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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.42 no.2 São Paulo June 2008

 

ARTIGOS

 

O pensamento metapsicológico, referência matricial da psicanálise

 

El pensamiento metapsicológico, referencia matricial del psicoanálisis

 

The metaphsychological thought, psychoanalysis matricial reference

 

 

Luís Carlos Menezes*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Concepções diferentes sobre o que seja teoria e o que seja conceito em psicanálise levam a direções bastante diferentes sobre a maneira de entender a natureza do processo analítico, assim como as formas e práticas de sua transmissão. Consideramos relevante a escolha dos recursos da metapsicologia– estreitamente imbricados com os desafios da clínica, indissociáveis da transferência e do trabalho da metáfora– como os meios mais condizentes com a natureza, em negativo, do trabalho analítico. O que se tem chamado de pesquisa empírica e de pesquisa conceitual supõe uma positividade que não condiz com aquilo de que se trata numa análise.

Palavras-chave: Metapsicologia; Pesquisa empírica; Pesquisa conceitual; Negativo na psicanálise.


RESUMEN

Concepciones diferentes sobre lo que sea teoría y lo que sea concepto en psicoanálisis llevan a direcciones bastantes diferentes sobre la manera de entender la naturaleza del proceso analítico, así como las formas prácticas de su transmisión. Consideramos relevante la elección de los recursos de la metapsicología– estrechamente imbricados con los desafíos de la clínica, indisociables de la transferencia y del trabajo de la metáfora– como los medios más de acuerdo con la naturaleza, en negativo, del trabajo analítico. Lo que se viene llamando de investigación empírica y de investigación conceptual supone una positividad que no está de acuerdo con aquello de que se trata en una análisis.

Palabras clave: Metapsicología; Investigación empírica; Investigación conceptual; Negativo en psicoanálisis.


ABSTRACT

Different concepts as to what is theory and what is concept in Psychoanalysis take very different paths regarding the understanding the nature of the analytic process, as well as the forms and practices of its transmission. We consider the choice of the metapsychological resources relevant– narrowly imbricate with the challenges of the clinic, being undissociated from transference and the work of metaphor– as the one that most closely matches nature, in the negative, of the analytic work. What has been called empiric and conceptual researches supposes a positivity that does not match what is dealt with in an analysis.

Keywords: Metapsychology; Empiric research; Conceptual research; Negative in psychoanalysis.


 

 

A psicanálise e os psicanalistas provavelmente estarão sempre buscando fazer um solo sobre o qual caminhar. Esta busca parece ter-se tornado especialmente urgente nestes últimos tempos, quando a moldura dada pelas escolas parece ter perdido parte da certeza oferecida pelos seus contornos. Uma das respostas, marcada pelo pragmatismo que a luta pela sobrevivência recomenda, tem ido na direção de obter verificações objetivas da efetividade do processo analítico com a invenção de protocolos experimentais, cujos resultados testemunhariam em favor da efetividade, da eficácia do tratamento psicanalítico. Se funciona, não é falso, e se não é falso, seus pressupostos devem ser verdadeiros.

Outra põe o foco nos conceitos enunciados a partir de diferentes horizontes de pensamento teórico da psicanálise e se interroga sobre a operatividade destes conceitos no trabalho clínico do psicanalista, sobre o seu valor heurístico. Alguns acabam se impondo, numa espécie de seleção natural, e com eles vamos encontrando inclusive certa convergência, o que os torna ainda mais credíveis. Vamos assim encontrando as pedras sobre as quais podemos pisar em nosso trabalho e sobre as quais construir nossas teorizações.

É assim que se fala em “pesquisa empírica” e em “pesquisa conceitual”. Fábio Herrmann, na obra de uma vida, que o destino interrompeu precocemente, nos fornece fecundas demonstrações do amplo valor heurístico da referência ao método psicanalítico. Pôr a nu os traços essenciais do método, numa reflexão sobre a experiência psicanalítica, assim como a sua operatividade, foi objeto de extenso e rico trabalho dele próprio e, hoje, de outros colegas que nele se inspiram. No entanto, não me é ainda claro o lugar que ocupa a metapsicologia em seu pensamento. Ela está, não há dúvidas, por perto, embora, assim me parece, mantendo certo descompasso com as formulações sobre o método. Este é o fio da Ariane, e, nesta proposta, é em sua justa compreensão e na arte de seu manejo que encontraremos nosso chão. Resta que temos de dialogar mais com o pensamento do Fábio, neste debate sobre pesquisa empírica e pesquisa conceitual que atravessa o movimento analítico e que tem incidências sobre os fundamentos da psicanálise.

Tenho notado, no entanto, depois de um período de relativo descrédito, nos anos oitenta e noventa, a reaparição crescente em trabalhos de psicanalistas, da velha “feiticeira” inventada por Freud, a metapsicologia. O colega argentino, Norberto Marucco, cujo trabalho estará em posição de destaque no congresso de Berlim, propõe de forma inequívoca o recurso à metapsicologia como via indispensável para a constituição do nosso chão, do terreno para pensar entre psicanalistas. Ele escreve: “A metapsicologia é um referente privilegiado para o debate das idéias da psicanálise” e, logo adiante: “Avançar nesta prática e continuar contribuindo para o seu desenvolvimento como corpo conceitual passível de ser transmitido, explicado e debatido requer a vigência da metapsicologia freudiana. Este elemento comum que nos orienta entre diferentes vias teóricas que ora se unem, ora se bifurcam” (Marucco, 2007).

Sandra Schaffa, por ocasião de um debate promovido e publicado pelo Jornal de Psicanálise, referindo-se à formulação do conceito de defesa por Freud, nos primórdios da psicanálise, afirma: “… existe um nexo intrínseco entre teoria e método, entre metapsicologia e método no pensamento de Freud”, insistindo logo adiante em sua intenção de “demarcar esta posição que coloca a perspectiva metapsicológica clínica na base do método de Freud” (Schaffa, 2006). Estas afirmações são detidamente exploradas num artigo da colega, no mesmo número da revista, numa direção que é bastante convergente com a que desejo submeter a vocês, o que é uma feliz coincidência, pois acabo de receber a revista (Schaffa, 2006).

A escolha do terreno para pensar a psicanálise, na forma das pesquisas empírica, conceitual ou metodológica, está indissociavelmente imbricada com a maneira como se entende a natureza da teoria e, mais precisamente, do que se entende por conceito em nosso campo.

Voltemo-nos para Freud, para ver como ele os entende. Ora, nós o vemos iniciar o seu ensaio metapsicológico sobre as pulsões pondo-as no mesmo plano que o conceito de energia na física, uma noção postulada, indispensável para todos os desenvolvimentos teóricos, mas cuja natureza é obscura e imprecisa. O conceito só vai adquirindo contornos e substância na medida em que avança nos conhecimentos de uma ciência, no caso a física, para o qual, no entanto, o conceito é desde o início necessário. Estas formulações admiráveis sobre o modo de constituição e o modo como opera um conceito, o de energia, numa ciência “dura” como a física, pondo-o no mesmo plano de um conceito fundamental para a teoria psicanalítica, o de pulsão, sugere uma visão positiva ou positivada do conceito que Freud, no entanto, não sustenta o tempo todo.

Na perspectiva aqui formulada, pulsão designa algo que não sabemos bem o que é, mas que se irá sabendo aos poucos, na medida em que a ciência se desenvolver, a exemplo do conceito de energia na física. Por penetrante que seja essa formulação epistemológica de como se criam e se desenvolvem os conceitos nas ciências positivas e em relação aos quais os da psicanálise seriam da mesma natureza, vamos encontrando, de fato, afirmações de Freud que apontam numa direção diferente, sugerindo modos peculiares de produção e de funcionamento dos conceitos no campo de saber que está criando.

É assim que mais adiante, em sua obra, afirma: “A teoria das pulsões é, por assim dizer, nossa mitologia. As pulsões são seres míticos, formidáveis em sua imprecisão” (Freud, 1932). Seres míticos… formidáveis em sua imprecisão! Ora, um ser mítico não existe, ele é fruto da imaginação, o que não quer dizer que não seja operante, que não possa produzir efeitos importantes. Um ser mítico, imaginário, pode produzir efeitos “formidáveis” entre aqueles que partilham da crença no mito. Que psicanalista poderia ignorar isso, já que trabalha o tempo todo com o poder da transferência e a eficácia… pulsional da imaginação, habitada por estes entes invisíveis que ele reconstrói nas análises como “fantasias inconscientes”, fantasias que dão ao sintoma a força demoníaca de um “sem saída” que nada justifica? Mas o conceito, e aqui se trata de um dos conceitos mais fundamentais do pensamento de Freud– o de pulsão– designa algo que existe, ainda que não plenamente apreendido, ou não designa algo que “realmente exista”, no sentido positivo do termo?

Antes de prosseguir, observo que esta formulação de Freud nos situa em cheio no terreno em que se desenrola a nossa prática e aponta para um saber implícito sobre a natureza do sofrimento neurótico que a justifica. No que se refere ao nosso tema aqui, pode ser entendida como indicando que o que está sendo designado por pulsões opera, é fonte de angústia, por exemplo, na medida em que não existe como materialidade mensurável… Embora estejamos, neste ponto, próximos do que há de mais importante na psicanálise, ficamos perplexos diante de uma afirmação tão paradoxal, tão difícil do ponto de vista lógico.

Para tentar avançar, recorro a uma passagem do artigo da S. Schaffa a que me referi antes em que esta diz, citando Fédida, que o que opôs Freud a seus interlocutores, Charcot, Bleuler, Janet são as “interpretações positivas dos sintomas” nestes últimos. Nestes, há algo, por assim dizer, de tangível que falta nas funções psíquicas, como uma lesão funcional ou um estreitamento do campo da consciência, enquanto que “o ponto de vista metapsicológico” de Freud o leva à “descoberta do negativo do sintoma” (Schaffa, 2006). Destaco ao longo de um trabalho meu este contraste entre a inovação freudiana e as concepções sobre supostos déficits ou desfuncionamentos “tangíveis”, pondo a ênfase “na operação ativa de desconhecimento” representada pela defesa ou pelo recalque. Resulta, no novo método, que aquele que trata o paciente não dispõe de um saber a priori, certo ou errado, sobre um mal que só se poderá desfazer pelo trabalho da análise pelo qual aquilo que “estava emudecido no sintoma” poderá encontrar voz (Menezes, 1995).

Antes de retomar esta afirmação sobre o “negativo”, operante tanto no sintoma como no conceito em psicanálise, eu não queria perder outro fio encontrado aqui, menos difícil, que diz respeito ao mito e à fantasia. De um lado, talvez não nos seja difícil concordar com a afirmação de que uma produção teórica em psicanálise possa ter, em seu texto, uma “camada fantasmática”, como propõe Renato Mezan (1995). Numa reflexão inspirada, Fédida prolonga esta idéia numa referência ao “funcionamento mitogenético da teoria”, tendo o cuidado de assinalar as “rupturas diferenciadoras” entre o trabalho do mito e o da teoria. Mas dá-lhe grande importância ao afirmar que a metapsicologia “é o corpo mitológico da teoria”, este “corpo mitológico” fazendo a passagem da metafísica para a metapsicologia (Fédida, 1978).

Sem a impregnação pela fantasia, a teorização em psicanálise deixa de ser metapsicológica para tornar-se um sistema explicativo, dentro de um espírito acadêmico. Fédida distingue, pois, o modo teórico de pensar na filosofia e na metapsicologia, afirmando que naquela “trata-se de levar os conceitos à sua função de significação e a torná-los dialeticamente capazes de alcançar compreensão e extensão da diversidade de seu objeto”, num trabalho de diferenciação e de unificação, enquanto que na metapsicologia trata-se de um trabalho de des-significação, pelo poder da metáfora (Fédida, 1978).

Neste contexto, torna-se bastante sugestiva a conhecida referência de Freud ao Fausto de Goethe, numa passagem em que discute as transformações das pulsões, chama a metapsicologia de feiticeira, explicitando o que quer dizer com esta imagem: “Sem especulação, teorizações– eu ia dizer: sem imaginação, impossível avançar de um passo” (Freud, 1937). É verdade que isto é indispensável para avançar em qualquer área do conhecimento. Fica, no entanto, a imagem picante da feiticeira e suas poções mágicas para nomear o mais fino e o mais essencial tecido teórico de sua obra, bem como a afirmação de que nada é possível sem “fantasiar metapsicológicamente” (Freud, 1937).

Volto agora à idéia do negativo no conceito metapsicológico, negativo que tem o seu contraponto, nos diz Fédida, em uma “ação metafórica” que lhe é inerente e sem a qual este perde a sua “operatividade técnica”. O conceito se torna metapsicológico (útil para o psicanalista), na medida em que, em seu interior, “é introduzida a atividade metafórica”, esta de que carece o conceito na metafísica clássica (Fédida, 1978).

O pensamento metapsicológico, nesta perspectiva, é uma modalidade de trabalho teorizante presente na atividade clínica do analista, ao mesmo tempo em que é por ela impregnado. Como escreve Pontalis, “ela (a metapsicologia) fornece uma referência [cadre] de pensamento, uma referência que não é seguramente rígida, mas que nos permite estar no informe sem nos perdermos no caos” (Pontalis, 1998).

Daí a expectativa de que a atividade teórica metapsicológica tenha uma “operatividade técnica” com seus entes míticos, “formidáveis em sua imprecisão”, para retomar a expressão de Freud. E compreende-se a importância que Fédida dá à operação de metaforização, intrínseca ao trabalho de pensamento metapsicológico, pois por ela se constitui um figurável, um dizível, um pensável, onde havia dispersão e insistência de sombras errantes que, só ao encontrar forma, podem deixar de inquietar, deixando de fazer mal em seu mutismo.

Nas divergências sobre a tradução de Freud, em diferentes países, estão em jogo modos de ver que ora consideram os seus textos como os de um cientista enunciando um saber objetivo, ora como produção de uma ciência escrita em primeira pessoa. Na linha do que estou afirmando aqui, penso que a psicanálise é sempre uma ciência em primeira pessoa, mas uma ciência que não pode ignorar, mesmo quando é um analista que escreve um trabalho ou uma obra, aquilo que sabe da escuta de seus analisandos ou de suas próprias experiências como analisando. Ora, em sessão fala-se sempre em primeira pessoa, mas quão problemática, incerta, flutuante, mostra-se esta primeira pessoa em análise! Isto, inclusive, quando o analisando, agarrando-se tenazmente, por algum tempo, à ficção resistencial da identidade fixa de um “eu” que fala sempre do mesmo lugar, interroga o analista e o seu raciocínio sobre as causas do mal-estar que sente em sua vida; agarra-se à busca de uma “solução” explicativa e prescritiva, positivando o seu sofrimento e a representação de si. O efeito de mudança é, nestas condições, esperado de uma resposta articulada positivamente, como orientação ou explicação.

Em qualquer trabalho teórico psicanalítico, enunciado em “primeira pessoa”, estarão pois, em ação, deslocamentos obscuros suscitados pela transferência do analisando e que incluem, evidentemente, questões em impasse da própria análise e da vida do analista; estas trazem “alimentação pulsional” e supõem áreas de resistência no trabalho. É porque este será ainda e também trabalho analítico, com valor perlaborativo, com valor para o pensamento clínico em psicanálise. É assim que faz sentido a afirmação de Fédida de que é na “negatividade operatória do conceito que se constitui o discurso da teoria”, assim como a idéia de “uma função psicoterapêutica da teoria” (Fédida, 1978).

A estas alturas, ao tomarmos distância de uma idéia toda positiva da teoria psicanalítica, ao questionarmos a sua objetividade, temos que ver se não fomos para o lado contrário, tendendo a considerá-la como uma produção “puramente” subjetiva do(s) analista(s). Aqui vou de novo recorrer ao meu feiticeiro de hoje, Fédida.

A transferência, observa ele, é reconhecimento da inter-subjetividade. A transferência é palavra ou ato dirigido a um outro, qualquer que seja sua configuração imaginária, na expectativa (crédula, diria Freud) de uma resposta. Posto isso, Fédida faz uma boa peripécia verbal, ao dizer que este “inter” é o que cria o “entre” da análise, tirando o analisando da “posição alucinatória intra-subjetiva”, do fechamento onírico. É assim que, graças ao referente real, à presença do analista em sua reserva e suas falas, que “a transferência pode não ser delírio”. É o que torna pertinente dizer que “a presença do analista não é senão poder de metáfora” (Fédida, 1978), ou seja, propiciadora da constituição de sentido à contracorrente da perseveração alucinatória solipsista.

Continuo apoiando-me muito de perto no pensamento de Fédida quando diz que “a intersubjetividade da análise”, como intervalo, este “inter” que é “entre”, “é a própria análise entre analista e analisando”. “Nestas condições, a transferência pode ser o transporte para o intervalo, ou seja, metáfora da qual a subjetividade precisa para se subtrair da atração pelo ausente que fazia dela o campo– intra-subjetivo– de uma busca sem saída…” (como alucinação, sonho, delírio tranferenciais) (Fédida, 1978).

Estas formulações de Fédida sobre a transferência e a análise servem para indicar que sair da alucinação do ausente imaginário (pessoa, objeto), leva à criação da ausência– pelo poder da metáfora– que, como negatividade, possibilita o “entre”, o intervalo, o intersubjetivo.

Re-encontramos, desta maneira, a importância do poder metafórico do conceito metapsicológico, depois de esclarecida a sua relação com a natureza do processo analítico. E, ao inverso, constatamos a perda de sua “operatividade técnica” quando é dele privado (do processo analítico), o que acontece, por exemplo, numa acepção positivada do conceito.

A teoria tem que ser “entre”, na medida em que, desta maneira, como na análise, o poder metafórico dos conceitos metapsicológicos opera a transformação do enquistamento alucinatório intra-subjetivo (da fantasia, do sonho, do delírio, do apego doutrinário) para a abertura intersubjetiva como plasticidade comunicativa do pensamento. Decorre daí a formulação lapidar de que “a intersubjetividade é o projeto de objetividade da teoria”.

Portanto, a objetividade na teoria metapsicológica é indissociável de uma subjetividade (intra? inter?) que está no cerne do trabalho da análise– como transferência–, tanto em sessão como no trabalho da teoria. Ou seja, mais simplesmente, “qualquer teorização analítica tem implícita a dimensão transferencial sem a qual se torna apenas um modelo teórico– entre outros– de compreensão dos fenômenos psicopatológicos”. Logo, a escrita teórica em psicanálise não está referida à objetividade de um referente em relação ao qual o sujeito se possa crer exterior, mas também não é uma escrita subjetiva.

Há, pela escrita do analista, uma re-interpretação “metáforo-transferencial” de seu trabalho, isto é, “um esclarecimento (éclairage) metapsicológico da teoria em obra de formação”, levando o “discurso analítico ao mais alto grau de formalização operatória dos conceitos”. A oposição entre teoria e técnica não se sustenta nesta maneira de considerar o pensamento metapsicológico.

O pensamento teórico de um analista inscreve-se numa história, a de sua análise, a de sua vida e à da própria psicanálise com seus avanços e seus impasses. As posições doutrinárias, operando sob o regime totalizante do eu ideal, impedem o texto teórico de se abrir à comunicação “ao considerá-lo como a própria teoria”, sem lugar para o diferente. Há então o risco de a técnica tornar-se a aplicação do sistema teórico, podendo a psicanálise virar uma psicanálise aplicada… à psicanálise. “Ora, a teoria analítica não pode se transformar senão nela mesma”, pois “ela é jogo– jogo transformado em jogo” (Fédida, 1978).

Teria Freud achado uma maneira específica de pensar e de teorizar a psicanálise– pelo recurso à feiticeira metapsicologia– que, se não o garantiu contra momentos de sínteses e de fechamentos totalizantes, momentos mais resistenciais, conseguiu salvá-lo a cada vez da estagnação doutrinária e de um pensamento homogeneizado em uma coerência “científica”, que se poderia tornar uma psicologia, mas jamais a psicanálise? Para esta, retomo Fédida, é “essencial o inacabamento de uma metapsicologia, sua disponibilidade aos remanejamentos e prolongamentos diversos, de sua transmissibilidade e operatividade técnica, de sua comunicabilidade” (Fédida, 1978).

Sabemos que a metapsicologia freudiana, ao invés de ser pega na malícia inventiva de seu movimento, pode também ser tomada como uma “idealidade teórica completa e concluída”, virando doutrina pela introdução de “uma função totalitária do ideal”, que fizesse dela “a norma ideal de toda teoria analítica”. E ela foi, de fato, objeto de várias tentativas visando a transformá-la em doutrina, em movimentos resistenciais à análise e aos quais nenhum desenvolvimento importante escapa ou escapou na história da psicanálise.

A cientifização objetivante da psicanálise, e assim vejo as tendências “experimentalistas”, assim como as concepções que apostam na objetividade dos conceitos, com base na eficácia clínica de seu uso, perdem de vista, a meu ver, que a psicanálise não se tornou uma “psicologia científica” (esta ficou como título de um “projeto”, atravessado todo ele, por sinal, pelo tear da metapsicologia).

Procurei aqui, apoiando-me muito de perto no pensamento de P. Fédida, dar fundamento à minha escolha da metapsicologia como “referente privilegiado para o debate das idéias da psicanálise” proposto por N. Marucco.

Nesta perspectiva podemos vislumbrar uma psicanálise que se possa “descarregar da psicologia como de uma forte carga (fardeau), assim como da oposição psicologia-biologia”, tema que sobre o qual me detive em um trabalho anterior (Menezes, 1995b).

Metapsicologia significa, diz Fédida, “ir em frente”, “ir para além”, “atravessar”, “liberar-se”, “transformar” e “converter”. E só posso concordar com ele quando diz que uma metapsicologia se torna inoperante se experimentalizada– no sentido de uma verificação psicológica– ou vulgarizada, na base de uma univocidade conceitual. Nas tendências à psicologização ou à biologização da psicanálise, encontramos sempre a dificuldade de resignação ao fato de a metapsicologia ser decididamente transgressiva em relação à psicologia e à biologia. Nesses empreendimentos, trata-se sempre de des-metaforizar o conceito metapsicológico, ou seja, de positivá-lo.

 

Referências

Fédida, P. (1978). Topiques de la théorie. In L´Absence. Paris: Gallimard, p. 267-268.        [ Links ]

Freud, S. (1984). Nouvelles conférences. Paris: Gallimard, p. 129. (Trabalho original publicado em 1932.)

_____ (1975). Analyse terminée et analyse interminable. Rev. Française de Psychanalyse, 39(3):379. puf. (Trabalho original publicado em 1937.)

Marucco, N. (2007). Entre a recordação e o destino: a repetição. Revista Brasileira de Psicanálise, 41(1):121-136.

Menezes, L. C. (2001). A idéia de progresso em psicanálise. In Fundamentos de uma clínica freudiana. São Paulo: Casa do Psicólogo, p. 99-111. (Trabalho original publicado em 1995.)

_____ (2001). Freud e Jung: A teoria da libido em questão. In Fundamentos de uma clínica freudiana. São Paulo: Casa do Psicólogo, p. 113-122. (Trabalho original publicado em 1995b.)

Mezan, R. (1995). Metapsicologia/fantasia em figuras da teoria psicanalítica. São Paulo: Escuta, p. 33-60.

Pontalis, J.-B. (1998). Cent ans après. Paris: Gallimard, p. 503.

Schaffa, S. (2006). Debate– Psicanálise: investigação e cura. Jornal de Psicanálise, 39(71):34.

_____ (2006). Pierre Fédida e a atualidade dos modelos freudianos: evolução da teoria e prática psicanalítica. Jornal de Psicanálise, 39(71):101-123;199.

 

 

Endereço para correspondência
Luís Carlos Menezes
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP
Rua Deputado Lacerda Franco, 300/134– Pinheiros
05418-000 – São Paulo SP - Brasil
E-mail:menezes@sbpsp.org.br

Recebido em 10.4.2007
Aceito em 30.11.2007

 

 

* Analista didata e membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.

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