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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.42 n.2 São Paulo jun. 2008

 

INTERCÂMBIO

 

Pluralismo na teoria e na pesquisa: e agora?12

 

Pluralismo en la teoría y en la investigación: y ahora?

 

Pluralism in theory and research: and what now?

 

 

Anna Ursula Dreher3

German Psychoanalytical Association

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Há bastante tempo tem havido discussões a respeito de um pluralismo nas teorias psicanalíticas. A autora afirma existir um segundo pluralismo, a saber: aquele que se dá no campo da pesquisa analítica. Observações introdutórias sobre o desenvolvimento da pesquisa conceitual servem de referência para iluminar os dois pluralismos, relacionando-os ao debate entre Green e Wallerstein a propósito do common ground em psicanálise e também a considerações sobre o status científico da psicanálise, bem como sobre certos entendimentos atuais a respeito da pesquisa analítica. A psicanálise, na condição de ciência “entre natureza e cultura” (nos termos de Green e Wallerstein), precisa levar em conta tanto a natureza quanto a cultura, e não só no âmbito dos conceitos teóricos, mas também na pesquisa e na metodologia. Seria desejável, então, tomar a existência desses dois pluralismos de forma positiva, compreendendo um e outro como recursos na busca da melhor solução dos problemas. A autora critica a idéia de um common ground imutável em psicanálise. Vê a obra freudiana como um common ground “histórico”, entendendo a imagem de homem de Freud [Menschenbild] e seu interesse pelo conhecimento [Erkenntnisinteresse] como possíveis pontos de apoio para um discurso analítico construtivo, a partir do qual um common ground deveria estar em constante elaboração. São discutidos os pré-requisitos para tal “discussão controversa” sistemática e para uma visão conexionista, sendo esta última vista como alternativa, a ser trabalhada ainda, ao fundamentalismo ou à aceitação resignada de um pluralismo arbitrário.

Palavras-chave: Commom ground em psicanálise; Pluralismo na teoria e na pesquisa analítica; Pesquisa conceitual; Discussões controversas; Conexionismo.


RESUMEN

Hace un buen tiempo venimos teniendo una discusión analítica sobre el pluralismo en las teorías. La autora afirma existir un segundo pluralismo, a saber: aquel que ocurre en el campo de la investigación analítica. Observaciones introductorias sobre el desarrollo de la investigación conceptual sirven de referencia para iluminar los dos pluralismos, relacionándolos con el debate de Green y Wallerstein sobre el common ground en psicoanálisis y también con consideraciones sobre el status científico del psicoanálisis, así como sobre algunos entendimientos actuales sobre la investigación analítica. El psicoanálisis como una ciencia “entre la naturaleza y la cultura” (en las palabras de Green y Wallerstein) precisa tener en cuenta tanto la naturaleza como la cultura, y no solamente en el ámbito de los conceptos teóricos, pero también en la investigación y en la metodología. Sería deseable, entonces, tomar la existencia de estos dos pluralismos de manera positiva, ambos como recursos para buscar la mejor solución de los problemas. La autora critica la idea de un common ground inmutable en psicoanálisis. Destaca la obra freudiana como un common ground histórico, entendiendo la imagen del hombre de Freud [Menschenbild] y su interés en el conocimiento [Erkenntnisinteresse] como posibles puntos de apoyo para un discurso analítico constructivo, a partir del cual un common ground debería ser elaborado repetidamente. Se discuten los pré-requisitos para una tal “discusión controvertida” sistemática y para una visión conexionista, siendo esta última vista como alternativa, a ser trabajada, al fundamentalismo o a la aceptación resignada de un pluralismo arbitrario.

Palabras clave: Common ground en psicoanálisis; Pluralismo en la teoría y la investigación analítica, Investigación conceptual; Discusiones controvertidas; Conexionismo.


ABSTRACT

For a long time there has been discussion about the pluralism of analytic theories. The author proposes that there is a second pluralism, namely the one in the analytic research field. Introductory remarks on the development of conceptual research serve as reference to highlight the two pluralisms, relating to the Green-Wallerstein debate about the common ground in psychoanalysis, and relating to considerations about the scientific status of psychoanalysis, and also about some current understandings of analytic research. Psychoanalysis as a science “between nature and culture” (in Green’s and Wallerstein’s words) would have to take both nature and culture into account, not only in its theoretical concepts, but also in research and methodology. In doing so it would be desirable to understand both pluralisms positively, as resources in the search for the best problem solutions. The author criticises the idea of an unchangeable common ground in psychoanalysis. She points to Freudian work as historical ground, understanding Freud’s image of man [Menschenbild] and his interest in knowledge [Erkenntnisinteresse] as a possible common backdrop for a constructive analytic discourse– from which a common ground would have to be worked out anew again and again. The prerequisites for such systematic “‘controversial discussions” and for a connectionist view are discussed, which is seen as a workable alternative to fundamentalism or to a resigning acceptance of an arbitrary pluralism.

Keywords: Commom ground in psychoanalysis; Pluralism in analytical theory and research; Conceptual research; Controversial debates; Connectionism.


 

 

Para muitos analistas que trabalham principalmente na clínica e que se interessam por questões relativas à pesquisa, nossa literatura sobre pesquisa analítica com o tempo se tornou provavelmente uma literatura de consulta não muito fácil. Isso se deve não só ao interjogo metodológico dos aspectos conceituais e empíricos de qualquer tipo de pesquisa, mas também à existência de muitas áreas temáticas diferentes de pesquisa psicanalítica: pesquisa em psicoterapia com análise de processos e resultados, pesquisa de desenvolvimento e pesquisa histórica ou, por exemplo, pesquisa conceitual. Existem muitos estudos interessantes a respeito dos mais variados tópicos e usando diferentes paradigmas em pesquisa. Podem ser encontradas, também, diferentes propostas no sentido de organizar o campo de pesquisa psicanalítica com muitas classificações e divisões.

Dessa forma, posso tentar somente iluminar um pouco esse vasto campo. Gostaria de fazê-lo a partir de uma perspectiva básica, isto é, uma perspectiva epistemológica. Reflexões desse tipo são necessárias de tempos em tempos, mas infelizmente são também um tanto quanto áridas. André Green tinha isso em mente quando afirmou: “Refletir a respeito dos postulados fundamentais subjacentes às teorias divergentes não é a atividade preferida de psicanalistas” (Green, 2005, p. 629). Com certeza, não é a atividade “preferida”, mas sabemos que infelizmente o universo do Mais além do princípio do prazer não pode ser ignorado… Decididamente, não por muito tempo.

Gostaria de iniciar a presente reflexão partindo do exemplo da pesquisa conceitual. Iniciarei com alguns comentários sobre o desenvolvimento dessa área de pesquisa, ao longo dos quais me referirei a minha própria maneira de fazer pesquisa conceitual. Esta introdução será um breve desenvolvimento de algumas idéias sobre ciência e pesquisa em psicanálise, com o sentido de discutir– para além do contexto pluralista de nossas teorias analíticas e do debate a respeito do common ground– um segundo pluralismo no campo da pesquisa psicanalítica. Encerrarei pleiteando uma visão “conexionista”.

 

Algumas idéias sobre o desenvolvimento da pesquisa conceitual

Meu primeiro contato com a pesquisa conceitual se deu nos anos 80, no Sigmund-Freud-Institute em Frankfurt, Alemanha, através de um projeto de pesquisa iniciado em conjunto com Joseph Sandler, projeto este que discutia métodos para investigação do uso de conceitos. Naquele tempo, a mera expressão “pesquisa conceitual” provocava certo ceticismo entre os pesquisadores analíticos. Pesquisar o inconsciente, processos e resultados de análises, desenvolvimento da criança e mesmo doenças específicas era tido como possível– mas e conceitos? Também? Como isso poderia ser feito? Nosso objeto de pesquisa não era somente considerado estranho para muitos, mas não estava de acordo com o Zeitgeist: a partir dos anos 70, o empirismo neopositivista foi se fazendo presente no campo da pesquisa analítica, acompanhado, não por acaso, de um aumento do medicocentrismo (cf. Jacoby, 1985; Parin & Parin-Matthèy, 1986). Este com freqüência considerava a psicanálise simplesmente uma forma de psicoterapia praticada por médicos ou psicólogos e, por exemplo, não via nenhum problema em adaptar a nossa nosologia ao sistema de Classificações Internacionais de Doenças (cid).

Não surpreendia, então, que naquele tempo o nosso projeto de “pesquisa conceitual” com freqüência fosse acolhido por um tipo de compreensão que em geral igualava pesquisa psicanalítica a pesquisa de psicoterapia analítica. Os pesquisadores empírico-quantitativos de psicoterapia queriam investigar aspectos mensuráveis da realidade interna e externa através do uso de métodos objetivos e confiáveis, mas não tomavam o uso de conceitos analíticos como um tópico de estudo explícito. Os clínicos também fazem pesquisa, na medida em que se examinam e examinam seus pacientes e a situação analítica– por exemplo, estudando a maneira como os processos inconscientes atuam no interjogo de transferência e contratransferência. Porém os clínicos geralmente também não fazem do uso de conceitos analíticos um tópico de suas pesquisas. Nosso grupo de pesquisa em Frankfurt considerou, entretanto, que um exame bem fundamentado metodologicamente sobre a variedade de usos de conceitos analíticos e de sua transformação ao longo do tempo, bem como sobre o uso impreciso e às vezes contraditório desses conceitos, seria um empreendimento válido e compensador.

O que entendemos por “pesquisa conceitual”?

Ao longo do tempo essa expressão passou a se tornar familiar para muitos; no entanto, também sofreu um destino similar àquele já conhecido a partir dos conceitos analíticos: diferentes autores a empregam com diferentes sentidos. “Pesquisa conceitual” na verdade é uma contração que originalmente não designava os aspectos conceituais de uma pesquisa, mas antes:

• a investigação sistemática de diferentes usos de conceitos em diferentes culturas ana líticas;

• a investigação da mudança histórica do sentido de um conceito ao longo do tempo; e

• a tentativa de formular propostas para um uso razoável, clinicamente rico e com sentido (para uma introdução sistemática, cf. Dreher, 2005).

A expressão está associada ao nome de Joseph Sandler, que a introduziu na literatura analítica. A constante diferenciação e o desdobramento dos nossos conceitos foram um foco nesse tipo de estudo conceitual proposto por Sandler e depois levado a cabo por diferentes colegas desde os anos 60. Teve início com o assim chamado “grupo conceito” do Hampstead Index (Anna-Freud Centre, em Londres), prosseguiu com o grupo de pesquisa de Frankfurt e incluiu o trabalho realizado com Anne-Marie Sandler sobre o inconsciente passado e presente, assim como sobre as relações objetais internas (Sandler & Sandler, 1999).

A validade e a utilidade dos conceitos psicanalíticos precisam ser encontradas na prática clínica. Sandler estava convencido de que a situação analítica não é somente o lugar em que isso se justifica, mas é também o lugar em que surgem os conceitos e onde seu sentido pode se alterar. Essas alterações, no início, tendem a ocorrer de forma silenciosa e implícita. O grupo de pesquisa de Frankfurt (Sandler et al., 1987) elaborou um conjunto de métodos no sentido de deixar mais permeáveis os limites entre o uso implícito e o explícito de conceitos pelos analistas– entre tentativas exploratórias e cuidadosas na situação analítica e as comunicações “oficiais” sobre como os conceitos são compreendidos. Somente através da publicação novas idéias podem se tornar explícitas, e somente através do debate essas proposições podem ser criticadas (Canestri, 2006).

Uma das intenções básicas do trabalho de pesquisa de Sandler era capturar esses processos de conceituação à medida que ocorriam ao longo do trabalho clínico, tendo como resultado direto a elaboração de sugestões sobre como melhorar o uso de conceitos. Por sua vez, esse trabalho– especialmente o trabalho conjunto em Frankfurt sobre as mudanças no uso do conceito de “trauma psíquico”– tornou-se mais tarde um exemplo prático e um ponto de partida para que eu pudesse introduzir reflexões epistemológicas e metodológicas sobre o papel e o status de tal programa de pesquisa conceitual (Dreher, 2000). Normalmente, usamos nossos conceitos analíticos quase automaticamente, sendo que eles são nossas categorias quando descrevemos, organizamos e comunicamos nossas idéias e experiências em linguagem. Estamos então seguros desse uso que fazemos, em geral sem termos consciência de problemas enquanto não saímos da nossa respectiva cultura analítica. É necessário certo esforço para assumir uma atitude distanciada e reflexiva quando nosso próprio uso de conceitos está sendo posto a prova.

Problema talvez muito humano, obviamente, ao qual Lewis Carroll certa vez se referiu com as seguintes palavras: “Quando eu uso uma palavra”– Carroll colocou Humpty Dumpty falando, em tom bastante raivoso, para Alice–, “ela significa somente aquilo que eu escolhi para significar. Nem mais nem menos.” “A questão”, responde Alice, “é se você pode fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes.” “A questão”, retruca Humpty Dumpty, “é quem é que manda aqui. Eis tudo” (Carroll, 1872/1960-70, p. 269).

Certamente, quando alguém é criticado pelo uso que faz de um conceito, isso pode provocar diferentes reações afetivas. Alguns reagem com um “tom bastante raivoso”, e freqüentemente se faz a seguinte pergunta: a quem pertence o monopólio da interpretação dos conceitos? Quem é que manda aqui nesta casa? Naturalmente não são somente os fatores “pessoais” que fazem do estudo de conceitos algo tão complicado. Existem também fatores que são uma conseqüência do fato de a psicanálise estar inserida em diferentes culturas, em diferentes sistemas médicos e, conseqüentemente, econômicos, de diferentes países etc. Do ponto de vista epistemológico, trata-se das conseqüências do fato de nossos conceitos estarem inseridos em diferentes jogos de linguagem.

Sobre a transformação de conceitos

Conceitos se transformam– isso é algo que eles têm em comum tanto com teorias científicas quanto com visões de mundo. Freud encarou as transformações de seus conceitos com equanimidade: “O avanço do conhecimento […] não tolera nenhuma rigidez […] nas definições […], mesmo conceitos que foram estabelecidos em forma de definições são constantemente alterados no seu conteúdo” (Freud, 1915, p. 117). Ao longo da história da psicanálise, muitas teorias, modelos, conceitos e mesmo “conceitos básicos” tiveram de ser mudados. Mas nem tudo o que é velho é ruim, e nem tudo o que é novo é bom.

Green se refere à importância da “velha” e clássica literatura quando, de certa maneira expressando seu anseio, queixa-se de que Freud atualmente “não é mais um autor que valha a pena ser lido” (Green, 2005, p. 631). Green está certo, naturalmente; Freud deve continuar a ser lido, não por razões de idolatria, mas porque até os dias de hoje suas intenções e parte de nossa história psicanalítica permanecem preservadas nos nossos conceitos– e isso é especialmente verdadeiro com relação aos nossos conceitos clínicos. Resulta disso uma necessidade importante para nossa pesquisa: encontrar um equilíbrio prudente entre preservação e transformação no nosso “conhecimento avançado”.

Thomas Kuhn (1962) mostrou de forma convincente como os processos de transformação ocorrem nas teorias científicas. Esses processos não se dão somente de maneira linear e contínua, mas freqüentemente em forma de saltos, como as crises. Kuhn mostrou também que o progresso científico não acontece somente pelo acúmulo de novos achados da pesquisa em tempos de ciência normal, mas pode ser iniciado em função de uma mudança de paradigma– por exemplo, através de novos métodos ou de alterações na visão de mundo ou nas mentalidades científicas. São exemplos proeminentes de tais mudanças na vida científica os movimentos em direção às ciências cognitivas, à biologia evolutiva e, atualmente, em direção às neurociências. As mudanças nos conceitos ocorrem de maneira similar. Hoje podemos observar como os conceitos na pesquisa sobre memória cognitiva como “memória declarativa e procedural” gradualmente se mesclam aos nossos conceitos analíticos sobre a memória e o inconsciente.

Gostaria de sublinhar um achado importante nos estudos de Kuhn: as mudanças nas teorias científicas– e penso que isso é verdadeiro também em relação à mudança no sentido de conceitos– não se baseiam apenas em argumentos científicos. Certos parâmetros bem conhecidos e que não podem ser negligenciados são, por exemplo, as lutas por poder institucional, por prestígio e domínio ou, simplesmente, por verba de pesquisa. Outro parâmetro conhecido é um tipo de pensamento territorial, uma insistência em determinadas compreensões conceituais tais como foram codificadas por autoridades idea­lizadas. Todas essas influências que afetam o sentido dos nossos conceitos são às vezes opacas e de difícil apreensão. Constituem, no entanto, o pano de fundo dos diferentes usos que fazemos deles.

Problemas decorrentes do uso variado de conceitos– e uma tentativa de solução

A existência de diferenças até na compreensão de conceitos centrais não é avaliada da mesma forma pela comunidade analítica em geral. Para alguns, trata-se lamentavelmente de uma Babel de línguas; para outros, não é bem assim. Alguns reconhecem certo potencial evolutivo e criativo nessa multiplicidade; outros vêem nela um perigo para a consistência teórica. Existem boas razões para ambos os pontos de vista. Ainda assim, as queixas, para mim justificadas, a respeito de uma semântica vaga dos nossos conceitos e sobre seu uso inconsistente predominam já há algum tempo. Essas queixas nos tornam inegavelmente conscientes de um problema grave, a partir de um ponto de vista científico, com relação ao sentido desses conceitos. Persiste a seguinte questão: como podemos de fato garantir que estamos todos nos referindo ao mesmo fenômeno clínico e que todos queremos dizer o mesmo ao usar determinado conceito?

A idéia de que a pesquisa conceitual pode oferecer uma contribuição construtiva para solucionar o problema e, assim, talvez trazer ganhos tanto para o trabalho na esfera clínica quanto na esfera científica tem sido aceita por muitos psicanalistas contemporâneos. O Hampstead Index e mais tarde o grupo de pesquisa de Frankfurt inicialmente utilizaram a expressão de Sandler– “pesquisa conceitual”– somente como título de seu trabalho. No entanto, na última década, essa marca se estabeleceu por si mesma. Nesse sentido, “pesquisa conceitual” é de fato uma expressão que cresceu historicamente, mas não se trata, é óbvio, de uma marca protegida nem patenteada, e atualmente ela própria tem sido usada com diferentes sentidos. Seu uso abrange um espectro que vai desde reflexões conceituais até uma pesquisa conceitual sistemática.

Por essa razão, parece fazer sentido nos determos novamente, de forma mais detalhada, na história da origem da pesquisa conceitual. O que ela tem de específico? De fato, “pesquisa conceitual” se refere a determinado tipo de fenômeno empírico, a saber, o uso de conceitos. Descreve atividades relacionadas à investigação sistemática de conceitos analíticos no seu uso clínico e extraclínico. Considera-se, assim, que um conceito não existe por si só no mundo, mas se situa em conexão com outros conceitos num campo conceitual, e que não é usado de forma solipsista por analistas individuais, mas, sim, por membros de uma comunidade científica específica.

Nesse sentido, em primeiro lugar e acima de tudo, as questões empíricas precisam ser respondidas: além da questão de como eu compreendo e uso um conceito, preciso esclarecer como os outros o compreendem e usam. Conseqüentemente, o procedimento do nosso estudo de pesquisa de Frankfurt incluiu, ao longo das reflexões conceituais, sempre importantes, uma série de outros passos metodológicos e se orientou de acordo com as seguintes convicções:

• pesquisa conceitual, assim como outras atividades complexas de pesquisa contemporâneas, exige um trabalho de equipe de pesquisadores conectados através de um interesse de pesquisa comum– de preferência, oriundos de diferentes disciplinas e com diferentes perspectivas;

• além de selecionar conceitos de interesse, é necessário considerar uma “amostra” de usuários, a saber: quais os usuários do conceito são relevantes para responder às questões da pesquisa? Quais são os analistas? Quais são os especialistas e as pessoas de disciplinas afins?

• a coleta e avaliação de dados se baseiam num desenho de pesquisa que tem de especificar precisamente que tipo de dados deve ser obtido com a aplicação de que tipo de método, em que indivíduos e em qual período de tempo. O grupo de pesquisa de Frankfurt, que aqui serve somente de protótipo programático, implementou para a pesquisa do conceito de trauma, além de uma análise sistemática da literatura, entrevistas semi-estruturadas com uma série de especialistas em trauma. Em seguida, foi usado o método de discussão em grupo para avaliar os dados. Naturalmente, outros métodos– qualitativos e quantitativos, filológicos e hermenêuticos– também podem se usados.

Não existe pesquisa conceitual como procedimento padronizado, assim como não existe pesquisa psicoterápica nem experimentos como tal. Desse modo, a pesquisa conceitual não é um método concreto, mas um programa de pesquisa.

Com relação ao procedimento, ela é:

• empírica, por investigar e descrever o campo de sentido e o uso atual de um conceito no seu contexto de interesse;

• histórico-reconstrutiva, por traçar o desenvolvimento de um conceito através dos seus pontos de mudança essenciais;

• avaliadora, por discutir criticamente os dados coletados e elaborar os aspectos de sentido de um conceito que, a partir de uma perspectiva analítica, são indispensáveis, e talvez também por chegar a dar sugestões de um uso melhor dos conceitos.

Entende-se que esses aspectos podem ser apreendidos somente através de diferentes métodos, e nessa medida a pesquisa conceitual é sempre multimetodológica. Assim, a meu ver, quando a igualam à pesquisa qualitativa ou quando a demarcam em relação à pesquisa empírico-quantitativa, trata-se de uma compreensão errônea central nas discussões atuais sobre o status metodológico da pesquisa conceitual.

Talvez tenha ficado claro agora que a pesquisa conceitual, da maneira como foi conceituada, uso não só métodos qualitativos, mas também quantitativos. Métodos são meios para um fim, e a questão mais importante é se eles servem a esse fim. Outros tipos de pesquisa talvez se definam por métodos que lhes parecem aceitáveis. A “pesquisa conceitual se define por seu objeto, pelo uso de conceitos e por seu objetivo: o esclarecimento do sentido desses conceitos”.

Possíveis elementos de um programa de pesquisa conceitual

A primeira fase de um programa de pesquisa se dirige, portanto, aos métodos através dos quais se examinará a consistência lógica dos conceitos. Uma outra fase talvez diga respeito à mensuração objetiva e confiável do uso de conceitos, com o auxílio de instrumentos padronizados. Apesar disso, como o trabalho com conceitos está essencialmente ligado ao uso da linguagem e a aspectos de sentido, é óbvio que constituem aspectos centrais a análise de nossa literatura analítica, a interpretação das entrevistas de especialistas e a discussão crítica entre a equipe de pesquisa, isto é, a aplicação de métodos hermenêuticos com os quais, de todo modo, nós, analistas, estamos bastante familiarizados. Ao longo de tal processo de pesquisa, um conceito é testado repetidamente a partir de novos pontos de vista. Dessa forma, os respectivos conhecimentos prévios individuais do grupo de pesquisa, bem como o conhecimento conjunto adquirido sistematicamente pelo grupo no curso do trabalho, são úteis como pano de fundo. Esse procedimento tem como objetivo elaborar gradualmente o campo de sentido relevante a um conceito.

Tal “elaboração” [working through] torna-se, então, aquela “espiral progressiva” mencionada no contexto do Hampstead Index. A reflexão estruturada e a discussão dentro da equipe de pesquisa são parte e parcela do procedimento de uma pesquisa analítica. No entanto, não é tão óbvio que momentos interpretativos e discursivos sejam sistematicamente aplicados e considerados de importância decisiva. Porém, sem esse tipo de comunicação a respeito das regras do uso de conceitos e sem uma busca de consenso a respeito delas, seria difícil alcançar o objetivo da pesquisa conceitual, a saber: esclarecer o sentido dos conceitos.

Na história da psicanálise, houve várias tentativas de esclarecer conceitos no discurso, como os grupos de estudo sobre conceitos dos principais institutos analíticos norte-americanos e as mesas-redondas sobre conceitos individuais, sempre associados à idéia de superar os sentidos contraditórios ou ultrapassados dos nossos conceitos, bem como à idéia de fazê-los ajustarem-se aos novos desenvolvimentos. Na medida em que o objetivo é o consenso, às vezes tudo o que conseguimos é apenas isolar mais claramente as dissensões.

Fenômenos empíricos não se descrevem e nomeiam a si mesmos. A pessoa, o usuário do conceito, sempre está em jogo. É nesse sentido que existe uma dependência do sentido do conceito com relação a quem o está usando, à sua inserção em jogos de linguagem historicamente desenvolvidos e socialmente compartilhados.

Ao enfocar o discurso e o usuário do conceito (clínicos e pesquisadores), torna-se claro que a relação entre um conceito e o fenômeno empírico a ele pertencente, isto é, entre a linguagem e o mundo, não pode ser considerada uma relação de apenas dois dígitos. Antes, essa relação precisa ser vista como triangular, de acordo com a tradição semiótica e pragmática: temos o conceito, temos o fenômeno ao qual o conceito se refere e temos a pessoa que usa o conceito de acordo com sua compreensão. Sendo assim, o sentido do conceito está imerso em diferentes formas da vida humana e interage com elas. Uma consideração adequada de tudo isso nos tornará sensíveis ao fato de que o uso de um conceito é algo contigencial (depende então do Zeitgeist ou de mentalidades), o que, aliás, não deixa de ser um aspecto interessante da psicanálise internacional, na medida em que usamos nossos conceitos analíticos em diferentes continentes e culturas.

Nesse sentido, nas suas considerações a respeito dessa vinculação estreita com a cultura, os estudos conceituais podem se utilizar adicionalmente também da perspectiva da teoria cultural de Freud, o terceiro pilar clássico na história da teoria psicanalítica, ao lado das perspectivas clínica e metapsicológica.

Isso quanto às intenções de uma pesquisa conceitual. Independentemente de como essas intenções possam vir a ser postas em prática no futuro, podemos observar que tem havido uma maior sensibilidade com relação aos problemas existentes nessa área. Existe a tendência a entender a pesquisa sobre conceitos e seu uso como garantia de qualidade. Na medida em que muitos de nossos conceitos também são empregados fora da situação analítica, faz-se necessário, mais do que nunca, preservar os aspectos do sentido essencialmente analítico dos nossos conceitos.

Mas como é este nosso campo de pesquisa analítico no qual a pesquisa conceitual precisa encontrar seu lugar?

 

Algumas idéias sobre psicanálise, pesquisa e ciência

O que se entende por pesquisa em psicanálise?

Não somente os conceitos analíticos podem ter diferentes sentidos para os diferentes usuários; isso pode ocorrer também com os conceitos metodológicos. Conforme sabemos, não existe um entendimento uniforme a respeito do que seja “pesquisa” em psicanálise atualmente. Às vezes ela é entendida de forma solta, como uma metáfora; outras vezes, como um programa metodologicamente sofisticado– e cada caso abriga uma série de atividades sob sua marca. Se relacionamos isso somente à pesquisa sobre psicoterapia analítica, por exemplo, encontramos, numa extremidade desse amplo campo, um entendimento de pesquisa baseado exclusivamente no trabalho de Freud, enquanto na outra extremidade temos um entendimento de pesquisa que se orienta pelas idéias formuladas pelo empirismo neopositivista, pelo cognitivismo ou, ultimamente, pelas neurociências.

Isso abre um campo metodológico de tensão particularmente interessante entre, de um lado, uma visão orientada ideograficamente para casos individuais e únicos, e, de outro lado, uma visão orientada nomoteticamente para a coleta de amostras e leis universais– duas posições no campo de pesquisa analítica que são em geral relativamente difíceis de conciliar.

A psicanálise representa para alguns, de acordo com a convicção analítica clássica, um tipo específico de pesquisa pela sua própria prática: nós, analistas, pesquisamos processos inconscientes dos nossos pacientes e, na melhor hipótese, também os nossos próprios, e refletimos sobre nossos casos, publicando nossas reflexões muitas vezes em fascinantes estudos de caso. Gerações de analistas compartilharam essa auto-imagem que Freud expressou pela “conjunção entre o tratamento e a pesquisa” (Freud, 1927, p. 256).

Chamar qualquer analista também de pesquisador, conforme a afirmativa freudiana, ajuda a formar uma auto-imagem lisonjeira, mas, de acordo com uma compreensão moderna de ciência, isso pode ser considerado um uso algo problemático do termo pesquisa. Não de todo injustamente, esse entendimento de pesquisa é atualmente chamado de ingênuo, por se basear na compreensão de Freud do século xix sobre ciência. A compreensão sobre o que é pesquisa, sobre os critérios que uma pesquisa científica precisa alcançar, mudou desde os tempos de Freud.

Nesse sentido, os críticos com freqüência apontam uma série de deficiências nas assim chamadas pesquisas da conjunção: junto com o risco de um relato meramente seletivo ou distorcido– nas palavras de Grünbaum, “epistemologicamente contaminado”– da situação analítica (Grünbaum, 1988), um dos problemas indicados é que esse tipo de pesquisa geralmente é um empreendimento-de-uma-pessoa-só, que produz resultados não facilmente reproduzíveis nem criticáveis e cujos achados nem sempre podem ser reconstituídos, dada a insuficiência de informações. Sem dúvida, a idéia de um só pesquisador gerando hipóteses por si mesmo, colhendo e interpretando os dados e assim estruturando todo o conjunto do processo de pesquisa de forma individual não se coaduna facilmente com as convicções provindas de um entendimento de pesquisa orientado por padrões de intersubjetividade.

Por outro lado, os entendimentos modernos empiricamente orientados sobre pesquisa parecem ingênuos e deficientes a um pesquisador convicto da conjunção. Primeiro, porque o processo de pesquisa geralmente se encontra muito distante da situação analítica e também muito distante da experiência subjetiva direta; além disso, porque os processos inconscientes, que só podem ser inferidos por via de métodos hermenêuticos, agora devem ser apreendidos e medidos quantitativamente; e, ainda, porque muitas vezes o analista não ocupa um papel privilegiado no processo de pesquisa.

Quanto mais formos além da pesquisa psicoterápica pura e nos abrirmos para o campo completo de pesquisa em psicanálise, mais claro se torna que, já por várias décadas, tem crescido a convicção de que a psicanálise não pode se fechar diante das modernas idéias a respeito de pesquisa, tais como elas se desenvolveram ao longo do século xx nas ciências naturais, humanas e sociais. Tem-se admitido cada vez mais o fato de que podem ser de interesse para nós não apenas a via de pesquisa genuinamente analítica, mas também a prática de pesquisa gerada, por exemplo, pelo empirismo e pelo cognitivismo, assim como, e sobretudo, pelas ciências hermenêuticas. No entanto, a importância da prática analítica nas várias áreas de pesquisa permanece inquestionável para a maioria de nós: a situação analítica, com sua ênfase na subjetividade, na interação, na experiência compartilhada e nos processos inconscientes, continua a ser o centro, a base empírica e também o lugar indispensável de justificação. Essa particularidade sem dúvida põe um freio na importação de outras tecnologias de pesquisa para a psicanálise.

Para concluir este resumo: há uma ampla e múltipla compreensão do que é pesquisa em psicanálise (cf. também Leuzinger-Bohleber et al., 2003a), e, sempre que se empreende essa discussão, está presente o entendimento sobre o que é pesquisa, isto é, a perspectiva epistemológica. Logo, seria desejável que os debatedores estejam atentos a isso e expliquem com mais freqüência o que entendem por pesquisa. De outra parte, isso sem dúvida está associado ao que efetivamente tomam por “científico”. Pois quem fala em pesquisa sempre se refere, ao menos implicitamente, às ciências, na medida em que atualmente são as ciências que, em essência, codificam o funcionamento da pesquisa.

Se nós, analistas, não almejamos um belo isolamento (o que possivelmente não temos como sustentar, não enquanto a terapia analítica for paga pelo seguro-saúde público por ser reconhecida como um procedimento científico), necessitamos ao menos engajar-nos na discussão atual sobre os critérios da pesquisa. Um engajamento crítico, pois naturalmente a psicanálise pode estabelecer sua própria maneira de pensar e sua própria visão de mundo [Weltbild], e pode também oferecer sugestões com base em seu próprio e específico modelo de mente. Olhar por cima da cerca pode trazer mútuos benefícios de aprendizagem para ambos os lados. (Uma aproximação desse tipo de pesquisa psicoterápica é o estudo catamnésico de múltiplas perspectivas da German Psychoanalytic Association. Cf. Leuzinger-Bohleber et al. 2003b.)

A psicanálise é considerada ciência?

Parece apropriado elucidar brevemente a relação entre a psicanálise e as ciências, uma história com muitas variações, ocasionalmente perpassada por momentos de reconhecimento, mas com maior freqüência por momentos de desvalorização. A psicanálise é– e definitivamente foi– tratada com pouca afeição pelas ciências estabelecidas. Em geral, não lhe concediam nem o status de “científica”. E questões como status, conforme sabemos, não são triviais, na medida em que determinam, por exemplo, cargos públicos e admissão em instituições governamentais (médicas e sociais) ou, ainda, a filiação a universidades e a obtenção de verbas para pesquisa.

A partir da nossa posição analítica, a relação com as ciências estabelecidas também é ambivalente. Alguns de nós questionam até se a psicanálise deveria pretender algum tipo de proximidade com outras ciências, se ela não é uma ciência por si só, autônoma em todas as suas características essenciais, com seu objeto próprio– o inconsciente– e, portanto, com seus métodos de pesquisa próprios para compreender e interpretar esse inconsciente.

Há também aqueles entre nós que advertem para que guardemos distância geral de outras ciências. André Green, por exemplo, postulou concisamente, algum tempo atrás, num debate com Robert Wallerstein sobre o common ground em psicanálise: “Do meu ponto de vista, a psicanálise não é nem ciência nem hermenêutica. É uma prática baseada num pensamento clínico que leva a hipóteses teóricas” (Green, 2005, p. 632). Essa afirmação de que a psicanálise é uma prática que leva a uma teoria refere-se à caracterização de Freud sobre a psicanálise como método, tratamento e teoria. Isso significa que nosso trabalho não trata somente de ciência ou da aplicação de insights teóricos, mas lida também com conhecimento e experiência pessoal, com habilidades práticas, aprendidas, e talvez até com habilidades artísticas, com intuição, auto-reflexão e ainda com convicções éticas.

De todo modo, “a prática leva à teoria”– e isto, precisamente, tem sido sempre afirmado pela psicanálise, ou seja: que ela é uma prática e uma teoria. Afirma-se, por exemplo, que ela é uma teoria clínica ou de desenvolvimento, assim como se afirma que possui um modelo de mente. Mas existe um problema aqui com relação ao entendimento sobre o que são teorias, modelos ou “hipóteses teóricas” (Green), pois essas definições não são monopólio da psicanálise. O que são hipóteses e teorias, que estruturas e funções elas têm, como são testadas, como se transformam, como novas teorias surgem e por que algumas desaparecem– tudo isso se discute também nas ciências, em especial na epistemologia.

Tudo isso está sujeito a mudanças: a questão do que se considera científico e, conseqüentemente, do que se considera boa pesquisa, a questão de quais teorias e quais métodos são os melhores, tudo isso é contingencial. No último século, toda chamada virada [turn] gerou um novo sistema de crenças: a virada behaviouristica, a virada lingüística, a virada cognitivista, assim como a virada neuro. E toda virada produziu modificações na visão dos fenômenos considerados relevantes, assim como na avaliação daqueles métodos de pesquisa considerados aceitáveis.

Naturalmente, essas modificações na visão de mundo científica sempre tiveram também um impacto na psicanálise, vindo assim a matizar nosso entendimento a respeito de ciência e pesquisa. esse modo, ao longo de sua história, a psicanálise se aproximou das posições científicas em transformação, tentando adaptar as próprias convicções metodológicas tendo em vista suas próprias necessidades. Conhecemos a discussão segundo a qual a psicanálise– caso seja uma ciência– é antes uma ciência hermenêutica, uma ciência da compreensão e da interpretação. Ou a psicanálise– caso seja uma ciência– é antes uma ciência neopositivista, uma ciência de explanação e predição. Outros ainda a vêem próxima das ciências cognitivas e suas teorias sobre a memória. Atualmente, para alguns, as ciências biológicas ou as neurociências se tornaram as ciências que estão na liderança. Decididamente existe uma discussão ampla em psicanálise sobre o tema ciência e pesquisa!

A convicção a respeito da relação psicanálise-ciência determina em ampla medida o tipo de pesquisa que se considera mais apropriado, mais importante, correto e útil. No entanto, que tipo de ciência e que lógica de pesquisa oferecem, e em que momento, o melhor paradigma para a psicanálise? Essa pergunta recebe diferentes respostas de diferentes interlocutores. Pois encontramos não somente a variedade descrita na teoria, mas também a variedade no interior do campo de pesquisa analítico. E isso, naturalmente, é um problema. À primeira vista, não há nada de errado em existirem diferentes convicções; a questão é apenas saber como os respectivos protagonistas lidam com isso. Ouvirão uns aos outros? Tentarão entender a posição do outro? Ou estarão interessados somente na própria posição? Tudo isso terá conseqüências num possível diálogo.

 

Pesquisa conceitual no campo de força de dois pluralismos

Em psicanálise, familiarizamo-nos ao longo do tempo com discussões sobre o pluralismo de nossas teorias. Talvez, também, sobre o pluralismo na prática clínica. Atualmente a simples palavra pluralismo pode evocar uma reação de desconforto, visto que às vezes parece apenas encobrir o fato de que as diferentes comunidades analíticas já não têm muito o que dizer umas às outras. Em certas ocasiões, convicções que não as nossas são desvalorizadas; em outras situações, surge a conhecida atitude segundo a qual “tudo serve”.

No entanto, pluralismo não precisa ser entendido somente por sua conotação negativa. É possível compreendê-lo também como referência a uma diversidade construtiva capaz de gerar uma busca competitiva e justa pela melhor solução do problema. E é nesse sentido que eu gostaria de considerar qualquer aproximação à pesquisa, tal como faço aqui com a pesquisa conceitual, no campo de força dessa diversidade de convicções do qual, segundo minha tese, existem dois tipos:

1) Existe um pluralismo muito familiar de teorias e escolas psicanalíticas que aqui eu gostaria de denominar pluralismo teórico, para manter as coisas de uma forma simples. Pois a pesquisa conceitual, em qualquer tempo, move-se num labirinto de teorias divergentes, na variedade de tradições analíticas que historicamente ganharam um grande desenvolvimento, classificadas por aspectos geográficos, culturais ou, com freqüência, pelo nome daquelas autoridades em relação às quais, a partir da socialização analítica, nós nos sentimos particularmente obrigados.

2) Porém, qualquer aproximação à pesquisa também se vê confrontada com outro tipo de pluralismo, a saber, a multiplicidade de convicções a respeito das máximas científicas a que a pesquisa psicanalítica deve aderir. Essas crenças geralmente estão ligadas à preferência por uma posição metodológica ou à ciência que lidera e que a psicanálise deve seguir epistemologicamente. Denominarei este segundo pluralismo, novamente guardando a simplicidade, pluralismo na pesquisa.

Assim, ao discutir uma atividade de pesquisa, seria útil considerar sua relação com esses dois pluralismos. Naturalmente, isso não facilita as coisas, na medida em que a consideração no âmbito de determinado pluralismo já é bastante difícil. Green descreve a conseqüência infeliz do pluralismo teórico: “Os kleinianos lêem somente kleinianos, assim como lacanianos citam somente lacanianos” (Green, 2005, p. 629). Podemos observar uma tendência semelhante no campo do pluralismo na pesquisa. Empiristas tendem a citar somente empiristas, assim como os pesquisadores da conjunção freqüentemente fazem referência apenas a outros pesquisadores da conjunção. Todos gostam de estar entre iguais. Círculos fechados de citações podem aumentar o ranking dentro da respectiva comunidade científica, mas não facilitam necessariamente a já mencionada “busca pela melhor solução”. É uma situação lamentável, se estamos convencidos da necessidade de um discurso construtivo, mas obviamente não é possível evitá-la; talvez o máximo que se possa fazer seja compreendê-la melhor, usando para tanto os nossos próprios instrumentos analíticos.

Com este exemplo de pesquisa conceitual, posso apenas descrever as questões e os problemas que surgem no campo de tensão que esses dois pluralismos criam. Não tenho uma resposta definitiva. Seria de fato um bom começo, e muito útil, se essas desvalorizações extremas pudessem ser interrompidas– se não se rotulasse de não-analítico alguém com um referencial analítico diferente ou de não-científico aquele que adota um entendimento diferente sobre pesquisa.

Mas tem surgido uma questão que aponta para uma direção boa: no debate a respeito do common ground em psicanálise, Wallerstein propôs uma pergunta retórica a Green: “Quem decide quando se trata de uma idéia verdadeiramente psicanalítica?” (Wallerstein, 2005b, p. 636). Parafraseando a pergunta no campo do pluralismo na pesquisa, gostaria de indagar: “Quem decide quando se trata de uma pesquisa verdadeiramente científica em psicanálise?”

 

Pluralismo teórico e pluralismo na pesquisa: debates sobre o common ground

Dois pluralismos– talvez possamos responder melhor a questão sobre o que é verdadeiramente pesquisa em psicanálise e sobre o status de programas de pesquisa individual se, para examinar mais detalhadamente as dificuldades apresentadas pelo pluralismo na pesquisa, tomarmos como pano de fundo a discussão mais familiar sobre o pluralismo teórico. Um exemplo marcante e mais recente desse tipo de discussão é justamente a mencionada controvérsia entre Green e Wallerstein a propósito do common ground.

O debate Green–Wallerstein

Ambos os protagonistas iniciam o debate com afirmações claras. Wallerstein é otimista– está convencido da existência de um common ground que caracteriza todos os analistas como adeptos de uma disciplina psicanalítica compartilhada (Wallerstein, 2005a, p. 623). Green, por outro lado, é cético: “O monopólio de Freud terminou” (Green, 2005, p. 627). Considera a idéia de common ground meramente um “ato político” que, segundo pensa, constitui uma tentativa inadequada de superar “fronteiras geográficas e ideológicas” na comunidade analítica internacional (ibid.).

Ambos notam uma comunicação insuficiente no interior da psicanálise. Wallerstein vê uma razão importante para tal fato na barreira lingüística entre autores anglo-saxões e franceses. Quanto à identificação de barreiras de linguagem, ele tem razão, sem dúvida. Durante certo tempo, o inglês foi a língua mais relevante em psicanálise. E quem quisesse ser ouvido internacionalmente e tivesse como origem lingüística o espanhol, o italiano, o francês ou o alemão, precisava publicar em inglês e se adequar em relação à respectiva barreira de linguagem. Mas será que o que Wallerstein aponta aqui é realmente apenas uma barreira de linguagem, isto é, apenas uma questão de competência para a língua e de tradução? Mesmo dentro de uma comunidade de determinado idioma, as coisas não são tão descomplicadas, e já temos de nos haver com algo além da usual barreira de linguagem. Esse aspecto foi muito bem ilustrado pelo poeta britânico de rock Sting, numa canção sua: “Eu sou um alien,/ eu sou um alien legal,/ eu sou um inglês em Nova York”.

Conforme observou Green, não estamos lidando somente com barreiras de linguagem, mas também e sempre com fronteiras geográficas e ideológicas, logo, com barreiras culturais– diferenças desenvolvidas historicamente, baseadas em mentalidades diferentes e em entendimentos da psicanálise, bem como de ciência, que se desenvolveram de diferentes maneiras. Quando descreve a recepção de autores franceses aos debates anglo-saxões, Green se queixa, talvez com certo desapontamento, de uma possível conseqüência dessas barreiras: “Os autores franceses eram considerados […] pessoas de conversa mansa e de pouco interesse” (2005, p. 631). Acredito que Green aluda aqui, entre outras coisas, à crença de alguns pesquisadores orientados para o empirismo que valorizam tão-somente dados quantitativamente “consistentes”^; para eles, todo o resto não passa de “conversa mole”.

Em relação ao que seria pesquisa verdadeira, gostaria de ressaltar dois aspectos que me parecem fundamentais.

O primeiro deles se relaciona à questão já mencionada do status: a psicanálise, em última instância, é uma ciência? Para Green, conforme vimos, a psicanálise não é nem uma ciência, nem um ramo da hermenêutica. Wallerstein tem outra convicção; para ele, a psicanálise é uma disciplina independente “enraizada na investigação do trabalho dos processos mentais inconscientes, mas com interfaces […] com a filosofia e a lingüística em uma extremidade do espectro e com a psicologia cognitivista e a moderna neurociência na outra extremidade” (Wallerstein, 2005b, p. 635).

Concordo com Wallerstein nesse ponto. Pois renunciar à afirmação de que a psicanálise é científica é não só incompatível com nossa história, mas implica o risco de afastá-la de todos os discursos científicos e, assim, de parte essencial da nossa realidade social– e, pior, de fragmentá-la num conjunto pouco coeso de associações fundamentalistas e seitas. E ainda, conforme já sublinhado: nossa participação no sistema governamental de saúde estaria em perigo…

O segundo aspecto está relacionado a outra questão de status. Depois de Green ter argumentado de maneira tão categórica contra a visão da psicanálise como ciência, não se pode mais perguntar simplesmente: “Em última instância, que tipo de ciência é a psicanálise?”. Torna-se necessário perguntar: “Onde a psicanálise pode ser posicionada epistemologicamente?” Para Green, a psicanálise faz a ponte entre natureza e cultura (Green, 2005, p. 632). Wallerstein pensa de maneira similar, ou seja, considera que a psicanálise se alimenta de ambas as fontes, da natureza e da cultura. Mas, de forma notável, ele prossegue a argumentação excluindo as fontes culturais de suas considerações científicas. Para ele, a ciência pode estudar um único aspecto, isto é, a natureza e as fontes da natureza (Wallerstein, 2005b, p. 637). No mundo de língua inglesa, as ciências costumam ser identificadas às ciências naturais (biologia, química, física etc.); as outras (sociologia, psicologia, filosofia etc.) são consideradas humanidades ou artes, as quais “não se baseiam no método científico” (The American Heritage Dictionary, 2001, p. 48). Naturalmente, essa concepção de Wallerstein tem conseqüências no tipo de método de pesquisa que ele considera apropriado.

 

A psicanálise “entre natureza e cultura”: quais as conseqüências?

Faz muita diferença se, ao transitar pelos campos da epistemologia e da pesquisa, percebemo-nos baseados somente no “mundo natural”, onde a discussão se daria antes a partir do ponto de vista de um cientista natural com preferência por seus métodos de pesquisa (isto é, experimentos) e seus objetivos de pesquisa (isto é, explicações causais), ou se, por outro lado, assumimos a função de ponte entre natureza e cultura, tal como Green a chamou.

Eu concordaria com essa visão de Green, fazendo entretanto uma ressalva, pois vejo a psicanálise como uma ciência. Mas não podemos nos limitar então aos jogos de linguagem ou aos mandamentos de pesquisa das ciências naturais. É preciso avaliar criticamente como fazer justiça a ambos os lados e, assim, incluir tanto os jogos de linguagem como os métodos de pesquisa das ciências sociais e culturais, com o objetivo de entender e reconstruir o sentido. Aliás, na sua escolha metodológica, a pesquisa conceitual oscila entre ambas as classes de método, que afinal não se mostram inteiramente apartadas uma da outra.

Dar atenção a esse lado cultural da ponte significa enfocar de um modo específico o ser humano como indivíduo e, assim, considerar também o analista e o paciente como sujeitos que interagem, cada qual com sua subjetividade própria. Significa ainda ter em mente que nossas experiências estão inseridas num contexto biográfico, cultural e histórico. Com isso, nossa linguagem analítica– isto é, nossa linguagem teórica, incluídos nessa linguagem também os nossos conceitos– tem sido, desde Freud, um meio apropriado para descrever e refletir esse duplo entrelaçamento do indivíduo na natureza e na cultura. Por sinal, quando conceitos e campos conceituais são investigados através da pesquisa conceitual, um tema sempre presente é esta dupla funcionalidade dos conceitos analíticos, a saber: a apreensão da natureza biológica do indivíduo e, ao mesmo tempo, de sua individualidade e subjetividade, desenvolvida através de sua biografia.

O resumo dessa pequena digressão epistemológica é o seguinte: existem razões suficientes para considerar a psicanálise um empreendimento cientificamente fundamentado– e, nesse sentido, estaríamos mais de acordo com Wallerstein do que com Green. Existem também razões suficientes para tomar a sério a psicanálise na sua função de ponte entre natureza e cultura, o que, por sua vez, se alinharia mais com Green e menos com Wallerstein.

O que tal convicção– “ciência entre natureza e cultura”– significa para a questão da verdadeira pesquisa? Quem decide tal questão? Alguns prefeririam uma autoridade para tomar essa decisão, mas isso não ajudaria aos que não acreditam em autoridade. Como poderíamos nos aproximar de uma resposta razoável? A pequena divagação que se segue poderá ser útil para investigar essa circunstância.

 

Common ground e (pré-)entendimento específico: um exemplo

Penso ter ficado claro até aqui que os sistemas de crença pessoais que cada um de nós desenvolve têm um papel crucial na posição que assumimos com relação ao que é a “verdadeira” pesquisa. Naturalmente, Wallerstein e Green, bem como todos nós que participamos dos debates sobre status e common ground, vêm de culturas científicas diferentes entre si e têm specific grounds, se pudermos dizer assim. Gostaria de ilustrar com um exemplo da minha própria socialização científica, o que pode significar que fui socializada segundo determinado entendimento do que seja ciência– logo, segundo um entendimento específico do que seja psicanálise– desde o tempo da universidade e da formação.

Escolho a forma da vinheta clínica– que, decididamente, não pode ser deixada de fora num trabalho analítico e que neste contexto científico de certa maneira é pouco usual– porque quero sublinhar algumas preconcepções que em geral ficam implícitas e que caracterizam o meu (e o de qualquer um) entendimento a respeito de pesquisa, assim como o meu (e o de qualquer um) specific ground. A tentativa de explicar a própria visão de mundo científica pode elucidar melhor até que ponto é útil esclarecer, tanto quanto possível, a própria perspectiva durante as discussões sobre common ground e também em psicanálise em geral, para si mesmo e para os outros. Isso tende a facilitar o reconhecimento de que, em relação a convicções científicas, um specific ground (continuamente em desenvolvimento) sempre está em jogo.

Na maioria dos países, o caminho para se tornar psicanalista segue um processo educacional de duas fases. Muitas pessoas possuem um grau acadêmico de nível superior, geralmente em medicina ou psicologia. Como psicóloga, a exemplo de muitos da minha geração, fui influenciada pelos debates sobre as ciências sociais ocorridos nos anos 70 na Alemanha, os quais se seguiram aos debates fundamentais do final dos anos 60. Isso pode ter implicação no fato de que até hoje valorizo aquela tradição de pesquisa cuja imagem de homem entende o indivíduo como um ser cultural e histórico, e não simplesmente como um sistema biológico.

Do meu ponto e vista centro-europeu, ciência ou Wissenschaft (conforme discuti acima) não é somente ciência natural. Na Alemanha e em outros países da Europa continental, atribui-se a muitas disciplinas o mesmo status das ciências: às ciências naturais e, igualmente, às ciências humanas, sociais, culturais ou lingüísticas, com seus respectivos e diferentes métodos científicos. Aliás, com relação a sua idéia de uma universidade psicanalítica, Freud queria a união de todo o cânone das ciências, de todas as ciências do seu tempo que se ocupavam do ser humano.

Dessa forma, durante o curso de psicologia e de outros estudos, cresci em meio a um entendimento abrangente e nada unilateral da ciência. Além disso, o empirismo na psicologia acadêmica não era ainda tão dominante, sendo que os métodos qualitativos e interpretativos de investigação da psique eram considerados tão aceitáveis quanto os métodos quantitativos e empíricos. Não era obrigatório fazer experimentos ou testar hipóteses estatísticas ou, ainda, construir modelos computadorizados para ser reconhecido como cientista. Desde o início me foi transmitido que existem duas entidades básicas em psicologia: os fatos, geralmente apreensíveis pelos métodos das ciências naturais, e os sentidos, geralmente apreensíveis pelos métodos da lingüística ou das ciências culturais.

Essa é a razão pela qual estou convencida até hoje de que em psicanálise e em pesquisa psicanalítica temos de levar em consideração o interjogo de ambas as entidades: fatos e sentidos. E, para mim, seres humanos são indivíduos que processam e geram sentidos e não, de modo algum, meros sistemas de processamento de informação. Além disso, aprendi através da virada da linguagemcomum– que pôs fim à divisão rígida entre linguagem científica e linguagem do cotidiano– que a linguagem, suas regras, suas estruturas, seu uso diverso na ciência e na prática podem ser objeto de uma investigação científica independente, o que constitui uma aproximação útil até mesmo para uma talking cure como a psicanálise (e auto-evidente na pesquisa conceitual).

Em suma, a partir dali, a transmissão de um entendimento com múltiplos embasamentos a respeito da ciência me deixou um tanto cética quanto a autores que infalivelmente acreditam que a ciência trabalha somente da maneira por eles praticada– em particular, somente com seus métodos. A seguir, fui socializada epistemologicamente em certos aspectos importantes pela escola de Frankfurt, no campo da filosofia, com seus fundamentos centrais orientados para o pragmatismo americano. “Em certos aspectos importantes” significa, por exemplo, o abandono de uma teoria de correspondência à verdade e a preferência por uma teoria consensual da verdade. O que temporariamente é verdade é o que certa comunidade científica pode acordar como tal, diante de uma argumentação racional que, é claro, inclui achados empíricos. E é verdade aquilo que uma comunidade científica crê útil e passível de ser trabalhado para a solução dos respectivos problemas. Não existe a verdade “única e imutável” ou “eterna”. Em ciência, existe somente o caminho árduo em direção à “melhor solução do problema” no contexto de uma situação histórica.

Por último, e não menos importante, também aprendi o seguinte com Popper e Kuhn: nossas próprias convicções, sobretudo nossas próprias teorias e hipóteses, sempre podem necessitar de correções e se mostrar erradas. O que é considerado uma base segura, conhecimento seguro ou o estado de arte exige constante atualização. Sobretudo, é necessário tentar sempre, novamente, comunicar e procurar o consenso. A ciência pode errar; somente a religião ainda promete certeza absoluta nos dias atuais. Na ciência, não procuramos somente evidência para dar suporte às nossas hipóteses; esse certamente é um aspecto importante, mas precisamos também reconhecer a crítica dos outros e decididamente aceitar a relatividade das convicções do nosso próprio grupo científico de referência. Naturalmente, o pensamento da escola de Frankfurt também enfatizava a maneira pela qual ciência e pesquisa interagem com condições sociais, políticas e, com freqüência, econômicas. Cientistas também são filhos do seu tempo.

Durante minha formação psicanalítica, nos anos 80, a marca pluralista que hoje é tão familiar ainda não exercia um papel importante. É muito provável que tenha sido assim em função de uma situação específica na Alemanha. Pois, sem dúvida, a psicanálise e suas instituições sofriam os efeitos do nacional-socialismo, o que ainda hoje é um tema central na psicanálise alemã. Após a Segunda Guerra Mundial, os desenvolvimentos teóricos decisivos em teoria e pesquisa ocorreram principalmente no mundo psicanalítico de língua inglesa. Não somente nós, analistas em formação, tentávamos primeiro de tudo nos reconectar com as idéias de Freud e então, gradualmente, com essas novas abordagens. Em conseqüência, líamos essencialmente Freud naquela época e só mais tarde, pouco a pouco, agregávamos outros tipos de literatura analítica: os autores da psicologia do ego e os teóricos das relações objetais; não acreditávamos que Kohut fosse tão terrível; no horizonte, aproximações kleinianas emergiam cada vez mais; Lacan guiou nossa atenção para a importância da linguagem…

Apenas lentamente pude conhecer as diferenças sutis e as animosidades, por vezes íntimas, entre as diversas e competitivas escolas analíticas e científicas– o que se tornou mais claro para mim principalmente durante a leitura sistemática que fiz para revisão do livro O paciente e o analista (Sandler et al., 1992). Green, muito provavelmente com razão, refere-se a certos “duelos de sangue”, a raiva e amargura nesses debates sobre a psicanálise “correta”, sobre o “verdadeiro” common ground em psicanálise (Green, 2005, p. 627).

O que hoje desempenha um papel menos importante, em comparação à época da minha formação analítica, é certamente o diálogo amplo e público da psicanálise com outras ciências como a filosofia, a etnologia e também as ciências literárias. Encontrávamos um interesse vivo pelo que existia em nossa teoria, mas também no nosso método de interpretação para a compreensão dos aspectos inconscientes da mente. Algo de fato é estranho: por um lado, a interpretação (deutung) é uma das nossas ferramentas principais em psicanálise, e, também na avaliação de dados empíricos, a interpretação dos resultados é uma atividade reconhecida e criativa do cientista. Por outro lado, no entanto, se alguém, num contexto de pesquisa, afirma hoje em dia que aplica métodos interpretativos ou hermenêuticos sobre dados gerados, isso com freqüência é considerado não-científico, pois supostamente tais métodos não preenchem os critérios de objetividade. Durante minha socialização acadêmica, métodos interpretativos sempre faziam parte dos cânones metodológicos aceitos, em termos de uma “reconstrução racional de sentido”, o que naturalmente precisa levar em conta o interjogo de fatos e sentidos mencionado acima.

A partir desse passado de socialização científica específica, mais tarde a pesquisa conceitual veio a se tornar de interesse para mim por três razões:

• por ser uma tentativa de integrar conhecimento novo, venha ele da psicanálise ou de disciplinas afins;

• por permanecer enraizada, através de suas referências, na situação analítica e na prática analítica– e não ter ressalvas quanto ao uso de métodos interpretativos;

• e, ainda, porque o trabalho em equipe cumpre um papel decisivo nos seus projetos, seja na busca de consenso, seja na precisão quanto à dissidência.

Um programa de pesquisa que tem como objeto a investigação da mudança no uso dos nossos conceitos e, assim fazendo, prova-se amplamente comprometido com a preservação da essência analítica deles, ao mesmo tempo em que busca integrar a visão de diferentes usuários dos conceitos, sempre atento à sua validade e utilidade para a prática clínica– isso realmente não é pouco. A pesquisa conceitual assim entendida pode contribuir para afinar o perfil analítico dos nossos conceitos e, em conseqüência, finalmente das nossas teorias também. Logo, a tarefa seria, por exemplo, no diálogo corrente com os pesquisadores da memória, esclarecer o campo conceitual em torno do conceito analítico de “inconsciente”, e se deveria também trabalhar a conotação analítica específica de “inconsciente dinâmico”, de maneira que “inconsciente” não fosse equiparado a “implícito”, como ocorre freqüentemente.

Mas basta sobre o meu caso. A vinheta clínica, por sua própria natureza, pode iluminar somente uns poucos aspectos por vez. O propósito, aqui, foi apenas ilustrar a partir de que specific ground e com qual pré-conhecimento científico se pode entrar num campo de pesquisa psicanalítico. A vinheta objetivava sublinhar meu argumento de que, com referência a ambos os pluralismos e para ter êxito ao lidar, no plano do discurso, com questões epistemológicas e metodológicas, é preciso dar atenção aos cenários científicos específicos e diferentes daqueles que estão sendo discutidos.

 

Um apelo ao conexionismo

Pluralismo teórico e pluralismo na pesquisa– e agora? Permanece em aberto a questão: “Quem decide o que se trata verdadeiramente de pensamento ou pesquisa psicanalítica?” Ninguém que expresse convicções no campo da psicanálise e da epistemologia o faz de uma posição exterior ao campo, nem de uma posição de verdade absoluta, de superioridade em relação às outras. Além da escolha resignada da via da arbitrariedade pós-moderna, da qual tantos se lamentam, existem, a rigor, somente duas maneiras de escapar desse dilema. Podemos afirmar que a própria convicção representa a verdade, e aí teríamos uma boa resposta à pergunta sobre “quem decide”, ao menos para si próprio, ou então procuraríamos uma maneira de nos aproximar e nos comunicar com aqueles que têm uma visão diferente.

As coisas se tornariam decididamente mais complicadas então. Não somente existem muitas opiniões diferentes, mas por trás delas parecem trabalhar inúmeros interlocutores de forma bastante desconectada e, às vezes, com um grau maior de rivalidade do que de cooperação. (Aliás, há muitos anos existia também, entre pesquisadores e clínicos, um tipo de coexistência em que as partes se ignoravam mutuamente, o que motivou Sandler a sugerir e estruturar a Conferência Anual de Pesquisa da ipa em Londres. Pesquisadores analíticos deveriam apresentar relatórios sobre seu trabalho e analistas com trabalho clínico deveriam discuti-los a partir de sua perspectiva, observando sua relevância clínica. A contrapartida, naturalmente, também foi programada: um clínico apresentaria um caso que seria discutido por um pesquisador analítico a partir de sua perspectiva de pesquisa. O pesquisador poderia inclusive atuar rm outra disciplina, e essa troca interdisciplinar não precisaria ser de mão única, é claro.)

A implementação de idéias direcionadas para o diálogo crítico e com mútua referência depende em geral de pré-requisitos importantes: interesse mútuo e mútuo reconhecimento das convicções científicas específicas, renúncia à pretensão de exclusividade e reflexão a respeito da natureza contingente da própria posição. Preencher esses requisitos parece ser a parte mais difícil do empreendimento. O pretenso “discurso livre de dominação” pode parecer utópico, e talvez o seja. Por outro lado, conhecemos a força dos sonhos… De todo modo, o que experimentamos hoje é o fortalecimento do discurso crítico no debate internacional sobre as nossas diferentes formas– às vezes quase incompatíveis– de compreender a psicanálise. Por que não pensar a respeito de um discurso crítico similar no campo da pesquisa? Ouvir os outros e respeitá-los não nos priva de ter os próprios interesses, não é?

Talvez agora a idéia de common ground tenha se tornado, de forma geral, apenas um “pensamento desejoso” [wishful thinking], apenas uma ilusão (como Green a chama), especialmente a idéia de que ele exista numa “teoria geral” (é o que Wallerstein tem em mente) e de que assim, através de uma teoria unificadora, as várias culturas internacionais analíticas poderiam se integrar. Mas, se não podemos renunciar à idéia de um common ground, mesmo que queiramos trazê-la de volta por meras razões políticas, por que não nos referirmos simplesmente às origens da nossa ciência e recorrermos à obra de Freud? Pois é aqui que a maioria dos analistas tende a concordar: sem dúvida nenhuma, historicamente falando, a teoria de Freud é o common ground. E por que não manter o foco nesse ground, os primórdios da nossa ciência, como base de referência? É bem interessante que as pessoas de fora da psicanálise não tenham grandes problemas em ver a força unificadora das nossas raízes psicanalíticas.

Freud, no seu entendimento clássico a respeito de ciência e na sua preocupação com o reconhecimento e o prestígio de uma então jovem ciência, via a base da psicanálise no acordo em torno dos fundamentos centrais:

A admissão de que existem processos mentais inconscientes, o reconhecimento da teoria de resistência e repressão, a justa avaliação da importância da sexualidade e do complexo de Édipo– são esses os constituintes do principal objeto-tema da psicanálise e das fundações de sua teoria. Quem não os aceitar a todos não deve se considerar um psicanalista (Freud, 1923a, p. 247).

Era simples assim. Ao mesmo tempo, Freud era cientista o bastante– com seu grande empenho em manter a comunidade científica unida– para enfatizar que todas as suas afirmações estavam sujeitas à mudança histórica, conforme expressou, por exemplo, através da convicção de que o avanço do conhecimento não tolera definições rígidas e de que um dia, até nas concepções mais radicais, a biologia “acabará com toda a nossa estrutura artificial de hipóteses” (Freud, 1920, S. 60.).

Caso pudéssemos deixar de ver o common ground como um conjunto de crenças teóricas imutáveis ou axiomas– como um mínimo denominador comum de todos os analistas, por assim dizer–, então uma visão totalmente diferente poderia se abrir para nós. Particularmente, a visão de homem de Freud, seu interesse epistemológico, sua investigação analítica, sua compreensão crítica e seu olhar reflexivo voltado para a psique humana– para natureza e cultura–, tudo isso poderia ser um modelo para nós, analistas, até os dias de hoje, quando nos debatemos por um common ground continuamente em transformação. Conceitos, teorias e convicções epistemológicas não são quantidades estáticas, e, de fato, penso que nenhum common ground deva ter o status de um credo eterno e imutável; é preciso rediscuti-lo sempre. E, naturalmente por meio do diálogo, por mais árduo que isso às vezes seja. Como psicanalistas, não temos dificuldade em compreender o quanto a complexidade de tal discurso sobre a prática e o pensamento analíticos nos convida a evitar esse trabalho árduo, assim como não temos dificuldade em analisar qual é a função que a ilusão e o desejo de uniformidade desempenham em tudo isso.

Uma visão comum do homem e um interesse comum em discussões a respeito de um conhecimento controverso sobre o common ground em ambos os campos– o da teoria analítica e o das abordagens epistemológicas da mente humana– poderiam levar a uma compreensão mais dinâmica de um common ground. A expressão “discussão controversa” foi escolhida intencionalmente aqui, por analogia com as discussões controversas britânicas. Foram discussões que não culminaram numa teoria unificada, mas ajudaram a descrever com precisão o que era dissidência, levando então a uma cooperação (relativamente) tolerante. Esse caminho com certeza seria mais modesto do que elaborar uma teoria geral que abarcasse a totalidade das questões. Mas penso que é também mais realista e que talvez possa até ser investido libidinalmente: a esperança de uma teoria unificadora teria de ser substituída pela esperança de um discurso construtivo para um common ground.

Em todo caso, penso que devemos reconhecer ambos os nossos pluralismos, que existem em âmbito mundial, e não “celebrá-los”, como observa criticamente Wallerstein, (2005). Por que não entendê-los como sinal de vitalidade? Em ciência, a diversidade e o pluralismo, no entanto, necessitam ter contornos, é necessária uma definição clara, para que os aspectos positivos possam ser usufruídos. E sempre se precisa fazer a tentativa de evidenciar as convergências dentro da diversidade. Discussões controversas construtivas possibilitariam isso, o que não ocorreria com cisão e indiferença.

Nesse sentido, a máxima deve ser: do pluralismo indiferente ao conexionismo. Esse termo também foi escolhido intencionalmente, por analogia com seu uso nas neurociências. Ali modelos conexionistas do cérebro humano mostram claramente como é possível alcançar uma operação holística, apesar da multiplicidade de instâncias e funções. Um networking sistemático de mútua referência, acompanhado de uma reflexão epistemológica sistemática, é indispensável para assegurar condições de qualidade favoráveis em ciência e pesquisa.

Caso seja escolhido esse caminho de controvérsia e conexionismo, talvez em algum momento se torne mais fácil responder à pergunta: “Quem decide quando se trata verdadeiramente de pensamento e pesquisa psicanalítica?” A resposta será: “Todos nós decidimos, e, de tempos em tempos, nossa decisão pode se modificar um pouco”.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Anna Ursula Dreher
German Psychoanalytical Association DPV
Keplerstr. 30
D-60318 – Frankfurt/M.– Germany
E-mail: dreher@t-online.de

Recebido em 18.3.2008
Aceito em 1.5.2008

1 Este texto, traduzido [para o inglês] com a colaboração de Eva Ristl, baseia-se em idéias desenvolvidas num trabalho para a Conferência sobre Pesquisa da IPA em Londres, em 2006: “Para Celebrar os 105 anos do Nascimento de Sigmund Freud: O Atual Estado da Pesquisa Psicanalítica” (Seção: Epistemologia, Pesquisa conceitual e Psicanálise). Uma versão anterior foi publicada no Forum der Psychoanalyse 2007: “Pluralismus in Theorie und Forschun: was nun?” Tradução para o português: Elsa Vera Kunze Post Susemihl (membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP, elsasusemihl@sbpsp.org.br) e Edith Vera Laura Kunze, com RBP.
2 O título deste trabalho sintetiza os aspectos mais essenciais das reflexões de Anna Ursula Dreher. Mais do que sobre pluralismo, elas se voltam para a pluralidade de questões e enfoques que fazem parte não só da teoria e da prática psicanalítica, mas também do que vem sendo chamado de “pesquisa em psicanálise”. Dreher é membro do Comitê de Pesquisa Conceitual da IPA, mas, ao explorar seu próprio percurso numa “vinheta clínica”, ela nos faz ver de mais perto o seu desenvolvimento individual como pesquisadora e, simultaneamente, nos dá um exemplo vivo de como foi abordando a questão da pesquisa no campo da psicanálise. Em relação a esse aspecto, uma de suas principais sugestões se destaca: reconhecer o desenvolvimento que o conhecimento psicanalítico tem no plano internacional, sublinhando aí o valor do que ela chama de “conexionismo”, isto é, a importância de estabelecer um diálogo crítico entre diferentes pontos de vista sobre a pesquisa em psicanálise. [Nota do Editor]
3 Associate member of the Constituent Organisation [German Psychoanalytical Association AM DPV].

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