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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.42 n.2 São Paulo jun. 2008

 

RESENHAS

 

Resenha: Joyce M. Gonçalves Freire1

 

 

Tempo e ato na perversão

Segredos e intimidações na clínica da perversão

Flávio Carvalho Ferraz

São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005, 110 p.

Resenhar o livro Tempo e ato na perversão, de Flávio Carvalho Ferraz, exigiu de mim um olhar retrospectivo sobre o tempo em que, em nossos meios psicanalíticos, a perversão passava ao largo da efetividade de nossa escuta clínica. Afora as discussões teóricas que se faziam em algumas escolas e grupos psicanalíticos brasileiros a respeito do tema, sobretudo do legado de Freud ao situá-la como o negativo da neurose, de sua descoberta da sexualidade infantil, na qual se reconheceu a criança perverso-polimórfica, e, posteriormente, do estatuto metapsicológico da Verleugnung– a recusa– como mecanismo específico da perversão,pouco ou quase nada se falava ou se escrevia sobre essa clínica. Até o final do século passado, esse terreno clínico era praticamente estéril em nosso meio. Tal como o perverso que, diante da castração, diz a si mesmo “eu sei, mas mesmo assim…”,2 como psicanalistas sabíamos da existência psicopatológica da perversão, mas mesmo assim declinávamos dela. Tínhamos um conhecimento teórico sobre ela, mas mesmo assim um véu contratransferencial parecia se interpor entre nós e os supostos pacientes perversos que por acaso esbarrassem na soleira de nossas clínicas. Os perversos, na métrica dessa contratransferência, eram quase inanalisáveis.

No final de 1999, assisti a uma conferência de Flávio Carvalho Ferraz na qual ele apresentara a história clínica de um paciente perverso e, a partir dela, tecia considerações importantes sobre a situação transferencial e o manejo clínico que suscitados naquele tratamento psicanalítico. Impactada pelas considerações clínicas feitas pelo conferencista, fui ao encontro de sua escrita sobre o tema e me deparei com seu refinado pensamento metapsicológico e clínico, a respeito do difícil trabalho psicanalítico com pacientes perversos, que resultou na publicação de Perversão, primeiro volume da coleção Clínica Psicanalítica, da qual também faz parte Tempo e ato na perversão. Desde então, de sua lavra, reveladora de uma escrita clara e elegante, o autor delineia e apura seu pensamento clínico e nos coloca frente a questões a respeito do tempo e do ato no cenário da perversão.

Na apresentação de seu livro, o autor escreve que ali buscou complementar algumas questões que ficaram fora do primeiro livro sobre o tema. Contudo, mais que complementar, as contribuições relevantes sobre o tempo e o ato para a clínica da perversão são também paradigmas para pensarmos sobre a metapsicologia de outras formas de subjetividade com as quais lidamos na clínica, como a do borderline e da normopatia, temas recorrentes na escrita do autor.

Na primeira parte do livro, Flávio Ferraz traz a perversão delineada na literatura psicanalítica em dois eixos diferentes, porém articulados: o sintomatológico e o transferencial. A partir deles, o autor tece considerações sobre a intensidade do valor clínico e metapsicológico que se poderia atribuir a cada um desses eixos e, convidando o leitor para sua interlocução, lança uma questão fundamental para a construção de seu pensamento clínico: “Se definirmos a perversão com ênfase em um deles, chegaremos à mesma figura conceitual a que chegaríamos se enfatizássemos o outro eixo?” (p. 17).

O autor conduz o leitor a pensar sobre as relações entre o sintoma, a transferência e as construções metapsicológicas encontradas na perversão e o leva a questionar se o modo de funcionamento psíquico do sujeito perverso estaria justaposto à apresentação de seus sintomas ou se haveria sutilezas perversas que só a situação transferencial poderia atualizar.

Com esse veio epistemológico vertido da clínica, Flávio Ferraz faz de sua questão nuclear um instrumento com o qual escava os sedimentos da psicanálise inglesa e francesa. Se foi no terreno sintomatológico o lugar em que Freud semeou os primeiros conceitos sobre a perversão e nele fertilizou, a partir de suas reflexões sobre o fetichismo na década de 20, a metapsicologia da Verleugnung como mecanismo psíquico específico da perversão, a construção da transferência na psicopatologia da perversão só se edificou com as contribuições de analistas das escolas inglesa e francesa. Se, como salienta o autor, a partir da Lógica do fetichismo (1927), Freud pôde desvendar a atitude ambígua do perverso justamente pela divisão (Spaltung) do eu frente à realidade da castração, a abordagem freudiana, contuo, ainda permanecia quase toda restrita ao interior conceitual do sintoma, vale dizer, do perverso em seu vertiginoso desvio de percurso de uma sexualidade que teria por fim encontrar o leito comum da confluência genital e, nesse descaminho pulsional, teimava em permanecer polimórfica, tal qual a da criança descrita nos Três ensaios, de 1905.

Se o eixo da fenomenologia do sintoma é fundamental para pensar quaisquer recortes psicopatológicos– a neurose, a psicose e a perversão– e, assim sendo, se o sintoma da perversão, além de se atualizar na roupagem contemporânea da chamada neo-sexualidade (McDougall, 1992-5), é também valioso para o diagnóstico psicanalítico, parece, entretanto, ser o eixo da transferência aquele que mais pode inovar e contribuir para os desafios que a clínica da perversão apresenta aos psicanalistas.

A partir do assentamento freudiano, sobretudo do conceito da Verleugnung, psicanalistas das duas correntes contempladas pelo autor– a kleiniana e a lacaniana– ensejaram preciosos modos de escuta para a clínica da perversão.

Da escola kleiniana, Flávio Ferraz salienta a importância da transferência de afetos na transferência, em torno da qual a própria interpretação psicanalítica se faz operar e nela se solidifica o tratamento. A essa lavra pertencem autores como Betty Joseph (1971), para quem a perversão detectada pelo analista deve ser interpretada na própria transferência; trata-se de um trabalho técnico difícil, haja vista a “erotização oculta da transferência” (p. 26). No terreno da “perversão de transferência”, o autor resgata o debate entre Meltzer (1973), para quem o sintoma da perversão coincide com sua manifestação transferencial, e Kernberg (1998), que vê nessa postura o “erro de confundir a perversão sexual com a perversão de transferência” (p. 35).

Na tradição lacaniana, a direção do tratamento é dada pelo que se nomeia como “diagnóstico estrutural”, a partir da posição psíquica do sujeito frente à castração. Nessa linha de pensamento psicanalítico, Flávio Ferraz ressalta o importante trabalho de Jean Clavreul (1967); para ele, a “estranha” e “ambígua” posição transferencial do perverso comportaria o desafio ligado à estrutura da recusa não só da realidade da castração, mas, sobretudo, do outro. Outro autor da vertente lacaniana com o qual o Flávio Ferraz dialoga é Guy Rosolato (1967), que, na mesma linha estrutural de Clavreul, salienta que o desafio do perverso está em “renegar a lei do pai e substituí-la pela lei do seu desejo” (p. 23), e, nesse território particular onde a lei é transgredida e o acesso ao simbólico não é sancionado, não há lugar nem para a existência do outro nem para a transigência com o outro.

Para além das diferenças conceituais entre as escolas francesa e inglesa, o autor observará que, “na prática, os impasses trazidos pela postura transferencial do perverso são percebidas do mesmo modo por autores das duas escolas”. A partir dessas considerações, por assim dizer, o desafio perverso que destitui o outro e o deixa sem saída atualiza-se na “perversão de transferência” salientada por Meltzer (1979) e consolidada por Etchegoyen (2002).

O pensamento do autor em torno das questões sintomatológicas e transferenciais a respeito da perversão o leva a encontrar clareiras no difícil trabalho clínico com pacientes perversos, pois, mais do que em qualquer outra psicopatologia, é no terreno da perversão que a transferência se faz em ato e solicita o analista, com o risco de destituí-lo de sua posição convocando-o a participar da cena perversa. Essa convocação perversa pode “criar uma cilada para o analista” que o levaria a se colocar ou numa “posição moralizante, contrária à neutralidade analítica”, ou numa posição de voyeur, não menos perturbadora que a primeira (p. 22).

Flávio Ferraz areja questões clínicas e metapsicológicas, as quais, quando se enclausuram naquilo que a repetição tem de mortífero– e a própria psicanálise muitas vezes não escapa a isso–, tendem a embalsamar a clínica. Assim, com refinamento clínico, inova com sua compreensão da transferência e nos diz que “é enganoso supor que esta signifique apenas uma repetição tal e qual de um padrão de direcionamento ao objeto. A transferência na clínica contém também, inseparável da repetição, um gesto que aponta exatamente para o novo, num impulso à restauração por meio de uma compreensão diferente de si, que se pede ao analista e dele se espera obter” (p.41). Essa posição de abertura para o novo não só cria condições para que o analista escape das ciladas perversas, mas, sobretudo, permitirá “a eventual mudança psíquica do paciente” (p. 41).

O autor encerra a primeira parte com um caso clínico no qual se faz presente a teia aprisionadora da “intimidade e do segredo” que o perverso acaba por criar na situação psicanalítica. Nos fragmentos clínicos de “Cá entre nós”, emblemáticos das emboscadas perversas que surgem na situação de transferência, Flávio Ferraz enxergará um risco para análise, configurado por essas convocações sedutoras e insidiosas de segredo e intimidade, caso o analista se deixe enredar pela cena perversa: perderia sua capacidade de analisar e/ou viria a ocupar o lugar de voyeur ou o de moralizador (p. 50).

Na segunda parte do livro, o autor traz novos parâmetros para pensarmos a conceituação metapsicológica da Verleugnung freudiana e sua incidência sobre a clínica. As categorias kantianas de tempo e espaço, a priori do pensamento, são questões que reavivam a clínica com a qual Flávio Ferraz trabalha e, sobretudo a da perversão, trazem novos contornos para a Verleugnung, ampliando o território da clássica recusa da realidade e da castração de modo a permitir que o autor conceitue a recusa do tempo (p. 55). Para além do terreno da perversão, o autor traz uma contribuição importante para pensar as relações da temporalidade com outras formas psicopatológicas e conceitua, na clínica psicanalítica, a luta contra o tempo na neurose e em certos quadros de ansiedade, a infiltração dessa luta nos comportamentos do borderline e o tempo suprimido no caso do autismo(p. 70-71).

Na última parte intitulada, “‘Gnosticismo’ perverso e ‘religião’ obsessiva”, Flávio Ferraz revigora os postulados psicanalíticos ao fazer uma comparação entre a perversão e a neurose obsessiva. O autor desenvolve uma linha de raciocínio em que a perversão, desde o início irmanada ao negativo da histeria, sob certos aspectos guardaria uma proximidade maior com a neurose obsessiva do que com ela. As relações do perverso com o saber e do obsessivo com a dúvida são tratadas através da categoria do segredo. E ele dirá que “o perverso sabe, e por isso julga conhecer o segredo do prazer sexual, enquanto o neurótico obsessivo duvida e deve se furtar ao contato e ao prazer” (p. 79).

Com argúcia, Flávio Ferraz de Carvalho encerra seu livro retratando as nuanças entre as duas psicopatologias e sobretudo discutindo o importante lugar do ato e do tocar em uma e outra psicopatologia: “O tocar é, por excelência, ato” (p. 94).

 

 

1 Joyce M. Gonçalves Freire é psicóloga e psicanalista; é pós-doutora pela Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.
2 O. Mannoni, “Eu sei, mas mesmos assim…” In C. S. Katz (org.), Psicose, uma leitura psicanalítica. São Paulo: Escuta, 1991.

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