SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.42 issue2The “squabble” (“prise de Bec”) between Beckett and Bion: the “experimental” insight in the glaringly darknessPluralism in theory and research: and what now? author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.42 no.2 São Paulo June 2008

 

ARTIGOS

 

Babel ou semiosfera psicanalítica: quais as vias de desenvolvimento do conhecimento na psicanálise?

 

Babel o semiosfera psicoanalítica: cuales son las vías de desarrollo del conocimiento en el psicoanálisis?

 

Babel or psychoanalytic semiosphere: which the ways of development of the knowledge in the psychoanalysis?

 

 

Paulo Duarte Guimarães Filho*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Inicialmente são referidos nossos estudos anteriores acerca da importância epistemológica de algumas convergências teórico-clínicas ocorridas na psicanálise, particularmente sobre a transferência e a contratransferência. A seguir, é examinado como a noção da semiosfera, proposta pelo lingüista russo Iuri Lotman, é um modelo valioso para a investigação e representação de aspectos dessas convergências e também dos processos de construção de outras noções na psicanálise. São dados dois exemplos para ilustrar nossa idéia. Primeiro, discutindo como a concepção da identificação projetiva, proveniente da psicanálise, pode ser usada para o entendimento de achados na área da neurociência, por Allan Schore; segundo, examinando como Susan Reid, num sentido inverso, parte de observações psicanalíticas sobre manifestações autísticas e as articula com dados de outras disciplinas sobre a síndrome do stress pós-traumático, para propor o “Distúrbio Autístico Pós-Traumático” (aptdd– Autistic Postraumatic Developmental Disorder).

Palavras-chave: Pesquisa conceitual; Confluências teóricas; Transferência/contratransferência; Identificação projetiva; Semiosfera.


RESUMEN

Inicialmente son referidos nuestros estudios anteriores sobre la importancia epistemológica de algunas convergencias teórico-clínicas que ocurren en el psicoanálisis, particularmente sobre la transferencia y contratransferencia. A seguir, se examina como la noción de semiosfera, propuesta por el lingüista ruso y también de los procesos de construcción de otras nociones en el psicoanálisis. Se dan dos ejemplos para ilustrar nuestra idea. Primero, discutiendo como el concepto de identificación proyectiva, proveniente del psicoanálisis, puede ser usado para el entendimiento que encontramos en el área de la neurociencia, por Allan Schore. Segundo, examinando como Susan Reid, en un sentido inverso, parte de observaciones psicoanalíticas sobre manifestaciones autísticas, y las articula con datos de otras disciplinas sobre la síndrome del estrés pos-traumático, para proponer el “Disturbio Autístico Pos-Traumático” (aptdd– Austistic Postraumatic Developmental Disorder).

Palabras clave: Investigación conceptual; Confluencias teóricas; Transferencia/contratransferencia; Identificación proyectiva; Semiosfera.


ABSTRACT

Initially, we describe our previous studies on the epistemological importance of some clinical and theoretical convergences which have occurred in psychoanalysis, particularly on the issues of transference and counter-transference. We then proceed to examine how the notion of semiosphere, proposed by the russian linguist Iuri Lotman, is a valuable tool for the investigation and representation of aspects of these convergences, as well as of the process through which other ideas are developed in psychoanalysis. We use two examples to illustrate our point. First, by discussing how the concept projective identification, originated in psychoanalysis, can be used to understand findings by Allan Schore in neuroscience. Second, , by examining how Susan Reid, in the opposite direction, departs from psychoanalytical observations about autistic manifestations, which she relates to information from other disciplines about the posttraumatic stress syndrome, to propose the Autistic Postraumatic Developmental Disorder (aptdd).

Keywords: Conceptual research; Theoretical convergences; Transference/contertransference; Projective identification; Semiosphere.


 

 

Em trabalhos anteriores (Guimarães Filho, 2000, 2003, 2006), partimos de verificações de determinadas concordâncias teóricas que vinham ocorrendo nos meios analíticos (Gabbard, 1995; Sandler, 1993; Schafer, 1994; Wallerstein, 1988, 2002), para estudar a importância desse acontecimento e especialmente do processo de investigação que tem levado a ele. Também destacamos como a ocorrência dessas concordâncias está intimamente associada ao reconhecimento de ferramentas conceituais que se vem mostrando mais eficazes em nossa prática clínica.

Nesta apresentação vou passar a usar as noções sobre a “semiosfera”, desenvolvidas pelo lingüista russo Iuri Lotman (1996), como um modelo que poderá ser bastante valioso para novos esclarecimentos sobre o processo de investigação que tem levado às referidas concordâncias teóricas. Ao lado disso, também iremos apontar, brevemente, como esse modelo poderá ser de uma utilidade bem mais ampla para o reconhecimento e a exploração de vias através das quais vem se dando, ou poderão se dar, construções mais consistentes na área do conhecimento psicanalítico. Nesse sentido, o modelo da “semiosfera” de certo modo é o oposto de um outro, o da “Torre de Babel”, que tem sido mais usualmente aplicado à psicanálise e que destaca elementos negativos em nosso campo de conhecimento. Passar, então, a reconhecer essas novas vias é um passo importante, não só na identificação dos meios através dos quais vem se dando o desenvolvimento da construção do conhecimento psicanalítico, como também no encontro de ferramentas mais eficazes para nossa prática clínica.

Para um melhor entendimento do uso que será feito do modelo da semiosfera, será útil acompanhar alguns dos passos que nos levaram a lançar mão dele. Com isso, também estaremos transmitindo aos colegas dados vivos sobre uma parte do trabalho realizado no Comitê de Pesquisa Conceitual da ipa, pois foi no workshop organizado por aquele Comitê, em novembro de 2006, em Frankfurt, que tivemos algumas contribuições mais significativas para chegar às presentes idéias.

No encontro em Frankfurt apresentamos o trabalho: “Uma pesquisa clínico-conceitual central na construção do conhecimento psicanalítico contemporâneo”. Nele, demos seguimento ao exame do significado de algumas concordâncias teóricas referidas acima. Examinamos, então, como são concordâncias especialmente em torno das concepções da transferência e da contratransferência e de como elas foram sendo alcançadas através de um amplo e variado trabalho, envolvendo os conceitos de identificação projetiva e de enactment contratransferencial (Gabbard, 1995). Um dos pontos a que temos dado maior destaque, em relação a todo esse processo, é o de que a existência dessas concordâncias implica que tenha havido um tipo de investigação muito peculiar, espontâneo e informal, realizado por setores diferentes e significativos da comunidade psicanalítica. Também tem sido bem difícil delimitar com clareza aspectos da natureza dessa investigação, diante de sua informalidade.

Foi em relação a esse último ponto que o modelo da semiosfera nos ajudou bastante. A chegada até ele foi uma das contribuições obtidas no workshop em Frankfurt. Na discussão do trabalho em que tratávamos das convergências em torno da transferência e da contratransferência, o colega italiano Luigi Maccioni chamou atenção para o fato de que o que estávamos verificando em relação ao caráter de uma circulação viva e dinâmica desses conceitos psicanalíticos tinha bastante a ver com idéias desenvolvidas pelo lingüista russo Iuri Lotman, a respeito dos conceitos lingüísticos e de outras produções no campo cultural.

A proximidade entre as idéias de Lotman e o que temos examinado em relação às construções psicanalíticas é exatamente o reconhecimento de como há processos com dinamismos bastante especiais, levando à natureza de transformações que as significações vão adquirindo. De fato, é de uma grande amplitude e complexidade aquilo que Lotman foi capaz de construir nessa área, chegando à sua idéia mais original e criativa: a da semiosfera. No título desta apresentação, levantamos uma interrogação entre “Babel ou semiosfera?”, em relação ao que ocorre com o conhecimento psicanalítico. No que se segue, iremos vendo como o uso do modelo da semiosfera poderá ser útil para um melhor reconhecimento de vias que vêm favorecendo ganhos de consistência do conhecimento psicanalítico e não de que este necessariamente corresponda ao quadro de uma Babel, como algumas vezes tem sido apontado. Ao mesmo tempo, não acreditamos que a noção de semiosfera possa ser aplicada de um modo reducionista à psicanálise, mas sim que há indicações de que temos em nossa área dinamismos próprios e peculiares da construção do conhecimento, alguns dos quais poderão ser mais bem identificados se levarmos em conta o que Lotman verificou em outras áreas da cultura.

Numa apresentação breve como esta, em que não se trata de estudar Lotman nem de uma aplicação mais ampla de suas contribuições à psicanálise, talvez o mais proveitoso seja nos voltarmos para alguns exemplos concretos de como a semiosfera, como um modelo, pode auxiliar-nos para um melhor reconhecimento de vias, por meio das quais se dão desenvolvimentos em relação ao conhecimento psicanalítico. Para isso, vamos precisar de uma outra contribuição, também obtida no workshop a que fizemos referência e que teve um papel central para chegarmos à figuração do modelo de uma semiosfera psicanalítica.

Falamos de figuração e, de fato, as figuras e as idéias relacionadas com elas, usadas no trabalho apresentado em Frankfurt por M. Leuzinger-Bohleber e T. Fishmann (2006) e também publicado no ijp: “What is conceptual research in psychoanalysis?”, foram muito proveitosas para termos uma representação bastante plástica e clara de como, na área dos fenômenos que estávamos estudando, se aplicava o modelo da semiosfera. Assim, se observarmos o gráfico abaixo, apresentado numa versão do trabalho que acaba de ser referido e que fora enviado anteriormente para o Comitê de Pesquisa Conceitual da ipa (fig. 1), notaremos que nele estão presentes diferentes formas de pesquisa conceitual, e que aí também são indicadas com setas, relações dessas formas específicas de pesquisa com diferentes áreas do campo em que se dão as trocas de informação na psicanálise. O propósito central daquele trabalho, no entanto, não esteve voltado para essas interações, mas sim para a definição e estudo de características de diferentes categorias das pesquisas conceituais.

 

 

Diferentemente do que se destaca na figura acima, a busca de uma representação de como se passam os fenômenos que levaram às convergências em torno da transferência e da contratransferência nos conduziram a fazer simplificações e mudanças naquela figura. A principal delas foi a introdução de uma nova área, designada como: “Pesquisa extra-clínica entre analistas” (fig. 2); também ganhou relevo o papel das setas indicativas de como o processo de criação de significações tende a ser muito vivo e com um dinamismo especial, na medida em que algumas das mudanças que são introduzidas nos conceitos, por diferentes autores, em determinados casos ganham uma aceitação mais ampla e podem ir sendo incluídas nos referidos conceitos que depois retornam ao uso no seio da comunidade de analistas, numa permanente e crescente circulação. Uma das principais vantagens de dispormos desse modelo é o de que ele vai nos permitir reconhecer que não estamos diante de um acontecimento fortuito, tanto na área da psicanálise, como, mais amplamente, na da cultura.

Um exemplo bem vivo de um funcionamento desse tipo pode ser encontrado nas próprias idéias que apresentamos neste trabalho, na medida em que nelas há o desenvolvimento do sentido de um conceito, através de um dos modos característicos de como isso se dá na própria semiosfera. No caso, detectamos alguns acontecimentos na área psicanalítica– as convergências conceituais e a pesquisa associada a ela– e foi possível chegar a uma melhor discriminação e formulação conceitual da natureza desses achados, através de sua correlação mesmos com o funcionamento da semiosfera; isto é, com idéias desenvolvidas e mais organizadas, a partir de outros fenômenos com paralelos com o que estávamos verificando, estudados por Lotman.

 

Exemplos da semiosfera psicanalítica

 

Até agora foram vistos, de uma forma geral, aspectos da aplicação do modelo da semiosfera à questão das concordâncias teóricas em torno dos temas da transferência e da contratransferência. A seguir, será necessário, ainda que de um modo sumário, um maior detalhamento dessa aplicação e das ocorrências no plano psicanalítico a que elas se referem. Depois desse detalhamento, na parte final desta apresentação, vamos continuar aproveitando do que é mostrado na figura 2, para dar dois outros exemplos aspectos do funcionamento do modelo de uma semiosfera psicanalítica. O primeiro deles estará voltado para um movimento da esquerda para a direita no gráfico acima, indicado pela seta vermelha mais larga. Ela vai da área da pesquisa clínica na situação analítica, no caso sobre o conceito de identificação projetiva, em direção ao uso que ele vem tendo no campo da neurociência, portanto na área da pesquisa interdisciplinar.

O outro exemplo na parte final terá como um dos seus objetivos vermos uma outra situação no modelo da semiosfera psicanalítica, além daquela da transferência-contratransferência que vem sendo seguida mais amplamente. Para isso, introduzimos na figura 2 (através das caixas e setas azuis) uma das interações relevantes que se vem dando em torno dos transtornos globais do desenvolvimento e que levou Susan Reid (1999), participante do Autism Workshop, na Clínica Tavistock, em Londres, a propor a “Autistic Post-Traumatic Developmental Disorder” (aptdd).

Voltando, agora, ao que vem ocorrendo com a transferência e a contratransferência, uma noção necessária para uma aplicação mais detalhada do modelo da semiosfera nessa área será aquela em que Lotman nos diz que, no estabelecimento das significações, é comum termos um primeiro momento em que se dá uma apreensão dos fenômenos de acordo com seus aspectos mais concretos; num segundo tempo, passa a existir outro tipo de trabalho mental com essas apreensões, distanciado do contato mais direto, aí se incluindo uma discriminação e maior categorização dos fenômenos, bem como a formulação de outras de suas características.

Tais modos de funcionamento, com suas conseqüências no estabelecimento das sig nificações, ocorrem em muitas oportunidades no plano dos fenômenos culturais, e Lotman nos dá vários exemplos deles em seus trabalhos. Tendo em vista essas noções, poderemos passar a seguir algumas das vias que foram levando às atuais convergências em torno da transferência e da contratransferência. Começando com um momento inicial de apreensão mais concreta dos fenômenos considerados, deveremos nos voltar para um trecho do trabalho de Freud, de 1912, sobre a “Dinâmica da transferência”, em que ele nos diz:

Os impulsos inconscientes não querem ser recordados, do modo como é desejado no tratamento, mas se esforçam para serem repetidos, de acordo com a atemporalidade do inconsciente e de sua capacidade de alucinação. Do mesmo modo como acontece nos sonhos, o paciente encara os produtos do despertar de seus impulsos inconscientes como presentes e reais; ele procura colocar suas paixões em ação, sem levar em conta a situação real (Freud, 1912).

Podemos pensar que nesse trecho, bastante breve, estão presentes referências de Freud a facetas dos fenômenos transferenciais, cuja significação e papel na clínica psicanalítica só foram apreendidos de um modo mais global por ele nesse momento. Refiro-me, por exemplo, a como Freud diz que os pacientes procuram realizar seus impulsos inconscientes transferenciais, buscando colocar suas paixões em ação, sem levar em conta a situação real. Aí está presente, também, a menção à natureza alucinatória dessas mobilizações. De certo modo, poderia ser visto como está implícita nesses apontamentos a noção de que as mobilizações transferenciais tendem a arrastar com elas as contratransferenciais. É bem sabido, porém, que Freud não fez essas articulações e que a contratransferência ocupou um lugar bem restrito em seus trabalhos.

Embora seja relativamente simples falar do peso dessa relação, depois de ter-se dado sua elucidação, de fato houve um amplo e longo trabalho em diferentes correntes de pensamento na psicanálise para que isso fosse ocorrendo. Aqui, o modelo da semiosfera poderá nos ajudar a distinguir áreas desses fenômenos que foram desbravadas mais profundamente por determinados exploradores e de como outros autores foram promovendo alguns acréscimos e a circulação das concepções assim desenvolvidas. No mesmo modelo, Lotman chama bastante nossa atenção para a importância das áreas limítrofes ou de encontro entre sistemas de informação que têm diferenças, mas também alguns pontos de contato entre si, pois é freqüente que as trocas nessas fronteiras levem a acréscimos e mudanças nas significações. Na situação que estamos estudando na psicanálise, poderemos nos voltar, por exemplo, para o fato de que a criação da concepção da identificação projetiva, por Melanie Klein (1946), passou a fornecer elementos especialmente valiosos para a elucidação de formas por meio das quais se dava aquilo apontado por Freud na citação acima, a respeito de como os pacientes procuravam pôr em ação suas paixões, atuando sobre os objetos dos seus impulsos inconscientes, sem levar em conta a realidade.

Poderemos continuar a ver como modos de alteração da significação, como os usualmente encontrados na semiosfera, continuaram a se dar em relação a esse conceito, se levarmos em conta que na sua formulação inicial por Klein (1946), o que era apreendido com maior peso dizia respeito a situações mentais primitivas, intoleráveis para os pacientes, e que então eram projetadas no analista. Quanto ao modo como ocorreram as articulações dessa noção com a transferência e a contratransferência, é bem difícil delimitar com precisão esse processo, mas alguns de seus marcos podem ser reconhecidos, com as alterações das significações aí envolvidas. Um passo importante foi o trabalho pioneiro de Paula Heimann (1950) sobre a contratransferência. Embora ela não faça aí uma ligação explícita entre as duas noções, é possível imaginar que seu contato com o trabalho com a identificação projetiva, no interior do grupo kleiniano, tenha contribuído para que Heimann apreendesse, de um modo mais claro, as ligações entre a transferência e a contratransferência.

Ao mesmo tempo, esse trabalho de Heimann serviu para o desenvolvimento, mais tarde, da noção de role-responsiveness, por parte de Sandler (1976). Empregando o modelo da semiosfera, como estamos fazendo agora, ele pode levar-nos a reconhecer um papel muito especial para esse trabalho de Sandler. Isso se dá na medida em que nele esse autor inglês reconheceu os laços entre sua noção da role-responsiveness e a da identificação projetiva, mas, ao mesmo tempo, também distinguiu as diferenças existentes, na medida em que as situações estudadas por ele tratavam de funcionamentos inconscientes mais estruturados dos pacientes, tendendo a gerar mobilizações correlatas no analista. No fundo, pode ser pensado que Sandler captou novas facetas dos fenômenos que também eram apreendidos pelo conceito de identificação projetiva, de modo que isso, direta ou indiretamente, veio a contribuir para a ampliação das ferramentas conceituais referentes a essa área da psicanálise.

Uma das vias seguidas por esse processo na semiosfera psicanalítica pode ser vista no modo como, embora o termo role-reponsiveness não tenha tido um uso mais amplo, mais tarde isso veio a acontecer com uma noção bastante semelhante, a do enactment contratransferencial, desenvolvida entre autores norte-americanos. Gradativamente, esse termo passou a ser usado amplamente na descrição de funcionamentos inconscientes do analista, estimulados por mobilizações correlatas do paciente. Como indicou Gabbard (1995), essa noção, juntamente com a da identificação projetiva, passou a ter um papel central para um entendimento comum da contratransferência, em diferentes áreas psicanalíticas.

Sem dúvida que é muito mais amplo o processo de trocas de informação, relacionado com o tema em foco. O propósito agora não é, porém, o de um exame mais completo dessa questão, mas sim de vermos a utilidade de um modelo como o da semiosfera, para o acompanhamento de muitas das vias seguidas na construção do conhecimento em relação a esses temas. Poderiam ser mencionadas, ainda, algumas das ampliações mais significativas que o conceito de identificação projetiva veio a experimentar no interior do campo kleiniano, particularmente a partir do trabalho de Bion (1965, 1970). Com ele, a identificação projetiva deixou de ser vista como um processo essencialmente evacuativo, para ter também uma função comunicativa. É através dela que o bebê transmite situações emocionais para a mãe, e esta, por meio da bem conhecida noção de Bion da rêverie, vai acolher os estados mentais da criança, apreender sua significação e poder dar o devido retorno para o bebê.

De certa forma, esses novos componentes, introduzidos por Bion no conceito de identificação projetiva, levaram também a uma aproximação sua com a noção, já vista, de role-responsiveness de Sandler e, posteriormente, com a do enactment contratransferencial. Há aí, então, mais uma situação importante em que a aproximação entre concepções com paralelos entre si vai levando à ampliação de cada uma delas ou ao desenvolvimento de outras entidades conceituais associadas, como ocorre, no caso, com o que foi passando a se dar em relação às idéias sobre a contratransferência.

Retomaremos, agora, o que já assinalamos na apresentação da figura 2, para dar outra indicação de como a visão de conjunto que o modelo da semiosfera nos fornece pode ajudar a detectar áreas importantes, mas ainda incipientes, de trocas de informação. Usando aquele modelo, será possível seguirmos correlações que vêm sendo feitas muito recentemente na neurociência, com a concepção da identificação projetiva que estamos acompanhando neste trabalho. Um dos autores que vêm fazendo essas correlações é Allan Schore (2003), particularmente no capítulo que tem por título: “Clinical implications of a psychoneurobiological model of projective identification” e faz parte do seu livro Affect regulation and the repair of the self. Nesse texto, uma das questões que Schore examina é como funções e áreas do hemisfério cerebral direito se desenvolvem e entram em ação mais cedo, participando especialmente de interações emocionais pré-verbais e das regulações afetivas nesse período inicial da vida. Tudo isso se dá em relação a fenômenos que basicamente correspondem ao que tem sido apreendido na psicanálise através da concepção da identificação projetiva, e essa noção teve um papel de destaque para que Schore pudesse apreender o sentido de muito s dos dados que ele foi obtendo no plano neurobiológico. Ao lado disso, esse autor também se refere a outras verificações em relação a essas manifestações, como, por exemplo, diante de situações de estresse ou trauma, um primeiro momento de superestimulação do sistema nervoso simpático, com maior gasto de energia e uma intensificação das emoções correspondentes e que, se não houver uma continência adequada, podem levar a um segundo tempo de funcionamento parassimpático, com conservação de energia, hiperinibição de emoções e desencadeamento de estados dissociativos. Tudo isso, segundo Schore, “representa o mecanismo de identificação projetiva operando em tempo real”.

Os poucos elementos vistos acima podem levar-nos também a pensar em outras coisas. Uma delas é como eles contrariam a noção, bastante presente no campo das chamadas hard-sciences, de que na neurociência é que se poderia encontrar um respaldo para as concepções psicanalíticas; o que estamos vendo, ao contrário, é uma noção bastante consistente da psicanálise, a da identificação projetiva, servindo para que se apreenda o sentido de verificações da neurociência e para a orientação de investigações nesse campo. Em relação a isso, a noção da semiosfera se mostra bem mais flexível e operativa, pois, de acordo com ela, o que temos aí é um encontro na fronteira de dois campos de significação distintos– a psicanálise e a neurociência –, mas com pontos de contato entre eles, de modo que a concepção da identificação projetiva, estabelecida na psicanálise, ao se encontrar com dados da neurociência, empresta novos significados a eles. Na figura 2, isso está representado pela seta larga vermelha, indo da esquerda para a direita, nesse setor do modelo da semiosfera psicanalítica. Ao mesmo tempo, há a possibilidade de que essas novas noções aí formadas gerem acréscimos que retornariam para a área psicanalítica, num movimento da seta pontilhada vermelha para a esquerda, tanto em direção ao setor dos conceitos, como da própria situação analítica.

O outro exemplo que escolhemos, da sugestão da síndrome da “Autistic Post-Traumatic Developmental Disorder” (aptdd), por Susan Reid (1999), só será vista aqui muito resumidamente, visando também à apresentação de uma situação num sentido inverso ao da anterior. No caso, Reid aproveita dos amplos estudos clínicos e neurobiológicos existentes sobre a “Síndrome do Stress Pós-Traumático” (ptsd) para, tendo esses dados, usá-los para o reconhecimento e a identificação de manifestações de crianças autistas na situação analítica, chegando à proposta de uma síndrome específica dentro desse quadro: a aptdd. Sem entrar no mérito da sugestão de Reid, ela serve aqui para ser vista como outro exemplo do processo de desenvolvimento da significação de determinados conceitos, no interior do modelo da Semiosfera. Na figura 2, uma parte desses elementos é representada pela seta larga azul, que vai da direita para a esquerda, indicando que nesse caso são conceitos que têm sua força ligada ao campo da neurociência e que, ao serem levados para os dados da situação analítica possibilitaram a proposta da aptdd. Ao mesmo tempo, as coisas não se restringem a isso, pois essas noções se originaram e depois são levadas novamente a um campo bastante consistente de pesquisa extra-clínica entre analistas, o “Tavistock Autism Workshop”, no processo permanente de circulação, que o modelo da semiosfera serve muito bem para representar.

 

Referências

Bion, W. R. (1965). Learning from experience. Basic Books: New York.        [ Links ]

______ (1970). Secondt thoughts. Heinemann Medical Books: London.

Freud, S. (1912). The dinamics of transference. SE, 7.

Gabbard, G. (1995). Countertransference the emerging common ground. Int. J. Psychoanal.,76:475-485.

Leuzinger-Bohleber, M. & Fischmann, T. (2006). What is conceptual research in psychoanalysis?Int. J. Psychoanal.,87:1355-1386.

Lotman, I. M. (1996). La semiosfera. Madrid: Ediciones Cátedra.

Gabbard, G. (1995). Countertransference the emerging common ground. Int. J. Psychoanal.76:475-485.

Guimarães Filho, P. D. (2000). A psicanálise em tempo de maturidade? O que nos mostra um certo olhar epistemológico. Rev. Bras. Psicanal., 34(1):9-24.

______ (2003). Recent theoretical convergences in psychoanalysis and their epistemological importance. Int. J. Psychoanal.,84:1189-1202.

______ (2006). A central clinical conceptual research into the construction of contemporary psychoanalytical knowledge. Workshop of ipa research conceptual committee. Frankfurt.

Heimann, P. (1950). On counter-transference. Int. J. Psychoanal., 31:81-84.

Klein, M. (1946). Notes on some schizoid mechanisms. Developments in psychoanalysis. Hogart Press: London.

Reid, S. (1999). Autism and trauma: autistic post-traumatic developmental disorder. In Alvarez, A. & Reid, S. (eds.). Autism and personality. Routledge: London.

Sandler, J. (1976). Countertransference and role-responsiveness. Int. Rev. Psychoanal.,3:43-47.

______ (1993). On communication from patient to analyst: not everything is projective identification. Int. J. Psychoanal.,74:1097-1107.

Schafer, R. (1994). One perspective on the Freud-Klein controversies 1941-45. Int. J. Psychoanal.,75:359-365.

Schore, A. N. (2003). Affect regulation and the repair of the self. Norton. New York.

Wallerstein, R. S. (1988). One psychoanalysis or many? Int. J. Psychoanal., 69:5-21.

______ (2002). The trajectory of psychoanalysis: a prognostication. Int. J. Psychoanal., 83:1247-1267.

 

 

Endereço para correspondência
Paulo Duarte Guimarães Filho
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP
Rua João do Rio, 45, Vila Madalena
05417-090 – São Paulo SP – Brasil
E-mail: pduartegf@uol.com.br

Recebido em 18.3.2008
Aceito em 3.6.2008

 

 

* Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.

Creative Commons License