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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.42 n.3 São Paulo set. 2008

 

ARTIGOS

 

Poder parental e filicídio: um estudo interdisciplinar1

 

Poder parental y filicidio: un estudio interdisciplinar

 

Parental power and filicide

 

 

Rute Stein Maltz2; Maria Lucrécia Zavaschi3; Alice Becker Lewkowicz4; Alice Milman Bugin5; Denise Lahude6; Eneida Maria Fleck Suarez7; Liliana Soibelmann8; Regina Orgler Sordi9; Suzana Fortes10

Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho realiza um estudo interdisciplinar que relaciona poder parental com filicídio, expresso nas várias formas de abandono e violência com crianças. São descritos aspectos da história da infância no Brasil que exemplificam o tema. As autoras enfatizam como se pode buscar no estudo psicanalítico do desenvolvimento emocional primitivo  nas interações pais-filhos  as origens e a compreensão de muitos aspectos da violência, especialmente com crianças. Recorrem a alguns conceitos filosóficos sobre relações entre saber e poder para enriquecer o entendimento deste complexo problema. Por outro lado, constatam a importância dos fatores culturais, sociais e políticos, influenciados pelas leis e a ética, que se modificam nas diferentes épocas. Concluem afirmando como os conhecimentos derivados da psicanálise, aplicados na comunidade, em saúde pública ou divulgados através dos meios de comunicação em geral, podem contribuir no sentido profilático, possibilitando que a infância seja mais bem acolhida.

Palavras-chave: Parentalidade; Poder; Violência; Filicídio; Interdisciplinaridade.


RESUMEN

El presente trabajo objetiva un estudio interdisciplinario relacionando poder parental con filicidio, expreso en las varias maneras de abandono y violencia con niños. Son descritos aspectos de la historia de la infancia en Brasil que ejemplifican el tema. Las autoras enfatizan como si puede buscar en el estudio de la psicoanálisis del desarrollo emocional primitivo en las interacciones padres-hijos la origen y la comprensión de muchos aspectos de la violencia, en especial con niños. Recorren a algunos conceptos de filosofía sobre relaciones entre saber y poder para enriquecer el entendimiento de este complexo problema. Por otro lado, constatan la importancia de los factores culturales, sociales y políticos, influidos por las leyes y la ética, que son modificadas en las distintas épocas. Concluyen afirmando como los conocimientos originados en la psicoanálisis, aplicados en la comunidad, en salud pública o divulgados por intermedio de la comunicación en general, pueden contribuir en el sentido profiláctico, posibilitando que la niñez sea mejor acogida.

Palabras clave: Pareja; Poder; Violencia; Interdisciplinaridad.


ABSTRACT

The purpose of this paper is to accomplish an interdisciplinary study relating parental power and filicide expressed in the various modes of abandoning and violence. Some aspects of the history of infancy in Brazil are discussed to exemplify the theme. The authors stress how the psychoanalytical approach can be a way to examine, through the study of the primitive emotional development in the parent-children interactions the origins and understanding of many aspects of violence, mainly with children. They discuss some philosophical concepts that relate knowledge and power in order to enlarge the understanding of this complex issue. On the other hand, they stress the importance of cultural, social and political factors influenced by law and ethics, that change according to historical periods. The authors conclude by saying that the knowledge derived from psychoanalysis, applied to community, public health or informed through media, can contribute in a prophylactic way to improve childhood protection.

Keywords: Parenthood; Power; Violence; Filicide; Interdisciplinary.


 

 

1. Introdução

Este trabalho enfoca o tema do poder em relação ao filicídio e às várias formas de abandono e violência contra crianças. A idéia teve origem nos seminários da Formação de Psi­ca­nálise de Crianças e Adolescentes na Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, ao longo dos anos de 2004-2005, quando o grupo decidiu empreender um estudo extracurricular da história da infância através dos tempos. Iniciamos estudando prioritariamente a obra de Phillipe Ariés (1986), cujo enfoque histórico centra-se na cultura ocidental, especialmente a francesa, pautada historicamente por uma dificultosa relação dos adultos com as crianças, com períodos de intensificação de práticas filicidas abertas ou encobertas.

A curiosidade no sentido de avançar no estudo convocou o grupo a entrar mais em contato com a história da criança no Brasil, que será apresentada aqui de forma resumida, ressaltando-se os aspectos de agressividade, violência e abandono de crianças.

A finalidade do estudo foi entender melhor as vicissitudes da clínica infantil em função das novas estruturações familiares na atualidade, as quais se expressam pela violência e/ou abandono que viceja na sociedade contemporânea, mas cuja manifestação é parte da história de todas as épocas, desde a mais remota Antigüidade. Esses fenômenos expressam-se sob a forma de infanticídio e filicídio, num gradiente que vai desde as mais formas sutis até as mais extremas, como assassinato concretamente.

A manifestação de tais fenômenos é influenciada por fatores culturais, políticos e sociais inerentes às diferentes épocas, aliados aos aspectos do desenvolvimento do indivíduo compreendidos pela psicanálise em termos das interações pais-filhos. Cabe esclarecer que os aspectos éticos e as leis são variáveis nas diferentes épocas.

Outro aspecto especialmente importante diz respeito ao desamparo com que nascem os bebês, gerando uma total dependência em relação aos seus cuidadores. Esse fator propicia a possibilidade de as crianças serem utilizadas a serviço de necessidades narcisistas, de posse e poder, que podem levar a condutas violentas por parte dos adultos.

Abordar um tema desta complexidade exige um diálogo interdisciplinar; para tanto, vamos nos apoiar em descrições históricas, conceitos filosóficos e sobretudo psicanalíticos.

 

2. A criança no Brasil: uma história de abandono, violência e filicídio

Observa-se que existem pelo menos duas histórias sobre as crianças do Brasil de um lado, o mundo infantil descrito por organizações internacionais, por entidades não-governamentais e pelas autoridades e, de outro, o mundo cotidiano da criança. O mundo que “deveria” ser é diferente do que é. A criança tem sido enfaticamente orientada para o trabalho, o ensino, o “adestramento” físico e moral, sobrando-lhe pouco tempo para a brincadeira e o riso.

De um lado, a criança com brinquedos eletrônicos e Disney; de outro, a criança que trabalha, é explorada sexualmente, usa drogas, morre de fome. Esse não é um privilégio do Brasil. Na Índia, crianças são vendidas aos 5 ou 6 anos para as indústrias de tecelagem; na Colômbia, a minas de carvão; na Tailândia, são vendidas aos pedófilos; na Inglaterra, há os baby killers, crianças que matam crianças. Acrescidos a esses fatores, ainda temos os problemas decorrentes da fragilização dos laços conjugais, da exploração urbana, da globalização cultural, da crise do ensino, fatores que mudaram as relações entre adultos e crianças.

Pensar essas questões e seus antecedentes históricos têm sido tema de preocupação geral. Na Europa, há trinta anos, a demografia histórica ajudou a detectar a expectativa de vida, o papel da criança nas famílias, os números do abandono infantil ou da contracepção (Del Priore, 2004).

Entre nós, a trágica história marítima das crianças que chegaram de Portugal a partir de 1530 mostra que eram os “miúdos” os que mais sofriam; como havia poucas mulheres a bordo, o ambiente dos navios propiciava atos de sodomia, tolerados até pela Inquisição (Del Priore, 2004, p. 19). As crianças eram violadas por marujos pedófilos. Na iminência de naufrágio, eram esquecidas pelos pais e ficavam entregues à própria sorte, não raro morrendo por sua fragilidade. Em caso de haver tempestades, elas eram as primeiras a serem lançadas à fúria do mar.

A história do cotidiano infantil a bordo foi uma história de tragédias pessoais e coletivas. Embarcavam crianças e chegavam adultos calejados pela dor e sofrimento; deixavam de ser crianças, vendo seu universo de sonhos, esperanças e fantasias desmoronar, perdendo sua inocência para não mais a recuperar (Del Priore, 2004).

A chegada dos portugueses no Brasil introduziu mais uma diferença no tipo de educação que já se bifurcava entre a educação nativa do indígena e a educação africana, trazida pelos escravos. Segundo Del Priore (2004, p. 96), para Gilberto Freire as amas negras contribuíram para enternecer as relações entre o mundo adulto e o infantil. Por outro lado, havia a crítica dos religiosos a esse tipo de mimo dado às crianças. Os mimos estendiam-se aos filhos dos escravos. Havia nas famílias extensas européias o mesmo costume de tratar as crianças como brinquedos.

O castigo físico de crianças foi introduzido no Brasil Colonial pelos jesuítas, “para horror dos indígenas, que desconheciam o ato de bater em crianças, a correção era vista como uma forma de amor” (Del Priore, 2004, p. 97), ou seja, civilizar a crianças. A partir da segunda metade do século xviii, a palmatória foi o instrumento de preferência para o castigo.

No Brasil, tanto a escolarização como a vida privada chegaram com atraso: a passagem do período colonial para a industrialização tardia foi abrupta e não se implementaram os instrumentos para a adaptação ao novo cenário.

No final do século xix, o trabalho infantil ainda era a “melhor escola” para as camadas subalternas. Para a mulher pobre, “o trabalho é uma distração para a criança. Se não estiverem trabalhando, vão inventar moda, fazer o que não presta” (Del Priore, 2004, p. 10). No Nordeste, quase 60% desses trabalhadores eram analfabetos e, entre eles, a taxa de evasão chegava a 24%. No Sul, as crianças trabalhavam em lavouras domésticas, interrompendo os estudos na colheita, de forma que estar inscrito na escola não era o mesmo que freqüentá-la. O trabalho como complementação salarial de famílias pobres era priorizado, em detrimento da escola.

A observância à privacidade sempre foi precária no Brasil: lares monoparentais, mestiçagem, pobreza material e arquitetônica. Os espaços eram compartilhados indistintamente por crianças e adultos de todas as condições cortiços no século xix e favelas no século xx.

A história brasileira assistiu à ocorrência de dolorosas separações entre pais e filhos. Na sociedade pobre e escravista, as crianças eram arrancadas de suas mães.

A dicotomia dessa sociedade dividida entre senhores e escravos gerou o problema do trabalho infantil. Das crianças escravas, apenas um terço sobrevivia até 10 anos. Trabalhavam, já aos 4 anos, com os pais ou sozinhas, sendo comum perderem-se dos pais. Aos 12 anos, o valor de mercado dessas crianças dobrava, e nos inventários elas figuravam como máquinas de trabalho, tendo, ao lado do nome, a sua função: Chico “roça”, João “pastor”, Ana “mucama”.

Com a abolição da escravatura, as crianças continuaram trabalhando em canaviais e até hoje continuam a cortar cana em fazendas, em troca de comida e de alguns poucos centavos. O trabalho doméstico entre as meninas ocupava o segundo turno, suplementar ao do trabalho no campo.

Com a vinda dos imigrantes que alavancaram a industrialização no final do século xix, os pequenos imigrantes eram empurrados para as fábricas, passando onze horas a trabalhar, com vinte minutos de descanso.

A história da criança brasileira não é diretamente contada por ela. O resgate desse passado se obtém pelos documentos, mas também pela voz de adultos médicos, legisladores, educadores, padres, professores, que possuem uma forma de retratar baseada no seu estereótipo da criança ideal. Há que fazer uma crítica desses documentos. O fato é que a criança “não ideal” achou os estigmas definitivos de sua exclusão. A criança da rua, o “menor da rua”, passou a “menor de rua”.

No Brasil, temos como fontes documentais, por exemplo, as do memorialista Pedro Nava, que faz reviverem cores, sons e cheiros do passado:

O fumo e a bosta de cavalo postos na ferida umbilical foram os mesmos para todos; os que escaparam e os que morreram do mal de sete dias. A boneca de pano velho e marmelada foi chupada por todos os meninos de Minas. Conhecidos ou não […] íntimos ou sem costume, uns com os outros somos queijo do mesmo leite, milho da mesma eSPIga, fubá da mesma saca. Todos usamos o mesmo cagatório pênsil sobre o chiqueiro onde os porcos roncam […]. Os mesmos oratórios de três faces com o calvário em cima e o presépio em baixo. Os mesmos registros de santos enchendo as paredes para impedir os mesmos demônios e os mesmos avantesmas das noites de Minas. […] Eram amigos como irmãos (Del Priore, 2004, p. 16).

 

3. Relações entre saber e poder na filosofia e na psicanálise

Embora a farta documentação antropológica e sociológica sobre a história da infância brasileira pontue as relações de poder que se instituíram sobre as crianças pobres, filhos de escravos e marginalizados da sociedade em geral, sabe-se que os fenômenos de violência têm se disseminado por todas as categorias sociais.

Segundo Foucault (1989), não podemos considerar os fenômenos de exploração das massas (que ficaram bem conhecidos no século xix) como sinônimos de “poder”. Este último fenômeno é bem mais amplo e insidioso do que pretende sua explicação mais geral de forças dominantes sobre forças dominadas. Da mesma forma, também não podemos enfrentar o tema como sendo o poder formado por um sistema único que procura traduzir a ordem do saber, do discurso, como se houvesse uma verdade ou uma consciência totalizadora.

Para Foucault, nem as contribuições de Marx e Freud foram suficientes para ajudar a conhecer esse fenômeno tão enigmático, ao mesmo tempo visível e invisível, presente e oculto, investido em toda parte, que se chama poder. Quem o exerce? Até onde se exerce o poder? Através de que revezamentos? Até que instâncias, freqüentemente ínfimas, de controle, de vigilância, de proibições, de coerções? Onde há poder, nos explica Foucault, ele se exerce. Ninguém é, propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada direção, com uns de um lado e outros do outro; não se sabe ao certo quem o detém; mas se sabe quem não o possui.

Embora Foucault (1989) tenha sido qualificado por muitos como um estudioso do poder, o tema que lhe interessava desde o início de sua pesquisa era a problemática da subjetivação; para tanto, precisou interessar-se pelo poder como uma estratégia de investigação (Ibãnez, 1993). Em se tratando de processos de subjetivação, Foucault seguiu uma trajetória ontológica e epistemológica que se distanciou e se diferenciou muito da forma como a psicanálise originalmente concebeu esse fenômeno.

Ainda que tanto a filosofia foucaultiana como a psicanálise se dediquem ao estudo da subjetivação, há que remarcar pontos de diferença, por vezes irreconciliáveis, entre a perspectiva filosófica aqui esposada e a psicanálise dos vínculos humanos. Nesse sentido, Bleichmar (2004) diz ser necessário diferenciar o que significa a subjetividade daquilo que denominamos de processos de constituição psíquica. Para a autora e esta nos parece ser a perspectiva filosófica mais aceita na pós-modernidade e particularmente explorada por Foucault , a subjetividade está vinculada aos processos históricos, de produção de sujeitos sociais. Porém, essa compreensão não pode ser igualada aos processos de constituição do aparelho psíquico. Embora os dois campos teóricos se correlacionem, o modelo da tópica do inconsciente, do pré-consciente, as diferenças entre os sistemas psíquicos e a função da repressão seguem sendo instâncias necessárias e inerentes à constituição do psiquismo, em qualquer tempo da história da humanidade. Enquanto os processos de subjetivação são cambiáveis, o modelo da tópica psíquica obedece a uma correlação de sistemas que estruturam um sujeito do contrário, não há constituição psíquica possível.

Guardando essa importante distinção, nada mais parece obstar a que se busque um fecundo diálogo interdisciplinar, no qual o tema do poder que se expressa nas várias formas de violência ganha maior força de compreensão quando entendemos, por exemplo, que os valores reguladores das instâncias psíquicas atravessam e são atravessados pelos valores presentes no contexto em que esse aparelho se constitui. Assim, por exemplo, falhas importantes nos processos de repressão podem estar associadas a ambientes sociais nos quais os valores do superego instalam-se mais fragilmente, e fenômenos dessa natureza também podem ser mais observados em determinados períodos históricos do que em outros.

Se o poder é um fenômeno sempre presente, também nos estudos psicanalíticos a respeito das relações iniciais entre pais e filhos podemos perceber que os vínculos iniciais (primitivos) expressam-se através de forças de poder exercidas bilateralmente (dialeticamente?) na busca da verdade de cada um dos indivíduos imersos nessa interação. Observamos correlações interessantes se pensarmos que a aquisição da identidade individual passa, necessariamente, por uma dinâmica mãe-bebê que também está sujeita a forças inconscientes, as quais precisam ser negociadas para que a visibilidade de dois indivíduos, em vez da unidade mãe-bebê, possa prevalecer. Em outras palavras, seria no “poder vir a saber” sobre o outro a mãe conhecer o seu bebê na sua singularidade, enquanto permite se deixar conhecer pelo seu bebê, que também anseia por essa troca que residiria o destino do desenvolvimento de relações que induziriam prazer e promoveriam o crescimento emocional.

Por outro lado, as forças filicidas no seu amplo espectro compreendido neste trabalho como aquelas que não destroem apenas o filho ao matá-lo fisicamente, mas também como aquelas que impedem que ele seja visualizado como ser diferenciado, com necessidades alheias a dos seus objetos geradores atuariam no sentido oposto, ou seja, na desmentida que tão bem tem sido descrita como mecanismo básico na estruturação das relações de objeto perversas. Assim, teríamos o poder sendo exercido no sentido de colocar uma verdade que é minha no lugar da verdade do outro.

Desse ponto de vista, não estaríamos vivendo uma crise no poder exercido pelos pais nas “famílias emocionalmente insuficientes”, mas, sim, uma perversão desse poder outorgado necessariamente aos pais (ou a seus substitutos) pela condição de total dependência em que nasce o bebê humano.

Como conseqüência óbvia, nosso estudo recai não na falta ou no excesso de abuso do poder, mas principalmente nos jogos e meandros do uso desse poder nas relações familiares. Poder, gostaríamos de destacar novamente aqui, vinculado ao saber sobre si mesmo e, conseqüentemente, sobre o outro.

 

4. O poder parental: aportes psicanalíticos

Rascovsky (1975) descreve inúmeras evidências ao longo da história que corroboram a constatação de que a “perturbação da capacidade parental é condição da chamada raça de Caim” (p. 13). Ainda que provoque repugnância à nossa sensibilidade consciente, não podemos ter dúvidas sobre a extensa gama de manifestações de violência dos pais em relação aos filhos, quando esses últimos se tornam o triste depositário da agressão incontrolada do adulto em função de sua proximidade, de sua fragilidade, de sua dependência e principalmente dos múltiplos significados conscientes e inconscientes que a criança adquire na mente dos pais.

Assim, Rascovsky insiste na constatação de que a tendência destrutiva dos pais em relação aos filhos não deve ser considerada excepcional, mas inerente à condição humana. Existe uma resistência na nossa cultura em aceitar essa realidade, a tal ponto que, pelo menos até 1966, na Enciclopédia Britânica (entre outras tantas publicações desse tipo) não havia referências ao termo filicídio, apenas a infanticídio. Para Rascovsky (1975), essa é mais uma das evidências da intensa necessidade universal que “decreta o desterro e o tabu da palavra filicídio” (p. 16), deixando apenas o termo infanticídio para designar situações bem distintas uma da outra.

Paradoxalmente, o assassinato dos filhos está presente em muitos dos mitos básicos que fundaram a cultura, pois descrevem a maneira de se relacionar com a deidade e/ou como fundamento de pacto com a mesma. Assim, na mitologia grega temos Urano, Gea, Cronos; Pélope, Crésipo, Laio e Édipo. Na cultura judaico-cristã, no Gênesis, Deus exige de Abraão a morte de Isaac, que vem a definir a atenuação pela circuncisão, e no Novo Testamento temos Jesus, o filho sacrificado em nome do pai.

Por outro lado, Rascovsky & Rascovsky (1972) assinalam como o filicídio antecede ao parricídio e pode ser seguido através de observações antropológicas, nas culturas primitivas, na mitologia, em ritos de iniciação e em várias instituições sociais arcaicas e modernas. Dão o exemplo da guerra como uma forma de filicídio. São palavras dos autores:

O filicídio surgiu da regressão esquizo-paranóide dos pais e instituiu uma exacerbação paranóica permanente do desenvolvimento sócio-cultural que organizou a proibição do incesto. O processo se integrou mediante o desenvolvimento de festas maníacas que culminaram na idealização dos perseguidores e na negação onipotente do procedimento total (p. 95).

Em Totem e tabu (1913/987), Freud caracteriza a horda primitiva como constituída por um pai todo-poderoso e submetedor. É possível pensar que Freud tenha querido materializar, através do relato mítico do assassinato do pai e da comida totêmica, a violência que todo pai exerce sobre seu filho e a violência que todo filho exerce sobre seu pai. O primeiro, para promover a constituição de um sujeito, e o segundo, para garantir a própria sobrevivência. Assim, o mal-estar instalado com a morte do pai no clã fraterno torna-se marca indelével na cultura e na constituição dos laços sociais. Segundo destaca Peter Gay, toda a sociedade humana estaria calcada sobre a cumplicidade num grande crime.

Freud (1914/1987), em Sobre o narcisismo, afirmou que a consciência emergente do bebê quanto à dependência física dos pais acarreta seu primeiro amor, que é dirigido à mulher que o alimenta e ao homem que o protege. O reconhecimento que a criança desenvolve a respeito do controle dos pais sobre suas necessidades e desejos também transforma a possível perda do amor parental numa perspectiva assustadora. Assim, como os filhos temem perder o amor dos pais, estes podem empregar seu amor como um instrumento de domínio e controle. Do conjunto de sensações de segurança e angústia evocados pelo amor surge a autoridade. Por servir de instrumento do poder, explicou Freud (1905/1987) em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, “o amor torna-se uma fonte importante de autoridade, senão a mais fundamental de todas”, e prossegue explicando: “para as crianças pequenas os pais são, a princípio, a única autoridade e a fonte de todas as crenças” (p. 142).

Freud, posteriormente, em O mal-estar na civilização (1931/1987), destaca o antagonismo entre as exigências do instinto e as restrições da civilização. Refere que um dos aspectos da civilização se expressa pela maneira como os relacionamentos mútuos dos homens são regulados. E que a substituição do poder do indivíduo pelo poder da comunidade constitui o passo decisivo da civilização. Conclui que “os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas […], pelo contrário, são criaturas em cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade” (p. 116). Assim sendo, o outro, o seu próximo, não é apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém em quem satisfaz a sua agressividade, que utiliza sexualmente sem consentimento, explora o seu trabalho, apodera-se de suas posses, humilha, causa sofrimento, tortura e mata.

Brunner (2000) propõe:

[…] a compreensão freudiana das relações sociais no seio da família foi fundamentalmente política, uma vez que ele considerou a família não apenas como uma instituição social, que dá margem a ambivalências afetivas, mas também como uma arena de lutas pelo poder […]. Aliás, os pensadores políticos desde Platão interessam-se não só pelo aspecto público ou governamental da dominação, mas também pelas dimensões de poder e dominação que estão implicadas em todas as outras relações sociais, inclusive as da família (p. 78).

Ferenczi (1992) desenvolveu um avanço teórico considerável ao propor que, quando a sensação de segurança sofre importante mutilação, emerge um trauma, resultante de uma violação psíquica da criança por um adulto, de uma “confusão de línguas” entre eles e sobretudo da desmentida, por parte do adulto, em relação ao desespero da criança. Quando essas formas de invasão psíquica produzem seus efeitos, desqualificando e desmentindo o reconhecimento do pensamento e dos afetos no psiquismo da criança, produz-se um trauma que gera inevitavelmente uma cisão.

Da mesma forma, Shengold (1979) descreve o assassinato da alma como um crime caracterizado pela desumanidade do homem para com o homem. Um homem usa o poder sobre outro para aniquilar sua individualidade, sua dignidade, sua capacidade de sentir profundamente (sentir alegria, amor e até mesmo ódio) e de suprimir na vítima o uso da mente, da capacidade de pensar e de testar a realidade. Quando isso se passa nas relações entre adultos e crianças, ocorre uma destruição completa ou parcial do aparelho mental em desenvolvimento ou até mesmo do já desenvolvido e do senso de identidade.

Klein (1946), descrevendo a violência existente no funcionamento mental primitivo, mostrou como o bebê, em sua fantasia, ataca o interior da mãe, na tentativa de ter a posse, o poder e o controle dela. Por esse meio, ele procura também evitar o sentimento de ser separado da mãe, de quem depende de forma absoluta.

Por outro lado, Winnicott (1956, 1960), com os conceitos de “mãe suficientemente boa” e de holding, deu um maior destaque ao papel da mãe e do ambiente cuidador no desenvolvimento, na constituição dos vínculos.

Dentro desse contexto, cabe citar os estudos dos pós-kleinianos, na pessoa de Bion, com os conceitos de “continente” e reverie (1962).

Esses autores mostraram como, na medida em que a criança é atendida, envolvida, alimentada e compreendida em suas necessidades, vai se sentindo aliviada de seus medos, de suas inseguranças, o que possibilita uma atenuação de seus possíveis impulsos de raiva. Assim, a momentos de desespero, dor, raiva, seguem-se outros de prazer, de satisfação. Portanto, a mãe, o pai e o ambiente cuidador são da máxima importância no sentido profilático.

A compreensão psicanalítica das bases do desenvolvimento emocional primitivo do indivíduo pode explicar, em alguma medida, como os desejos de posse e poder, com controle do objeto, acompanhados de fantasias de extrema agressividade, podem justificar a violência e a maldade nas relações humanas. Mas também se faz necessário destacar como a introjeção e a instalação de um bom objeto no mundo interno, advindo em boa parte dos cuidados e do amor dos pais, favorecem a boa adaptação e a integração.

 

5. Considerações finais

Ao apresentar uma breve retrospectiva da história da infância no Brasil, destacamos o aspecto filicida, de violência, expresso como abuso, negligência, maus-tratos e abandono, que caracterizaram a trajetória histórica em nosso país. Através da história, podemos nos conhecer melhor, como indivíduos e como seres sociais. Nas palavras da historiadora Del Priore (2004): “Não será a primeira vez que o saudável exercício de ‘olhar para trás’ ajudará a iluminar os caminhos […], entendendo melhor o porquê de certas escolhas feitas por nossa sociedade” (p. 8). E lembramos como a psicanálise, desde Freud, nos explica a origem inconsciente da violência e do poder, através do estudo do desenvolvimento emocional das primeiras relações.

Nesse contexto, cabe referir como na clínica psicanalítica com crianças as questões éticas adquirem um significado especial, em função da dependência das crianças em relação aos pais. Necessitamos estar atentos à nossa contratransferência, pois a intensidade e o imediatismo da transferência se somam a uma freqüente articulação com as vivências e conflitos infantis do analista. Grande é a possibilidade de nos surpreendermos com o desejo de posse do filho que não é nosso, com a identificação com a criança contra os pais ou com nossa identificação com os desejos e expectativas dos pais, em detrimento da liberdade do filho de escolher aquilo de que gosta ou aquilo que quer ser. Portanto, devemos evitar conluios ou pactos inconscientes com um dos pares da tríade pais-filho, o que pode conduzir a actings, que levam, com bastante freqüência, à interrupção do tratamento por pressão de um dos pais.

Assim, vemos o uso que pode ser feito do poder dos pais, ou do analista, contra a criança, causando-lhe sofrimento. Muitas vezes as crianças estão sujeitas a uma espécie de contrato de sucesso, em função de uma cobrança dos adultos.

Por que estamos nos referindo à ética? É que a ética, por meio da repressão, propicia a inibição da violência e do poder em sua forma exacerbada. Nas palavras esclarecedoras de Foucault, a ética permite que possamos refletir e utilizar a liberdade de pensamento em nossas condutas. A conduta ética, mais profundamente no indivíduo, está consubstanciada no superego e nos sentimentos de culpa, inconscientes, os quais conduzem às práticas sociais grupais, com aumento da responsabilidade pelo outro.

As várias modalidades de tentativas para prevenir ou sanar o problema da violência contra a infância têm encontrado na teoria psicanalítica um importante subsídio para potencializar toda uma rede de iniciativas governamentais e/ou privadas. Os conhecimentos derivados da psicanálise, aplicados em saúde pública ou divulgados através dos meios de comunicação em geral, podem contribuir no sentido profilático, bem como possibilitar uma qualificação maior de todos aqueles que participam da tarefa de construir espaços internos e externos nos quais a infância possa ser mais bem acolhida.

 

Referências

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Shengold, L. L. (1979). Child abuse and deprivation: soul murder. Journal of the American Psychoanalytic Association, 27(2):533-559.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rute Stein Maltz
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Maria Lucrécia Zavaschi
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Alice Becker Lewkowicz
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Alice Milman Bugin
Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre - SPPA
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90430-010 Porto Alegre - RS - Brasil
Tel.: +55 51 3330-6118
E-mail: alice.mb@terra.com.br

Denise Lahude
Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre - SPPA
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90510-002 Porto Alegre - RS - Brasil
Tel.: +55 51 3222-2961
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Eneida Maria Fleck Suarez
Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre - SPPA
Rua Joaquim Pedro Soares, 500/35
93510-320 Novo Hamburgo rs Brasil
Tel.: +55 51 3595-2844
E-mail: r-suarez@uol.com.br

Liliana Soibelmann
Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre - SPPA
Av. Carlos Gomes, 1610/605
90480-002 Porto Alegre - RS - Brasil
Tel.: +55 51 3328-5525
E-mail: soilili@brturbo.com.br

Regina Orgler Sordi
Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre - SPPA
Rua João Guimarães, 31/404
90630-170 Porto Alegre - RS - Brasil
Tel.: +55 51 3331-7263
E-mail: sordi.voy@terra.com.br

Suzana Fortes
Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre - SPPA
Rua Tobias da Silva, 253/308
90570-020 Porto Alegre - RS - Brasil
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E-mail: suzf@terra.com.br

Recebido em 11.2.2008
Aceito em 8.4.2008

 

 

1 Versão modificada de trabalho apresentado na mesa-redonda “Infância, Adolescência e Sociedade”, no xx Congresso Brasileiro de Psicanálise, Brasília, 2005.
2 Membro associado e psicanalista de crianças e adolescentes da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre SPPA.
3 Membro efetivo e psicanalista de crianças e adolescentes da SPPA.
4 Membro associado e psicanalista de crianças e adolescentes da SPPA.
5 Membro aSPIrante graduado da SPPA.
6 Membro aSPIrante graduado da SPPA.
7 Membro aSPIrante graduado da SPPA.
8 Membro aSPIrante graduado da SPPA.
9 Membro aSPIrante graduado da SPPA.
10 Membro associado e psicanalista de crianças e adolescentes da SPPA.

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