamento. Nessa hora, Carlos é atravessado por uma profusão de sensações: puxação, queimação, dor; as endorfinas e a adrenalina pululam, faceiras, gerando com freqüência um estado de êxtase. A euforia, o prazer e o sentimento onipotente de conseguir “voar”, o vento, a vertigem. Muitas vezes, uma música é escolhida para maximizar a entrega e a fruição da experiência. Mas essas câmeras não captam os sentimentos, elas captam cores, formas, ritmo e, no máximo, um rosto impassivo. Contraposta ao caos interno no suspendente, a estabilidade do olhar da platéia, a objetiva mira e estabelece um prumo. No olhar do outro, a unificação de uma gama indefinida de sensações.

Os olhares passeiam pelo corpo de Carlos, demoram-se nele. Carlos se sente aconchegado nesse olhar, olhar que pede por mais olhar, e será mais intenso quanto melhor for sua performance, isto é, quanto mais difícil for sua suspensão, quanto mais tempo ficar, quanto mais balançar e girar no vazio. O suspensor adverte, contudo, que não deve haver preocupação com o tempo, não deve haver qualquer esforço em agradar os espectadores, pois o mais importante é sentir e respeitar os próprios limites. A insistência no assunto, contudo, des-vela o esforço em seduzir o olhar do outro, que ameaça o bom andamento da suspensão.

Nessa dimensão da experiência, vemos também uma dialética do visível, e o próprio fascínio da platéia surge como espetáculo a ser admirado de cima pelo suspendente, espectador privilegiado. Do alto, Carlos vê os corpos modificados e coloridos se voltarem para si e sorrirem atentos, emitindo flashes de luz. Ele se torna um centro dispersor de luminosidade, que pulsa, reverbera nas paredes e retorna em um mosaico de formas e cores exuberantes de uma platéia igualmente sedutora. Nesta festa de imagens, colapsam os pólos do visível e do vidente. O fascínio das imagens está por toda parte.

A função das trocas visuais nas relações instiga teorizações no âmbito da psicanálise. Conforme Winnicott, o rosto da mãe é o precursor do espelho, pois encaminha a passagem do estado fusional para um olhar ao outro que reflete, possibilitando o contato posterior com um outro de existência própria (Winnicott, 1975, p. 153). Inicialmente, o bebê olha para o outro e vê a si mesmo, ou seja, “a mãe está olhando para o bebê e “aquilo com o que ela se parece se acha relacionado com o que ela vê ali” (Winnicott, 1975, p. 154; grifo do autor). O fascínio das feições do bebê, seus gemidinhos, as mais leves e imprevisíveis alterações nos seus traços na passagem da alegria ao desespero, sua textura lisa e brilhante e, acima de tudo, suas minúsculas dobrinhas, são espetáculo fulgurante que reverbera no olhar materno e retorna na forma colapsada interesse do outro/interesse pelo outro. Então, o que o bebê vê, inicialmente, é sua própria imagem, suma novidade, refletida no rosto da mãe, conferindo-lhes continuidade e unidade. Observemos nessa sutil passagem da fusão ao interesse pelo não-eu uma etapa intermediária de indistinção, com o esboço de um olhar para fora de si, um descentramento em que a verdade de si está fora, no outro.

Carlos vê sua diversão espelhada no rosto do outro, seu prazer no outro admirador; sua performance espelha-se no olhar meticulosamente fascinado do outro. Em suma, o olhar dos espectadores espelha toda a exuberância da performance do suspendente e, de forma paradoxal, mantém-se constante, confirmando que ele está seguro e pode, assim, relaxar e curtir a experiência.

 

A dimensão simbólica da intercorporeidade

A apropriação de Carlos de seu próprio corpo e a sua relação com os integrantes da platéia são mediadas por um terceiro, o suspensor. Este, por sua vez, representa tanto um saber tecnológico como um ancestral, advindo das tribos e sociedades antigas, passando por Fakir Musafar e os modern primitives, até o site bme (www.bmezine.com). Portanto, a relação de Carlos com a platéia é mediada pelo que se imagina do suspensor, suas habilidades e competências, enfim, pelo modo como ele se apropriou da prática de suspensão. Alguns suspensores compreendem a suspensão como algo sagrado, outros como uma arte, outros como uma forma de auto-superação e autodeterminação ou, ainda, como um esporte radical. Claro, esses elementos estão normalmente misturados, e o resultado dessa combinação indica o modo como o corpo de Carlos se constitui, como corpo performático, corpo obra de arte, corpo potente, corpo sagrado, corpo fetiche, corpo fonte de prazer, enfim, um corpo diferente de acordo com o modo de o suspensor conceber o evento de suspensão.

O corpo aparece, então, como lugar de escrita, lugar de intervenção por um outro, conforme regras, tradições e preceitos a serem “lidos”, compreendidos pelos espectadores. Essa escrita tem a marca do suspensor, mas, simultaneamente, o traço ativo de Carlos. É um corpo marcado pela cultura das modificações corporais, por meio da qual se pode constituir uma singularidade. Na suspensão corporal, as inúmeras modalidades, com suas variações de posições e situações, produzem não apenas diferentes sensações, mas um campo de experimentação em que é possível utilizar a criatividade para o desenvolvimento de um estilo pessoal. Há quem busque suspensões junto à natureza, em grandes alturas, suspenda-se em conjunto etc. A grande vantagem é que, ao contrário dos piercings, das tatuagens e dos implantes, a suspensão não depende de marcas corporais e, portanto, a sua quantidade e variabilidade são virtualmente infinitas, sugerindo-se, apenas, um intervalo de tempo entre perfurações na mesma área. Em suma, temos uma série de escritas corporais como forma de constituir simultaneamente um campo compartilhado com o outro e um eu singular.

Essa primeira escrita no corpo é suporte de transcrições posteriores, também compreensíveis à luz da noção de intercorporeidade. É particularmente interessante a promoção dos relatos das experiências no site bme. No momento da escritura, um emaranhado de sensações e sentimentos deve tomar forma, organizar-se no tempo, espaço e causalidade e apresentar-se como discurso razoavelmente linear. Para tanto, será preciso evocar o inominável, reconhecer a participação dos outros, os medos, as angústias, as alegrias e colocar tudo isso à disposição de um terceiro, na forma narrativa e imagética. Ao fazê-lo, ele não apenas revela, mas constitui uma identidade, com gênero, preferência e estilo próprios; sempre sob o olhar marcante do outro. Aqui, a expectativa de um interlocutor propiciou uma determinada conformação ao corpo de Carlos.

Por sua vez, os interessados pelos relatos são normalmente adeptos de algum tipo de modificação corporal. Ao entrarem em contato com o material compartilhado, poderão sentir curiosidade e interesse em também se suspender, poderão imaginar as sensações com base em suas próprias experiências com modificação, o quão resistentes seriam a essa prática, a possibilidade de “voar”, qual modalidade escolheriam etc. Caso o visitante seja menos aficionado por modificações, poderá sentir frio na espinha, asco, enjôo, horror e repulsa ao conteúdo. Em ambas as situações, o horror e a simpatia, uma resposta corporal aos conteúdos veiculados. Pele, nervos, músculos, estômago, olhos, pulmões, coração; todo o corpo reage à narrativa e às fotos de Carlos balançando no ar suspenso por ganchos cravados em sua pele.

Em suma, Carlos conformou seu corpo de forma a atualizar sensações no corpo de um outro, embora não saiba exatamente qual resposta será eliciada. A intercorporeidade, nesse caso, pode ser referida ao registro simbólico, caracterizado pela presença de três elementos, dois corpos e um veículo intermediário, mutuamente compartilhado, como baliza da relação, formatador do tipo de vínculo produzido. Seja instituição, site, pessoa ou valor cultural, o veículo estabelece as bases sobre as quais os corpos se tocam.

 

Corporeidade e mistério

Há algo compartilhado, mas, especialmente, deslocado nessas modalidades intercorporais, trata-se de um mistério sobre a suspensão, algo que não pode ser dito, mas experienciado. O suspensor é seu guardião, pois distribui o saber de sua produção; a platéia o coloca no lugar do suspendente, pois vê nele sua manifestação exuberante e silenciosa; e o suspendente, por sua vez, vê no fascínio da platéia a unidade daquilo que sente, a pacificação pela sentença “eles sabem o que sei”, a tranqüilidade de saber que alguém o aguarda atrás da porta para encontrar seu mistério.

A intercorporeidade ocorre com a transmissão de sensações, mas só pode ser compreendida articulada ao mistério. O discurso torna-se, então, um disco arranhado que salta determinados trechos da música e impele o leitor ao estranhamento das lacunas, até ele se aproximar o suficiente da harmonia para imaginar uma composição possível, embora esburacada. O extremo palpável e dizível dos fenômenos corporais só é apreendido, portanto, articulado ao indizível, ao silêncio, ao escapamento de ser, cuja fumaça nos leva diariamente à pergunta trivial e perplexa: “Carlos, tudo bem? Como vão as coisas?”

 

Encaminhamentos

A prática de suspensão corporal nos aparece como um fenômeno extremamente denso. Ela instiga um novo olhar sobre os fenômenos contemporâneos e as possibilidades de existência na chamada pós-modernidade. No campo da psicanálise, ela aponta para novas formas de subjetivação do corpo. Mais especificamente, ela auxilia na investigação de um campo que transcende as divisões de época, a intercorporeidade, e oferece subsídios para pensá-lo em diferentes dimensões.

Uma vantagem da perspectiva intercorporal é favorecer a apreensão conceitual dos acontecimentos cotidianos de modo a preservar sua tangibilidade. Facilita-se, assim, o trânsito entre a articulação teórica e a observação do fenômeno. Deste modo, a teorização ganha os ares e voa faceira, mas atravessada e estabilizada pelos ganchos da realidade.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Daniel Rodrigues Lirio
Sociedade de Psicanálise de Brasília SPB
SHIS QL 22, cj. 1, casa 18 – Lago Sul
71650-215 – Brasília DF – Brasil
E-mail: danielrlirio@yahoo.com.br

Recebido em 13.9.2007
Aceito em 6.11.2007

 

 

* Psicólogo e mestre em psicologia pela Universidade de São Paulo, membro filiado da Sociedade de Psicanálise de Brasília SPB.

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