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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.42 n.3 São Paulo set. 2008

 

CONSTRUÇÕES

 

Construções em psicanálise: alguns comentários

 

Construcciones en psicoanálisis: algunos comentarios

 

Constructions in psychoanalysis: comments

 

 

Ana Maria Andrade Azevedo*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigotenta levantar, para discussão, alguns pontos do trabalho apresentado por Michele Bertrand no 68º Congresso de Psicanalistas de Língua Francesa. São enfatizadas questões ligadas aos conceitos de reconstrução e de construção, especialmente às idéias privilegiadas por Bertrand a partir dos anos 1980, de R. Schafer e D. Spence, em relação à verdade narrativa e à construção narrativa. São levantados também outros pontos que visam chamar atenção para uma postura muito teórica e pouco clínica de Bertrand. Vários autores são trazidos para a discussão e são feitas algumas críticas, especialmente em relação ao que é denominado por ela de “trabalho em profundidade”.

Palavras-chave: Reconstrução; Construção narrativa; Interpretação; Espaço psíquico; Espaço analítico; Sonho; Conteúdo latente; Conteúdo manifesto.


RESUMEN

El texto que presento aquí, trata de levantar algunos puntos del trabajo de Michele Bertrand para que sean discutidos. Son enfatizadas cuestiones ligadas a los conceptos de re construcción y de construcción, especialmente las ideas privilegiadas por Bertrand, a partir de los años 80, de R. Schafer y de D. Spence, en relación a la verdad narrativa y a la construcción narrativa. Son levantados también otros puntos, tratando de llamar la atención para una posición muy teórica y poco clínica de la autora, lo que de cierta forma dificulta la lectura del trabajo. Varios autores son mencionados y discutidos por la autora del trabajo, que hace algunas críticas, especialmente en relación a lo denominado por ella de trabajo en profundidad.

Palabras clave: Reconstrucción; Construcción narrativa; Interpretación; Espacio psíquico; Espacio analítco; Soñar; Contenido latente; Contenido manifiesto.


ABSTRACT

The text here presented attempts to raise for discussion some aspects from Michele Bertrand’s paper. Issues related to re-construction and construction are enphasized, especially to ideas priviledged by Bertrand in the beginning of the 80s, from R. Schafer and D. Spence in respect to the narrative truth and to the narrative construction. Some other issues are also raised, trying to call one’s attention to the author’s extremely theorical and little clinical stance, which somehow leads to difficulty reading the paper. Several authors are mentioned and brought to discussion by this author, some critics are made especially in relation to what is named by her as work in depth.

Keywords: Reconstruction; Narrative construction; Interpretation; Psychic space; Analytic space; Dream; Latent content; Manifest content.


 

 

Um dos trabalhos apresentados no último Congresso de Língua Francesa, em Genève, em maio de 2008, foi o de Michele Bertrand, intitulado “Construir um passado: Inventar o possível?” Em poucas palavras, de maneira rápida e possivelmente um tanto superficial, tentaremos resumir as colocações da autora, dentro daquilo que consideramos importante para o tema proposto.

Nesse trabalho, Bertrand busca rastrear a idéia de uma “virada hermenêutica” partindo de um trabalho de Freud de 1937, “Construções em análise”. Ela se pergunta se a partir de 1938, com a nova proposta de “construção” complementando o uso da interpretação, não terão surgido também mudanças nas diferentes aproximações à teoria psicanalítica. Considerando essas questões, propõe pensar os trabalhos de alguns autores nos anos 80, percorrendo, a partir daí, um longo caminho até os dias de hoje.

Com especial ênfase na proposta de “construção narrativa”, de Donald Spence, Bertrand tenta apresentar o que ela denomina de “virada hermenêutica”, movimento que vem acontecendo na psicanálise a partir de 1980, em decorrência de modificações teóricas formuladas por vários analistas. De seu ponto de vista, Bertrand considera que não continuamos mais tão ligados a uma tradição freudiana quanto ao papel e ao uso da interpretação e supõe, então, que modificações na teoria devem estar ocorrendo concomitantemente na psicanálise Spence, 1990; Schaffer, 1980; Modell, 1990. Reinterpretando Freud, esses autores propõem “como função da análise”, segundo afirma Bertrand, “a busca de uma criação estética e de um sentido, através de uma construção narrativa que recontextualize a expe­riência vivida pelo analista e pelo analisando” (p. 2).

Para Michele Bertrand, o estatuto metapsicológico da interpretação vem sendo revisto desde os anos 80, principalmente nos Estados Unidos. Acreditamos que de fato isso vem acontecendo em todo o mundo psicanalítico, onde os questionamentos são constantes e freqüentes. No entanto, a autora focaliza especificamente os autores norte-americanos, o que talvez, do nosso ponto de vista, seja pouco representativo de um movimento mais internacional da psicanálise.

A revisão e os questionamentos feitos pela autora propõem que principalmente os conceitos de reconstrução e de recalque vêm sofrendo modificações, sendo atualmente dada uma ênfase maior aos aspectos lingüísticos e narrativos da relação analítica, o que, segundo alguns autores, pode levar a uma nova concepção de psicanálise.

Várias contribuições diferentes são discutidas pela autora, além das de Spence (1982) e de Schafer (1976), dentre elas as de Ricœur (1965), Ausson (1981), Roussillon (1984), Donnet (1995), Viderman (1970), Green (1983 a 2000), M’Uzan (2005), César & Sara Botella (2001), Brusset (2005), Amati-Mehler (2005), Ferro (2005) e Mancia (2007).

Logo no início de seu trabalho, Bertrand coloca questões relacionadas à construção e à contratransferência, trazendo inclusive um exemplo clínico. A ênfase dada por ela é mais no sentido da construção silenciosa, mencionada num trabalho de Green (2005). No entanto, é nos trabalhos de Donald Spence, Roy Schafer e Mancia que a autora se apóia para enfatizar a importância que as propostas de “construção” e de “verdade narrativa” conquistaram a partir de certo momento. Bertrand acredita que essas colocações produziram uma acentuada mudança na prática da interpretação, sendo estas muitas vezes substituídas ou acompanhadas por modelos construídos com o objetivo de tornar os elementos oferecidos mais aceitáveis e mais toleráveis no âmbito da angústia.

O relato do analisando é considerado uma “verdade narrativa”, e as intervenções do analista buscam, com a “construção narrativa”, ancorada nessa narrativa, dar sentido e significação ao relato, ordenando-o e reinscrevendo-o no espaço e no tempo, sem a preocupação com o real histórico do analisando. Bertrand aponta a questão da verdade como um dos principais motivos do debate entre as correntes psicanalíticas atuais: verdade da interpretação? Verdade do analista? Verdade do analisando? Verdade construída?

Devido à dificuldade em responder a essas indagações, que de fato pertencem a uma esfera mais ampla do pensamento e do conhecimento, acreditamos que algumas das colocações de Freud em relação à proximidade entre as noções de percepção, alucinação e representação seriam importantes para o prosseguimento dessa reflexão.

Funcionando dentro de certa simultaneidade e com uma dinâmica conjunta, percepção, alucinação e representação implicam, de acordo com a afirmação de Freud, que “a lembrança primária de uma percepção é sempre uma alucinação” (Freud, 1895, Projeto de uma psicologia para neurólogos). Caso as hipóteses trazidas por Bertrand fossem consideradas a partir dessa conceituação, certamente dirigiriam as discussões para outra direção.

Da mesma forma, a consideração da importância da convicção na apreensão dos fatos percebidos, também abordada por Freud, se levada em conta alteraria bastante a direção do trabalho de Bertrand, pois só a partir dessas colocações pensamos ser possível discutir as questões relacionadas à “verdade”, à reconstrução ou à construção.

Bertrand não aborda essas contribuições de Freud, o que nos pareceu uma grande falha em seu trabalho, e acaba produzindo, em alguns momentos, um texto um tanto superficial. Pensamos que a idéia de construção e de verdade narrativa, se enfocadas a partir dessas considerações, acabariam por serem discutidas de maneira bastante diferente e importante.

A autora refere-se à necessidade de uma nova concepção de psicanálise, vista por muitos autores como “a construção de histórias múltiplas de vida, tanto em relação ao passado histórico do analisando, como em relação à história da relação analítica em curso” (p. 40; Schafer e Spence); isso parece caracterizar um trabalho analítico que adota um diferente enfoque teórico, o que sem dúvida termina por produzir modificações no conceito e na noção de interpretação.

Entre muitas idas e vindas, ora concordando, ora discordando dos argumentos colocados, Bertrand expõe seus posicionamentos, defendendo a idéia de uma “virada hermenêutica e de uma nova concepção de psicanálise”, preocupando-se principalmente com o efeito que essa postura pode ter sobre a teoria psicanalítica tradicional.

Concordando com Viderman quando ele coloca que “o inconsciente não é estruturado como uma linguagem, mas é estruturado pela linguagem”, referindo-se à possibilidade de ter acesso ao inconsciente através da linguagem “a linguagem tria, elimina, para construir uma ordem e articular o mundo natural” (p. 25) , Bertrand acredita que, na verdade, reconstruir uma história é de fato construí-la e que pela linguagem é possível ter acesso ao mundo inconsciente.

No começo de seu trabalho, Bertrand partiu de uma colocação de André Green, mencionando seu posicionamento em relação à “memória”, o que sem dúvida é um ponto importante para pensarmos idéias como interpretação, reconstrução, elementos representáveis e não-representáveis, verdade etc.

Green propõe “a noção de memória amnésica, isto é, de uma re-memorização sob a forma de acontecimentos não-mnésicos; ele trata a compulsão à repetição como uma forma de memória e diz: o êxito do tratamento dependerá mais da inclusão das vivências na temporalidade do que de sua rememoração” (1990, p. 52). Esses posicionamentos de Green, que nos parecem bastante importantes, ficam um tanto esquecidos no prosseguimento do trabalho de Bertrand.

Como já mencionado, pensamos ser muito difícil considerar as questões ligadas à reconstrução, ou mesmo à “construção narrativa”, sem refletir cuidadosamente sobre elementos propostos inicialmente por Freud e mais recentemente por Green, tais como a percepção, a memória, a representação e a não-representação, a alucinação e a compulsão à repetição. Não pretendemos expandir esses pontos aqui, agora, pois esta seria uma tarefa muito longa e ambiciosa. Sentimos, no entanto, que o texto de Bertrand seria mais consistente caso se ocupasse pelo menos em parte dessas questões.

Quando supostamente conseguimos reconstruir uma história no percurso de uma análise, com a concordância do analisando, isso significa representar algo do mundo interno que estava reprimido e afastado da memória? E de que memória estaríamos falando? Memória dos acontecimentos? Memória construída por associações e pelos acontecimentos presentes? Memória amnésica? Ou se trata de elementos alucinados pelo analisando ou pelo analista? Posso reconstruir ou construir alguma coisa se não conto com a minha convicção a respeito daqueles dados? E o analisando? Pode me ouvir ou acreditar em mim sem também estar convicto do meu saber?

Em certo momento do trabalho, Bertrand propõe que a ambição da análise é possibilitar transformações psíquicas profundas, as quais reduzirão o potencial traumático das experiências passadas, com novas atualizações alcançadas pelos relatos do presente da relação analítica. A narrativa, ou seja, a construção em palavras do acontecer psíquico, possibilitará alcançar um nexo e uma seqüência temporal linear (p. 40). Esta, a narrativa, é então considerada um fator de transformação psíquica em si mesma.

A própria autora coloca objeções e dúvidas quanto à generalização dessa posição, admitindo que outras possibilidades podem ser consideradas, outros caminhos serão possíveis, devido principalmente à complexidade e à particularidade da psicanálise e de cada analisando.

Em sua conclusão, Michele Bertrand reconhece que a idéia de apenas construir uma narrativa com poder de provocar no analisando as transformações do anteriormente traumático pode ser muito redutora. Propõe considerar essa colocação apenas uma dentre muitas outras também com condições de promover o trabalho psíquico transformador. Parece que nesse ponto o trabalho se torna mais consistente e interessante.

Bertrand utiliza o modelo do relato de um sonho na sessão, sugerindo uma aproximação entre a construção narrativa feita pelo analista e o relato do analisando, o que conhecemos como conteúdo manifesto do sonho. Este, o conteúdo manifesto, como sabemos, sempre se refere a um conteúdo latente não conhecido, expresso pelo trabalho de elaboração onírica, de maneira simbólica e metafórica. Na verdade, pensamos que, ao tentar escapar do aspecto hermenêutico, revelador da interpretação, Bertrand acaba por propor uma posição de investigação e de desvendamento de um conteúdo latente no relato do analisando que de fato se aproxima das propostas freudianas tradicionais interpretativas, questionadas por ela mesma.

Inventar o possível significará, para Bertrand, a construção de uma nova história ou de múltiplas histórias que ajudarão o analisando a estabelecer novos vínculos e relações entre o traumático e os fatos. Será por essa condição, também, que surgirá na relação analítica a possibilidade de criar um espaço, um caminho para a sobrevivência psíquica, ameaçada até então.

Bertrand se refere a criar um espaço de jogo, como proposto por Viderman (1982), onde o aspecto ativo da criação transforme em tolerável o antes intolerável, alcançando a atua­lização de experiências insuportáveis, tornadas suportáveis pela passivização do jogo. Essa é uma das interessantes contribuições de Viderman que Bertrand retoma em seu trabalho.

A invenção de um possível, segundo ela, de um equivalente no espaço psíquico, é onde as experiências de caráter traumático, desorganizadas, poderão se manifestar, sem a terrível e avassaladora angústia que acompanha o traumático. É o objetivo por excelência da “construção narrativa” e do “inventar o possível”. A partir daí, o que estará em jogo será a tentativa de alcançar o nível do representável que permita o acesso ao simbólico e ao figurável nas experiências, as quais poderão vir a ser, então, representadas psiquicamente.

Partindo de críticas, questionamentos e refutações em relação aos vários autores, a autora acaba por produzir, de nosso ponto de vista, um trabalho complexo, talvez um tanto confuso e prolixo, no qual a busca de provas e certezas contraria o que na verdade é uma proposta de base da psicanálise. Suas colocações visam constantemente argumentar e contra-argumentar os posicionamentos dos autores por ela considerados, o que torna seu texto um tanto especulativo e pouco clínico. No entanto, como já dissemos, na conclusão do trabalho Bertrand consegue retomar suas propostas iniciais e contribuir com idéias interessantes.

Concordamos com a afirmação de que a interpretação, como ferramenta importante do trabalho psicanalítico, vem sofrendo mudanças e que a psicanálise há muito tempo deixou de constituir uma “hermenêutica”. No entanto, as propostas de “invenção” e de “equivalentes psíquicos” nos parecem mal colocadas e talvez equivocadas, levando em conta aspectos fundamentais de nossa prática.

A questão, do nosso ponto de vista, não é tomar a psicanálise como a construção de um espaço de “invenção” que permita a reconsideração e a reformulação do traumático pelo diálogo e pela narrativa, mas, sim, de um espaço onde o psíquico seja privilegiado e onde a elaboração psíquica, passando pela relação transferencial analítica, possa ser oferecida e então considerada e vivenciada pelo analisando. Invenção e construção, dentro de nossa perspectiva, são conceitos muito diferentes e distantes.

Construímos, junto com nossos analisandos, novas versões sobre os fatos, reelaboramos situações antes congeladas e negadas, buscamos alcançar algo novo e inédito que possibilite uma expansão através da dinâmica relacional transferencial. O espaço psíquico não é construído nem pelo analista nem por suas contribuições. O espaço psíquico é conquistado pelo próprio analisando, com a ampliação da área do mental, subtraindo ao corpo o espaço ocupado por este, e por suas manifestações e sensações.

“Com a expressão ‘eclipse do corpo’, queremos nos referir à formação progressiva de um espaço mental; esse espaço mental não é uma estrutura estática, mas uma função que se ativa a cada instante” (Ferrari, A aurora do pensamento, p. 32 ).

Os trabalhos de A. Green e T. Ogden propõem idéias muito ricas e importantes sobre o tema da interpretação e da dinâmica da dupla analítica, idéias que também levam em consideração a questão do espaço psíquico. A proposta de um terceiro analítico, formulada inicialmente por André Green e desenvolvida por Thomas Ogden, dá ênfase à experiência emocional vivenciada no encontro analítico e se refere a uma forma específica de consideração do acontecer analítico:

Não será o analista, nem o analisando que irão se constituir no objeto de nossa atenção e observação, mas sim aquilo que se passa entre eles, aquilo que é produzido pela relação analítica, que se constituirá no objeto analítico, construído no espaço analítico (Ogden, 1994).

Isto significa que “construímos” junto com nosso analisando, no espaço intersubjetivo da relação analítica, um “terceiro analítico” que na verdade é o sentido e o significado do acontecer analítico e corresponde ao objeto analítico. Este pode vir a ser colocado em palavras e, portanto, representado psiquicamente. Trata-se de “construção”? Certamente sim. E essa vivência, ao ser colocada em palavras, pode ser vista como uma “interpretação”? Acreditamos que sim, também.

O tema “construções em psicanálise”, em relação ao conceito de “interpretação”, vem chamando nossa atenção desde algum tempo. A ênfase dada por Bertrand ao trabalho de D. Spence, S. Viderman e R. Schafer nos levaram a retomar idéias anteriormente tratadas em trabalhos de nossa autoria. Não reivindicamos com isso nenhuma originalidade, pois acreditamos que os autores ingleses, tanto do grupo kleiniano como os neokleinianos e neofreudianos, muito trabalharam sobre essas questões, principalmente nos anos 80 e 90.

Em trabalhos de nossa autoria de 1989: História como mito: a articulação do passado no presente; de 1990: Mudança psíquica e sonhos: sua relação à experiência emocional; de 1994: Passado presente; de 1997: Interpretação: revelação ou criação?; de 1997: O diálogo psicanalítico; e de 2003: Trauma, elaboração e processo de mudança , buscamos tratar a experiência analítica como um momento em que a relação analista/analisando, num movimento constante de trocas subjetivas e intersubjetivas, constrói um novo significado psíquico que é vivenciado e colocado em palavras na dupla, muitas vezes produzindo transformações psíquicas importantes. Aproximamos o processo do sonho à experiência emocional vivida pela dupla analítica e ao processo psicanalítico, como momentos em que a retranscrição no tempo e no espaço pode ser alcançada.

Nesses trabalhos, demos especial importância à história, disciplina das ciências humanas que sempre nos pareceu importante em psicanálise, pois, ao nos referirmos à reconstrução e ao traumático como experiências passadas, ou à idéia de construção, estamos fazendo uso de uma concepção de historicidade e de tempo que precisa ser clarificada. Como menciona Viderman (1970), com quem muito aprendemos, “o analisando nunca reencontrará sua história, mas construirá seus mitos, que serão o que fizeram dele quem ele é”.

O tempo do mito é o tempo do sempre, do eterno. Ele permitirá ao analisando estabelecer crenças, relações de causalidade e de irreversibilidade, determinantes de seus comportamentos. Construímos e interpretamos nossos próprios mitos.

Na verdade, acreditamos que “construção” e “interpretação” são formas que se complementam e fazem parte do nosso ofício o tempo todo. O que são as nossas hipóteses senão construções às vezes mudas sobre os nossos analisandos? O que são os relatos de nossos analisandos senão referências às suas crenças e interpretações dos fatos vividos?

Encontramos um excelente exemplo dessa complementação quando o trabalho onírico é considerado, agora de uma perspectiva diferente da proposta por Bertrand. A mente “constrói” o sonho com as funções tanto de satisfazer os desejos proibidos, como de proteger o sono e estabelecer ligações entre os aspectos psíquicos, sejam estes imagens, vivências ou palavras. O sonho também tem a importante função de estocar elementos na memória (Bion, 1965) para que estes possam ser utilizados pelo pensar. O espaço do sonho, assim como o tempo específico do sonho (Green, 2000), podem ser tomados como o modelo que melhor caracteriza o processo psicanalítico e o funcionamento psíquico na sessão.

Por meio da elaboração onírica secundária, nos é fornecido um modelo aproximado do que se passa na mente do analisando. Na sessão o sonho é relatado, isto é, “interpretado” e transformado pelo próprio analisando, quando este busca uma maneira de colocá-lo em palavras e oferecê-lo ao analista. Ambos têm então de “construir” na sessão um outro sonho – um sonho compartilhado para que seja possível ampliar as associações e conversar.

O lugar de um analista decifrador de conteúdos psíquicos latentes, revelador de mistérios escondidos e inacessíveis, interpretador de sonhos, assim como o de um analisando que passivamente se deixa ocupar pelos significados e sentidos dados por outrem, há muito tempo vem se mostrando inadequado, falso e anti-analítico. Não acreditamos que somente a interpretação sofreu mudanças. O lugar ocupado pelo analista na relação analítica também vem sendo ampliado, e este, o analista, é visto como um participante ativo da relação emocional analítica.

Como já mencionado, em nossos trabalhos apontamos a importância da história, como um elemento que nos contextualiza e que permite nossa inserção no tempo e na cultura. No entanto, podemos observar com freqüência o poder e a intensidade das “estórias” pessoais que construímos e que nossos analisandos também constroem, visando dar conta das vivências e apreensões do mundo, muitas vezes avassaladoras e perturbadoras.

Fazemos referência à estória em contraste com a história, na medida em que a estória é construída e constituída por elementos que definem nossa maneira peculiar e individual de ser e de apreender os fenômenos, tanto internos como externos. Essa estória é, na verdade, nosso reservatório de crenças, de teorias e de mitos pessoais, extremamente poderosos e determinantes do funcionamento psíquico e da identidade. A estória nem sempre é conhecida pelo próprio sujeito, que muitas vezes se sente impossibilitado de se questionar, alimentando a crença nas próprias versões, prisioneiro de sua estória.

Acreditamos que um dos objetivos e metas da análise é tentar conhecer mais sobre essa estória, é investigá-la e reformulá-la. No entanto, não vemos essa tarefa como vinculada à reconstrução, nem como dependente da interpretação do analista ou da construção do analista. De nossa perspectiva, trata-se na verdade de uma apropriação de si mesmo pelo próprio sujeito, que poderá, então, a partir daí, assumir plena responsabilidade por suas escolhas e por suas decisões.

A possibilidade de um contato intenso, verdadeiro e constante entre analista e analisando, numa relação em que seja possível falar livremente daquilo que é vivenciado, percebido ou alucinado, provavelmente é o que contribuirá muito para o caminho em direção às transformações psíquicas profundas.

Retomando as colocações iniciais de Green mencionadas por Michele Bertrand, gostaríamos de relembrar seu posicionamento frente à construção. Diz ele:

Se hoje recorremos mais freqüentemente à construção, é porque lidamos com pacientes com partes de ego clivadas, devido a traumas precoces que se tornaram há muito tempo inacessíveis. A construção, com esses pacientes, é uma construção silenciosa que visa restituir e reparar as lacunas do tecido psíquico esgarçado (Green, 2000/2005).

Entendemos que Green diminui a importância das palavras quando fala de “construção silenciosa” e pensamos, concordando com ele, que o próprio setting analítico pode se constituir num elemento que contribua com a construção muda, não só na construção do espaço psíquico do analisando, mas no desenvolvimento de aspectos como a continência, a tolerância ao desconhecido e às descobertas.

De maneira semelhante, acreditamos que a presença do analista e a receptividade deste, ainda que sem palavras, pode vir a ser vivenciada como um elemento importante na reelaboração construtiva dos relacionamentos danificados.

O analista acolhe e vivência em si mesmo, as experiências que o analisando não consegue comunicar sob forma de mensagens estruturadas, às vezes inconscientes, mas que consegue ativar no analista através de identificações projetivas: isto quer dizer que o analista deve estar disponível para encarnar em si mesmo um papel que é desconhecido do analisando, e que não poderá adquirir uma forma e um sentido, a não ser quando trazido pelo outro (Ferro, 2006).

Michele Bertrand trata questões relacionadas a vivências entre analista e analisando como a “construção na contratransferência”, o que, do nosso ponto de vista, difere bastante da colocação de Ferro, com a qual concordamos. Apesar de contribuir com um exemplo clínico, o conceito de contratransferência utilizado por Bertrand parece tentar tratar o assunto e inserir a presença do analista na relação analítica de uma outra maneira.

Mencionamos anteriormente que um dos aspectos que parece ter se modificado muito nos últimos anos diz respeito ao lugar ocupado pelo analista na sessão, assim como às suas funções. A idéia de que o analista pode “encarnar” ou vivenciar, na sessão, aspectos desconhecidos do analisando não se refere à contratransferência ou apenas a uma idéia de empatia, mas, sim, a uma postura na sessão que supõe um analista participante, ativo e permeável ao clima emocional, partilhando com o analisando as situações emocionais trazidas.

Uma proposta de Armando Ferrari que nos agrada bastante e que apenas mencionaremos aqui toma em consideração um aspecto “vertical” no analista, em contraste com o vértice “horizontal” do relacionamento com o outro e o mundo. Por “vertical”, ele entende a relação analista/analisando capaz de produzir no analista uma vivência na vertical ou seja, dele consigo mesmo que, ao ser considerada e levada em conta por este, pode vir a ampliar sua apreensão da situação analítica em curso, permitindo uma contribuição através de suas próprias experiências.

Talvez isso nos aproxime da idéia de “construções mudas” ou silenciosas do analista e seja de fato um dos instrumentos fundamentais da psicanálise atualmente, ancorados sobretudo em reformulações teóricas de alguns conceitos e nas contribuições clínicas de alguns dos autores citados, como Green, Bion, Ogden, Ferro, Modell, Ferrari e Botella.

Terminamos aqui, sentindo que no final nos afastamos bastante do trabalho de Michele Bertrand, dando lugar à exposição de outros pontos de vista com os quais nos identificamos mais.

 

Referências

Bertrand, M. (2008). Construire un passé: inventer du possible? Trabalho apresentado no 68º Congresso de Psicanalistas de Língua Francesa. Genebra, Suíça.        [ Links ]

Botella, C. & Botella, S. (2003). La figurabilidad psíquica. Buenos Aires: Amorrortu.        [ Links ]

Brusset, B. (2007). Uma terceira tópica. Trabalho apresentado no 67º Congresso de Psicanalistas de Língua Francesa. Paris. (Trabalho original publicado em 2005.)        [ Links ]

Ferrari, A. (2000). A aurora do pensamento. São Paulo: Editora 34.        [ Links ]

Green, A. (1990). La folie privée. Paris: Gallimard.        [ Links ]

______ (1993). Le travail du negative. Paris: Minuit.        [ Links ]

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Ogden, T. (1994). Subjects of analysis. New Jersey/London: Jason Aronson.        [ Links ]

Viderman, S. (1990). A construção do espaço analítico. São Paulo: Escuta. (Trabalho original publicado em 1990.)         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Ana Maria Andrade de Azevedo
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo - SBPSP
Rua Dona Maria Carolina, 51 - Jardim Paulistano
01445-000 São Paulo - SP - Brasil
E-mail: amaaz@osite.com.br

Recebido em 20.8.2008
Aceito em 4.9.2008

 

 

* Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.

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