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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.42 n.3 São Paulo set. 2008

 

ARTIGOS

 

A experiência afetiva com a sensorialidade

 

La experiencia afectiva con la sensorialidad

 

The affective experience with the sensoriality

 

 

Thaís Helena Thomé Marques1

Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo põe em evidência tanto a mente do analista em interação com a do analisando, como o trânsito contínuo, durante a experiência psicanalítica, de estados sensoriais para os emocionais e dos emocionais para os sensoriais. Esse trânsito ou sua obstrução dependem basicamente da tolerância à dor mental da percepção da separação e da diferença entre as mentes envolvidas na experiência. A autora propõe que, algumas vezes, a separação e o isolamento decorrente do alcance de significados podem ser sentidos como insuportáveis e que, nessas circunstâncias, o retorno à sensorialidade, caracterizado principalmente como expressão da mentalidade gregária, pode se constituir como única condição de sustentação da sensação de existir. Nessas condições, a perspectiva possível para a manutenção da função analítica passa a ser a experiência afetiva com a sensorialidade, para que sua representação e posterior significação sejam possíveis. A principal proposta do artigo é a de que os elementos sensoriais não sejam desprezados por estarem indiscriminados de estados alucinatórios, os quais sabidamente propõem um engolfamento da experiência, mas incluídos na observação psicanalítica como base para possíveis significações, uma vez que com muitos analisandos a sensorialidade se constitui como a matriz básica por onde, em vários momentos, o vínculo transita.

Palavras-chave: Experiências sensoriais.


RESUMEN

El presente artículo científico pone en evidencia tanto la mente del analista, en interacción con la del analizante, como el transitar continuo, durante la experiencia analítica, de los estados sensoriales a los emocionales y de los emocionales a los sensoriales. Que se realice este tránsito o su obstrucción dependen básicamente de la tolerancia que se tenga al dolor mental de la percepción de la separación y la diferencia entre las mentes involucradas en la experiencia. La autora propone que, algunas veces, la separabilidad y el aislamiento obtenido por medio del alcance de significados pueden ser sentidos como insoportables, y en esas circunstancias el retorno a lo sensorio, caracterizado principalmente como la expresión de la mentalidad gregaria, puede llegar a constituir la única condición de sustento de la sensación de existir. La perspectiva posible para mantener la función analítica, teniendo en cuenta esas condiciones, pasa a ser la experiencia afectiva con la sensorialidad para que sean posibles tanto su representación como la posterior significación. La principal propuesta del artículo consiste en que los elementos sensoriales no sólo no sean despreciados por presentarse indiscriminados de los estados alucinatorios, que sabidamente proponen el quedarse inmerso en la experiencia, sino que propone además que dichos estados sean incluidos en la observación psicoanalítica como base para posibles significaciones, debido a que con muchos analizantes lo sensorio constituye la matriz básica por la cual, en varios momentos, circula el vínculo.

Palabras clave: Experiencias sensoriales.


ABSTRACT

The article points out both the mind of the analyst interacting with the mind of the analysand as well as the continuous transit, during the psychoanalytical experience, from the sensorial states to the emotional ones and from the emotional states to the sensorial ones. This transit or its obstruction depends basically on the tolerance to the mental pain of separation and the difference between the minds involved in the experience. The author proposes that sometimes the separability and the isolation obtained through the reach of meanings can be felt as unbearable, and in these circumstances the return to the sensoriality, mainly characterized as expression of the gregarious mentality, may become the only condition of sustainment of the sensation of existing. The possible perspective to the maintenance of the analytical activity in these conditions becomes the affective experience with the sensoriality, in order that its representation and later signification be possible. The article’s main proposal is that the sensorial elements not be deSPIsed because they are undistinguishable from delusional states, that are known to propose an engulfing of the experience, but included in the psychoanalytical observation as basis to possible meanings, since with many analysands the sensoriality consists the basic matrix through which, in various moments, the link transits.

Keywords: Sensory experiences.


 

 

Nos transitórios corpos vivos, lutam duas correntes: primeira a ascendente, rumo à síntese, à vida, à imortalidade; segunda a descendente, rumo à dissolução, à matéria, à morte. As duas correntes se originam no imo da substância primeva. De começo, a vida surpreende; parece uma reação ilegítima, desnaturada e efêmera às trevas das fontes eternas; mas, quando nos aprofundamos, percebemos que a vida é o próprio curso, sem princípio nem fim, do Universo. Se assim não fosse, de onde viria a força sobre-humana que nos lança do incriado ao criado e nos impele plantas, animais, homens à luta? As duas correntes antagônicas são, pois, sagradas.

Cumpre-nos, então, aceder a uma visão que articule e harmonize esses dois prodigiosos impulsos sem princípio nem fim, e por ela regular o nosso pensamento e a nossa ação.

Nikos Kazantzákis

Em Ascese: Os salvadores de Deus, poesia pura da existência humana, Nikos Kazan­tzá­kis concebeu a existência humana como composta de um curso de elementos mentais primordiais que, a princípio, nos parecem antagônicos em constante disputa por prioridade. Contudo, poetisa, se os observamos e sentimos profundamente, podemos compreender que são sagrados, pois se desenham num curso paradoxal sem início e conclusão. E finalmente concordamos com a necessidade de articulá-los e harmonizá-los de forma que nos sirvam, primeiro, ao pensamento, depois, ao conhecimento, apenas implícito no poema, e, por último, ao ato de nos tornarmos.

Desejo investigar não o antagonismo entre forças de vida e morte, mas o movimento entre elas, sem princípio nem fim, que nos lança do incriado ao criado e vice-versa, permitindo-nos assim capturar uma nova observação a partir da qual o pensamento transite para conhecer tanto o novo a respeito de nós mesmos, na relação que estamos estabelecendo, como também nos tornarmos não melhores ou piores, apenas diferente do que éramos.

Nesse sentido, procuro observar a complexidade dos estados mentais que se encontram entre subidadescida, articulaçãodesarticulação, ou, dizendo de outro modo, a matriz do pensar. Note-se o que está entre a construçãodesconstrução do pensamento, incluindo, se possível, todos os elementos mentais que possam ser gerados entre eles. O termo desconstrução não é sinônimo de destruição, pois neste último não restam dados para poderem se reunir de forma a obtermos algum significado, ao passo que desconstrução sugere nova reunião de elementos de forma significativa, uma primordial construção do pensamento.

Interessa-me a observação do vínculo, o que se encontra entre a ordem espontânea de uma mente e a ordem espontânea de outra mente e que é o método de comunicação entre elas. Considerando que a função alfa proposta por Bion é um conceito vazio, no sentido de ser insaturado e que um tanto misteriosamente transforma as impressões sensoriais em elementos mentais usados para o pensamento, é nessa área que pretendo transitar. Isto se distingue do conceito de erotização do vínculo, abarcado pela idéia de transformação em alucinose.

Meu enfoque se dirige ao trabalho com a sensorialidade, no sentido de transformar sensações em elementos pensáveis, pois acredito que nelas se encontra o registro do repúdio à relação com o objeto e, por isso mesmo, vestígios de uma ligação que, provavelmente por alguma razão, uma vez se tornara uma busca impossível.

Esta é a forma mental mais primitiva de lidar com a falta e com a dor da percepção das diferenças e da separação geradas pela impossibilidade de o aparelho psíquico fazer sua função: a de juntar e separar os elementos mentais da experiência que contenham evidências do vínculo, pois o intento considerado muitas vezes impossível é apenas a manutenção de um elo na vigência da separação.

A ameaça é a de que esses movimentos que nos apresentam a percepção da separação abram crateras que parecem intransponíveis, diante das quais o único recurso é o apelo à sensorialidade como um modo de sustentação da existência, restando apenas a reificação daquilo que num momento anterior era a evidência de um vínculo afetivo.

Alguns analisandos propõem situações repetitivas de embaraço ao trabalho analítico, por não suportarem perceber que sou diferente e, portanto, separada deles, quando é inevitável que eu me mostre assim. Um analisando em especial trazia incansavelmente a queixa de que eu o havia deixado só, com um chute no traseiro, após ter mudado um de seus horários por necessidade minha.

Entendi que ele havia tomado esse fato para tentar lidar com a tarefa mental de não poder amar e se sentir amado. Até então, experimentei esse estado de coisas perguntando a mim mesma por que eu havia provocado tal situação e de que modo eu poderia tê-la evitado apenas uma reivindicação acusativa.

Aos poucos percebi que, cada vez que eu fazia uma formulação ou lhe oferecia um modelo que apontava um caminho diferente daquele que ele propunha, desandava a fazer pesadas acusações de que era só e nunca encontraria alguém que quisesse ficar com ele. Quando lhe disse que sua zanga tinha a ver com o fato de eu ter dito algo diferente, e bem como com o fato de que lhe causava dor perceber como nós dois éramos distintos, conseguiu transpor o hiato e caminhar mais um pouco, até a  parada seguinte. Estava preservada nele uma porção de esperança de encontrar uma ligação afetiva. Entretanto, quando isso não acontece, a análise sucumbe a estados mentais alucinatórios muitas vezes intransponíveis, estados que culminam num impasse sem resolução.

Estou consciente de que, além da possibilidade de captação da experiência emocional através de elementos sensoriais que sejam usados para o pensamento, é provável que nessa tentativa também se incluam elementos psíquicos provenientes de transformações em alucinose, que sabidamente propõe engolfamento e predefinição da experiência, sensorializando-a, mas não é somente por essas questões que me interesso.

O tipo de abordagem clínica estabelecida por Bion é mais inseguro e menos tranqüilizante para o ofício do analista, pois o coloca em condições de precariedade emocional, uma vez que sabemos ser ainda mais arriscado sustentar a experiência analítica simplesmente através de pensamento causal; na linguagem de Kazantzákis, apenas a subida do incriado ao criado ().

Ao longo de sua obra, Bion fez claras referências ao pensamento, apontando que, sendo ele existente por si só, necessita de uma mente, um pensador vinculado e ao mesmo tempo separado, para que, ao capturá-lo, possa se ocupar do trabalho de transformação por alcance de significados que o representem. A meu ver, isso denota que o pensamento, preexistente, não se realiza por razões de causalidade (ou ), e, sim, por transformações () nascidas a partir do vínculo, da transitoriedade dos estados sensoriais e emocionais entre duas mentes presentes.

Essa formulação se afina com a idéia do impressionismo de Monet nas artes visuais, pela possibilidade de captar e registrar com objetividade as impressões que estão em trânsito no momento, uma espécie de representação do realismo fugaz.

Surge uma indagação de que pretendo tratar sobretudo através de experiências clínicas: qual então é a função do analista diante do trabalho de construção-desconstrução do pensamento?

Assim como nas artes visuais uma imagem é apresentada e o pintor tem a esperança de que esta imagem se anime para alguns, a função psicanalítica consiste em oferecer ao analisando a impressão particular do analista de certa ordem espontânea nascente, a surpresa de um objeto que surge de determinada relação e se aglomera sob o olhar em forma de idéias articuladas, numa nomeação.

Na experiência clínica, deparamo-nos com a complexa e continuamente arriscada tarefa de produzir algo que possa, como na pintura, animar o analisando para a investigação da experiência emocional pela qual estamos passando.

Então, como pode ser entendido o uso, pelo analista, de suas próprias sensações, quando essas são as únicas canchas que lhe restam para a captação da experiência emocional em curso, pois está vivenciando algo que pode ser repudiado por ele próprio, em razão de estar sendo entendido apenas como uma espécie de convite para um engolfamento? Confusão, contra-identificação projetiva, falta de análise do analista?

A derruba da experiência emocional em direção à sensorialidade traz consigo uma pressão para o engolfamento da mente do analista, e penso que algumas vezes pode se tornar indistinto de um aspecto de sensorialidade sempre presente nas relações e que são para mim expressões da vivência gregária. A mente separada sofre uma contínua pressão para diluição na experiência em grupo, diferente da degradação da experiência emocional proposta pelas transformações em alucinose, contra as quais pouco se pode fazer.

Estas são, para mim, hipóteses propiciadoras de uma expansão significativa do entendimento da experiência analítica, que de outro modo seriam apenas tempos de aridez, torpor e vazio. Refiro-me a isso porque observo que em vários momentos uma emoção dolorosamente experimentada volta-se para uma reificação do sensorial. Quem de nós já teve a experiência sensorial de amargor na boca ou mesmo dor aguda no estômago no exato momento subseqüente a uma emoção dolorosa? Quem de nós ficou preso num significado anteriormente adquirido, quando, numa nova experiência, somos apresentados à evidência dolorida da precariedade de nossa existência?

Quando, numa experiência analítica, faltam palavras ou se estas não podem dar conta de uma nova situação porque se transformaram num aglomerado de clichês consagrados analiticamente, mas esvaziados da sustentação de significados que a representem , como nos localizar ou mesmo apreender elementos vivos de uma interação? É possível nos aproximarmos do incriado, mantendo um grau de separabilidade que nos permita observá-lo sem sermos sugados pela mentalidade de rebanho?

Grande parte do trabalho analítico é sustentada pelo vir-a-ser, condição que permite o desenhar-se contínuo de um analisando e de uma dupla em interação que também estão por vir.

Estimulada por essas idéias e para poder expressar, mais à frente, o paradoxo de sensações e emoções transitórias que a experiência da vida mesma nos oferece, valho-me de uma vivência com um jovem analisando com o qual tenho me encontrado-desencontrado há dois anos.

Por um ano inteiro, estive em sua presença, a cada sessão que ele comparecia, com a mais clara sensação de que ele não voltaria na próxima. Isso foi se ampliando, mesmo porque sua freqüente ausência perdurou por todo o ano, com o argumento de que não tinha tempo para estar comigo. De uma combinação que fizemos para nos encontrarmos três vezes na semana, ele conseguia vir duas, embora apenas quinzenalmente, além de sair dez minutos antes do término da sessão, apressado para resolver algo que precisava fazer e o estava perturbando. Pensei não haver outra forma mais contundente de estar presente estando ausente, ou vice-versa.

Quando conseguia vir, os minutos iniciais da sessão eram usados para tecer elogios à decoração da minha sala, especialmente ao divã, cujo desenho foi confeccionado no formato de um “S” horizontal. Usava o restante da sessão para descrever minuciosamente os finos e saborosos pratos e vinhos que havia degustado, e os lugares maravilhosos em que tinha estado. Embora se considerando jovem, dizia aproveitar da vida tudo o que ela podia lhe oferecer.

Confesso que, muitas vezes, intimamente fiquei com água na boca e experimentei uma sensação de bem-estar por me encontrar em companhia tão agradável e excitante. Em razão de uma imposição superegóica e, portanto, moralista, e não por uma busca dos meus sentidos, percebi nesses momentos que eu me encontrava culpada por me dar conta de que eu era analista e, como tal, tinha uma função em relação à qual ele nutria profundas expectativas, motivo que o levara a procurar. Sendo assim, é claro, fiquei com a impressão de que pensar que é bom, nada!

Segundo minhas hipóteses, experimentávamos diferentes sensações transitórias desvestidas de significado, único modo pelo qual ele registrava o vínculo comigo e consigo. Disse-lhe que percebia que estava sendo capaz de produzir vivências em si próprio, como se fosse sob o efeito de uma espécie de droga que causava excitação e bem-estar. Sua reação foi tentar me convencer de como a vida era boa e de que deveria ser aproveitada.

Outras vezes, depois de me dizer o quanto o divã era para ele confortável, desenvolvia uma espécie de crise alérgica que lhe entupia o nariz e o fazia coçar o rosto todo. Esfregava o nariz com a palma da mão e em seguida, tirando do bolso da calça um tubo de Vick, aSPIrava-o pelas narinas e pingava colírio para umedecer os olhos. Dizia estar mal fisicamente, sonolento, e o nosso contato ficava dando voltas nessa situação, na qual eu experimentava desejos de que ele fosse para casa dormir, tal a sua debilidade. Nesses momentos, percebia que também eu estava cansada, por não estar compreendendo a experiência pela qual passávamos, o que me levava a abrir mão dele e, conseqüentemente, de pensar.

Cheguei a formular, numa sessão, que ele procurava produzir em si próprio uma maneira de adormecer para aliviar as dores, idéia com a qual aparentemente concordava, pelo modo como reagia. Confirmava e, desculpando-se, saía dizendo que precisava ir para casa dormir pelo resto do dia. Entendi que o acordo entre nós havia se tornado óbvio, e o desacordo do qual ele não podia falar no momento desaparecia.

Nessa ocasião, basicamente nossas experiências eram sensoriais (bem-estar e mal-estar, excitação e adormecimento), e as formulações que eu fazia se transformavam em pseudo-entendimentos, concordâncias por vezes automáticas, outras vezes em entendimentos de cunho moral, ou mesmo se destinando a um suposto acordo comigo, uma vez que ficava em silêncio, um tanto adormecido, e ao mesmo tempo se agitava, rindo e tentando erguer a cabeça para me olhar e perguntar: “Que foi?”

Tinha necessidade de ver em meu rosto indícios de que eu ainda estava lá, pois talvez ele estivesse desaparecendo por absoluta falta de significados para a experiência que estávamos tendo. Perguntei então a ele: “Você tem alguma idéia do que está acontecendo?” Ele reagia tentando me provocar e, ao mesmo tempo, me paralisar: “Não! E a senhora, está entendendo? Se estiver, me explique com uma boa argumentação!”

Por momentos, suas experiências se davam em termos de em sentir-se provocado (excitado) e/ou provocando (excitando-me), paralisado (adormecido) e/ou paralisando (adormecendo-me). Não podiam alcançar a dimensão emocional com alguma representação simbólica, tinham apenas expressão sensorial e estavam sendo compartilhadas para serem transformadas, com o meu auxílio, em explicações, formas de condutas ou qualquer outra coisa que fosse estática, exceto em possibilidade de investigação da experiência.

No final desse ano de trabalho, em que eu tinha a impressão de que quase nada havia se transformado, muito embora eu soubesse que não é bem assim que acontece, ele trouxe o que chamou de “sonho que não era bem sonho, apenas algo que acontecia na realidade”. Dois sonhos abriram caminho para novas perspectivas e experiências entre nós. No primeiro, ele corria sem parar e se sentia magro e muito bem. No segundo, olhava-se no espelho e via suas olheiras, o que causava repulsa, pois se sentia feio.

Enquanto conversávamos, ele me disse que gostaria que houvesse algo efetivo, como correr bastante e emagrecer, já que estava acima do seu peso ideal e comer era um dos maiores prazeres da vida, disso ele não abriria mão. Falou também que suas olheiras lhe eram incômodas e isso o fazia se sentir ainda mais feio do que já se julgava. Com a finalidade de encontrar mais elementos para observar e ser capaz de “argumentar” de acordo com a sua linguagem, usei o modelo da diferença de raças, pensando em minha dupla descendência libanesa, que me deixou de herança, além de outras qualidades, profundas olheiras. Disse-lhe que algumas pessoas de determinadas raças, como  os árabes, carregavam essa marca. Lembrou-se do fato de que a única pessoa de sua família com olheiras era a avó materna e disse que a mãe se parecia muito com ela, exceto nesse quesito.

Notei pela primeira vez que tínhamos uma chance de observar, agora com um contorno diferente, talvez não algo completamente novo, mas o que se reproduzia como um ramo da herança emocional transgeracional, sem que isso fosse percebido como notação e conhecimento de outra mente presente. Também cogitei que possivelmente esse acordo fosse o precursor de um desacordo. Repentinamente ele passa a se agitar esfregando o nariz com a palma da mão, olhando veladamente para o relógio de pulso. Apontei-lhe minha percepção a respeito do seu interesse pelo tempo e, em resposta, ele disse que acabara de se lembrar de algo urgente que precisava fazer.

Eu disse que percebia que ele se punha a correr para se livrar do peso que começava a sentir pela nossa conversa e que eu havia compreendido por que o sonho, para ele, era tanto sonho quanto realidade, pois estava acontecendo naquele momento. Ele então emite uma expressão de surpresa: “Ah! Que coisa é essa! Bingo!” Fui notando que ele, aos poucos, assim como uma flor que nasceu em terreno árido, murchava vagarosamente. Calado e ao mesmo tempo tentando encontrar um modo de localizar meu rosto com os olhos, virou-se completamente de lado e, erguendo a cabeça, disse-me: “Nada...”

Depois de tolerar por um lapso uma sensação de desconforto por estar me tornando inexistente para ele, e também pelo embaraço de ter seu olhar diretamente em meu rosto, decidi tentar caminhar mais um pouco, pois estávamos de algum modo vislumbrando as olheiras. Encontrava-me num estado de privação, dado que para mim era algo que estava faltando, e imaginei que ele as estivesse procurando em minha face. Perguntei se sabia quando uma pessoa adquiria olheiras, se isso não fosse peculiar da sua raça. Contou que sua namorada havia pedido que ele lhe comprasse carpaccio congelado para colocar nas pálpebras, a fim de diminuir suas olheiras, pois tivera dificuldade de dormir um sono só na noite anterior; dormia um pouco, acordava um pouco, e isso resultou em olheiras.

Calou-se e, depois de um breve momento, ainda deitado de lado com a cabeça erguida a olhar para meu rosto, bocejou grunhindo e disse: “Que foi? Estou com muito sono e cansado e não quero falar mais, não consigo”.

Tentando conter um bocejo que teimava em aparecer, disse-lhe: “Noto que é assim que você se encontra agora, dorme um pouco, acorda um pouco. Isso é que são olheiras!”

Ri desconcertado, sugerindo que fora pego numa travessura, e rapidamente volta à posição original no divã, dizendo: “Não sei por que é que eu fico assim”. Recuperada na minha vivacidade, disse-lhe que também não sabia ao certo, mas supunha que esses sonhos eram o modo que ele havia encontrado de começarmos a observar essa situação que ele não percebia nem entendia muito bem. Eu “argumentei” que podíamos observar ao vivo e em cores as duas maneiras pelas quais ele podia sustentar sua existência ali comigo: correndo para se livrar do peso ou permanecendo meio dormindo, meio acordado, isto é, com olheiras.

Ele disse, então, com a voz um tanto quanto anêmica: “É isso mesmo! Mas parece que não tem o que fazer com isso agora, não é? Amanhã eu volto, está bem? Você vai estar aqui, não é?”. juntar

Eu disse: “Da minha parte está combinado. No que depender do meu desejo, estarei”.

Sempre mantive em suspenso os sentimentos e as sensações que me acometeram por ocasião da ausência do analisando e que só puderam alcançar significação em sua presença efetiva. Não considerei que as sensações fossem entulhos impeditivos do pensamento; ao contrário, tornaram-se possibilidades incipientes de significados.

Algumas vezes o exercício da função analítica exige o acesso ao sagrado direito à mendicância, à colheita de preciosos elementos sensoriais que possam se dar como migalhas de pão a direcionar um caminho, mas valiosos para a construção e reconstrução de novos significados. Embora a distinção do que é apenas uma evacuação alucinada daquilo que é comunicação primária proponha um profundo impacto na técnica psicanalítica, acho que devemos tentá-la.

A experiência emocional pode direcionar o analista a intuir, enquanto está trabalhando, a apresentação de intensa dor mental em razão da notação da presença de outra mente, bem como a ameaça que ela pode representar para a integração psíquica, enquanto na maior parte do tempo o analisando pretende diminuí-la e até evadir-se dela, tornando estática a experiência de investigação analítica, que é a dinâmica entre estados mentais. Recorrendo à linguagem poética de Kazantzákis, ele caminha do criado ao incriado, fazendo de uma reificação da experiência emocional uma experiência sensorial.

O trabalho analítico tende a caminhar no sentido de aumentar a capacidade do analisando para sofrer dor, de auxiliá-lo a ser capaz de transitar significativamente entre suas experiências sensoriais e emocionais, em geral tão dolorosas, para que possa sustentar por alguns momentos seu precário senso de existir como uma mente separada, diferente e, ao mesmo tempo, ligada à outra mente. Por outro lado, creio que essas experiências são sofridas, na medida em que lhes são dadas algumas significações, situação às vezes difícil de tolerar porque amplia a consciência do senso de existir, que por si só já é muito improvável, nos vínculos e na vida. Ainda usando a linguagem poética: do incriado ao criado, isto é, considerar a sensorialidade para que ela alcance significados e se integre ao senso de existência.

Na experiência clínica descrita, é possível observar como a dor mental pode ser evitada pelo analisando, e algumas vezes também pelo analista, nos momentos em que este último não pode tolerar o trânsito entre os estados sensoriais e emocionais que freqüentemente provocam desacordo entre as idéias do analista e as do analisando, porque impõem a eles intenso sofrimento, sobretudo em função da evidência da presença de duas mentes separadas e desconhecidas entre si.

Há situações em que analista e analisando podem estar de acordo em relação à repulsa que estão sentindo um pelo outro por serem tão diferentes. Se o analista puder notar com sua mente2 uma sensação ativa que para ele corresponda à emoção de repulsa por exemplo, o torpor em determinadas situações , terá chance de formular para o companheiro, a seu modo, é evidente, algo do tipo: “Neste momento não posso estar presente emocionalmente com você, e nós dois podemos estar de acordo a esse respeito”.

A área do acordo tanto pode estar relacionada à repulsa como à aderência, e, ao ser denunciada a diferença através da área de desacordo, confronta-se com um tipo de dor que pode muito bem ser evitado com uma sumária transformação: “Estamos de acordo, nós não nos suportamos agora. Então vamos embora antes que possamos perceber o insuportável fato de que você é diferente de mim e não quem eu gostaria que você fosse: a pessoa com quem tenho estado até o momento”.

No domínio das impressões sensoriais, há uma sobreposição entre os pontos de vista do analista e os do analisando, de tal forma que se torna eficaz, embora desagradável para o analista, fazer uso da condição de colher entre as sensações elementos sensoriais que o ajudem a sustentar significados que estão a caminho para aprender da experiência com o analisando e se sentir existindo em sua função.

A evidência das impressões sensoriais pode ser experimentada pela visão, olfato, audição e tato, embora também tenha uma existência oral, ainda que restrita à forma de ruídos, dado que não são expressas em linguagem verbal articulada, a menos que os sentidos alcancem uma suposição significante dentro de um vínculo de intimidade. Só assim poderão transitar e ser geradas e compreendidas numa conversa. Estou considerando conversar como um ato que ocorre em um vínculo entre mentes separadas e ao mesmo tempo ligadas.

Nem sempre uma experiência que alcançou significado em determinado momento, tornando-se emocional, mantém esse status na experiência seguinte. Dependendo da dor mental à qual uma nova experiência nos apresenta, ela se torna base sensorial para esta, a exemplo de um clichê, servindo apenas de assoalho que sustenta a situação posterior com o mesmo sentido que já havia adquirido anteriormente. Em vez de se tornar pré-concepção para uma nova significação, transforma-se numa base sensorial, sensação somente apreensível no âmbito estético, que se oferece como prontamente sabida, conferindo significações repetitivas e vazias à experiência apenas o componente oral da sensorialidade.

Numa ocasião, uma analisanda me disse, em resposta ao que eu estava lhe apontando: “Eu sabia que você iria me dizer isso!” Antes de perceber sua agonia e desejo de não notar minha presença naquele momento, experimentei a sensação de estar sendo importuna e repetitiva. Isso tem certa semelhança com uma conversa por conter elementos verbais aparentemente desenvolvidos e sofisticados, os quais, entretanto, não se prestam mais a portar significações, pois são apenas ruídos que compõe a dimensão sensorial, os clichês, como citei acima. Nesses casos, o analista é convidado a incrementar a produção de ruídos envolvendo a dupla numa profusão de barulhos que preenchem a falta de uma conversa, de mentes separadas. Em reação à analisanda, eu lhe disse: “Eu não sabia! Se soubesse que você já sabia, eu poderia ter dito outra coisa”. Poderia dizer que você não queria ouvir o que eu estava para lhe falar. Ela responde, divertindo-se: “Tá bom! Dessa vez passa! Mas da próxima deixa de ser chata! Vê se fala só o que eu quero ouvir!”

Um problema com que inevitavelmente nos deparamos no trabalho analítico é que a diferença e a separação entre as mentes, a área de desacordo estabelecida através de um possível alcance de significados, em alguns momentos não são percebidas. Outras vezes, quando percebidas, são evitadas e negadas a qualquer custo, através de um movimento mental que Bion denomina reversão de perspectiva,3 na tentativa de manter tal conflito fora de discussão. Quando isso se passa com o analista, é algo que ele próprio tem de resolver. Mas, quando acontece com o analisando, em que então podemos nos agarrar para percebê-la e como transmiti-las de forma que possam ser notadas e aceitas para investigação?

Suponho que a sensorialidade, em trânsito permanente, embora apenas com voz aparentemente articulada, possa nos sustentar precariamente nessas ocasiões. Isso se passa no modelo da observação de uma obra de arte, na construção de um espaço intermediário, que citei anteriormente entre, por exemplo, a tela e o espectador , e dentro do qual estão presentes suprimentos de significações em diferentes linguagens para as faltas4 que estão sendo experimentadas, em especial aquelas que dizem respeito à linguagem dos sentidos.

Esse tipo de comunicação tem vida própria e se movimenta entrando (como conteúdo) e saindo pelos ouvidos, narinas, olhos e mãos, mas não aprendeu a conversar, embora possa ser recebida (pelo continente) pelos mesmos meios através dos quais foi oferecida. E já que, por si só, a presença física de uma pessoa que pode ser vista, ouvida, farejada e tocada domina a mente estimulada pela sensorialidade, só pode ser comunicativa em um vínculo afetivo (continenteconteúdo) de onde possa advir a construção dos sentidos, os significados.

Caso contrário se tornam bem-estar, mal-estar, repulsa, excitação, temor indefinido, ou então algum outro elemento que possa compor um impulso moral extremamente primitivo. Creio ser essa a base da natureza primitiva do sistema moral, que, quando não transformadas em suposições significativas pelo trabalho analítico, permanecerão como elementos sensoriais com tonalidades sutis de repulsa, excitação e até mesmo de crueldade. Elas irão estabelecer o alicerce para aquilo que em psicanálise concebemos como superego arcaico.

Algumas palavras de nosso vocabulário habitual contêm essas nuances de moralidade arcaica e podem ser empregadas em idéias e interpretações psicanalíticas que, em vez de servirem ao analista como notação e atenção para a emergência de um novo material, geram culpabilidade, modelos de funcionamento mental idealizado, isto é, sobrecarga de dor mental. Quando a emoção óbvia para o analista é apontada ao analisando, a dor, que já se encontra presente, é apenas ampliada, prestando-se mais ao compartilhamento sensorial de excitações, por exemplo, do que à possibilidade de obter significados que representem os sentidos e de simbolicidade na interação entre mentes. Bion recomenda não nos prendermos à emoção evidente durante a experiência analítica, mas tomá-la como precursora de outra que está por vir. No presente, basicamente estamos lidando com pré-emoções, mensageiras de outras (Bion, 1963/2004).

É comum, em nossa tarefa cotidiana, observarmos essas transformações em moralidade primitiva: Sinto medo agora-Sou medroso.

Na experiência com meu próprio senso de existência, nutro certo apreço pela compreensão da sensorialidade, considerada pelo senso comum como a linguagem da mente primitiva, a que resolvemos abandonar para sobrevivermos mentalmente, dada a enorme dificuldade de considerá-la como parte fundante de nossa existência. Ela nos convida a recorrer a tarefas às quais nossos componentes mentais não estão adaptados. Isso implica dar forma a estados emocionais selvagens que nos parecem desumanos, além de ter de sustentar um poderoso sentimento de insegurança e isolamento, para o qual a mente não está prontamente aparelhada. Descobri uma ponta de esperança em me reconciliar com essa situação tão genuinamente penosa, ao me encontrar com a idéia do historiador David Gordon White de que “não conseguimos compreender o que significa ser humano sem ter alguma experiência do inumano” (Manguel, 2000/2003).

O espaço onde esse tipo de comunicação se faz está entre o dito e o não dito, no “inter”, entre as mentes, e entre, por exemplo, a percepção da precariedade emocional e a moralidade arcaica. As palavras que expressam bem essa condição estão contidas numa formulação construída pelo mestre das artes visuais Auguste Rodin: “Geralmente se acredita que o desenho pode ser belo em si mesmo. Mas apenas através da verdade das sensações é que ele se expressa”.

Em uma das discussões clínicas em Nova York, discorrendo acerca da “identificação projetiva”, Bion propôs que nada acontece de fato quando uma criancinha, ainda num estágio primitivo de existência, tem a fantasia onipotente de cindir o que se passa com ela em termos de sua mente primordial e que lhe é indesejável, projetando-a em outra mente. Nada acontece de fato, mas a criança sente como se pudesse fazer isso e então sente que isso também pode acontecer com ela, pois o conteúdo que ela projetou pode ser dirigido de volta a si mesma (Bion, 1978/1992).

Baseando-me nessa idéia, imagino que esse sentir é como entendo a área da sensorialidade. Ela não tem fronteira. É o infinito, o indiferenciado, nem corpo nem mente, somente uma vigília obscura a ponto de ascender até a cegueira, esta sempre a caminho da luz, do significado simbólico (Bion, 1979/1992).

Dentro do campo mental no qual se passam as experiências com este analisando, nosso contato é, na maioria das vezes, bastante agradável e até excitante, parecendo cheio de vida, exceto nas freqüentes ocasiões em que ele não vem às sessões, momento em que testemunho, através das minhas próprias sensações, que ele se encontra mais presente em minha mente do que quando comparece.

É bastante interessante perceber que, para a apreensão da experiência com ele, minha atenção se volta para a falta de discordância entre nós e para a tendência de compartilharmos um estado de bem-estar sensorial excitante com o qual necessito lutar, pois é aprisionante. Nos momentos em que elogia o divã que tenho no consultório, prepara uma área de concordância estática entre nós muito sedutora, pois, em razão de um aguçado senso de estética, eu o escolhi por achá-lo tanto bonito quanto confortável. Algumas vezes, pensei que ele sugeriu detectar em mim uma área mental associada à capacidade de fruição estética e por propor uma espécie de concordância na qual pensar pode comprometer a fruição do prazer estético. Esse prazer eu o capto sensorialmente, através do estado mental que se encontra entre o mergulho na excitação e a luta para não me afogar nela.

O contrário disso também acontece, quando ele se aprofunda nas sensações de mal-estar e me convida à paralisia, tanto para não notar minha presença como para prover uma área de concordância que transforma aquilo que seria diferença ou evidência da presença de duas mentes numa imersão no compartilhamento de sensações comuns dentro das quais somos um só. Essa é uma área a partir da qual nos fundimos como iguais ou nos separamos, sendo essa última situação o momento em que posso alcançar algum significado para a experiência. Em suas crises de alergia repentinas, experimento a sensação de que ele está muito doente, prestes a desfalecer. Desejo que vá para casa descansar, pois tenho a sensação de que não saberei o que fazer nessa situação.

Uma vez cheguei a ter dificuldade para conter o ímpeto de chamar seus pais, e então observei que é sempre possível a construção de um espaço mental de concordância ou de diferença tanto uma quanto outra, drásticas através da área da sensorialidade. Este analisando procura uma área de sensações comuns comigo, pela qual seja provável começar um diálogo ou mesmo impedi-lo. Quando as sensações se estabelecem como o vértice principal da experiência, passa a ser o condutor dela, apresentando-me o aparentemente novo e o excitante, que tomam o lugar do pensamento a respeito do que estamos vivendo, tornando-o assim dispensável.

Quando é difícil estar comigo emocionalmente, se isso causa dor, ele se põe a me tentar sensorialmente, excitando-me com as boas coisas da vida: “A senhora conhece os bons restaurantes da cidade? Ontem fui jantar no restaurante x e comi trutas ao molho de castanha e maracujá. O chef cozinha divinamente e me trata muito bem! Capricha ainda mais quando sabe que eu estou lá. Degustei uma garrafa de um encorpado cabernet sauvignon chileno que estava simplesmente maravilhoso, com um leve toque de madeira e mel.”

Penso que a sensorialidade ou a corporeidade seja uma área de relação de intimidade que se estabelece antes mesmo de ser possível obter o sentido que algo tem para si próprio e, a partir daí, alcançar suas significações dentro do vínculo. Nesses momentos e antes de ser capaz de pensar, fico com vontade de experimentar tais delícias e percebo, pelo que ele me diz, que para ter essa experiência tão boa só mesmo estando com ele, já que o chef não me conhece. Além de eu não me considerar tão excitante, ao contrário, ofereço-lhe o amargor e o salgado,algumasvezes excessivo, a ponto de impedir sua fruição estética, e que o apresenta à dor que constitui o processo de sentir, perceber e pensar.

Sinto-me uma desmancha-prazer, pois uma área de discordância se delineia entre nós, já que não vou jantar com ele. Arriscando-me a sentir dor, digo: “Belo convite! Obrigada, mas acho melhor continuarmos a preparar aqui mesmo nossa comidinha”. Prontamente ele responde a isso: “Claro que não! Vamos lá! Vinho e comida boa! Vai dizer que a senhora não gosta?” No calor do momento e tentando cozinhar em banho maria, digo: “Gosto, mas agora, nove e meia da manhã, para mim não é o momento, porque já tomei café-da-manhã. Agora quero mesmo é estar aqui conversando com você, estarmos preparando, nós dois, a nossa refeição mequetrefe, do seu ponto de vista”.

Aparentemente vencido pelo cansaço, mas nem tanto, ele diz: “Por isso eu gosto da senhora! É inteligente e não tem medo de mim! Não é como minha namorada, que, quando eu aperto, chora!” Percebo mais uma tentativa! O jeito foi formular para ele a idéia de que, a todo custo, quer ficar juntinho de mim, num estado de bem-estar prolongado, ao que ele responde: “Claro! E isso não é bom?” Tenho a sensação de estar novamente mergulhada no caldo de uma sopa, indiferenciada dele e ao mesmo tempo desejando sair desse caldo.

Não podemos nos esquecer do fato inelutável de sermos animais gregários que buscam estabelecer relações a partir de um tipo de ajuntamento, tanto através da sensorialidade como de pressão para a mente de rebanho, aquela que visa substituir a experiência que acontece entre mentes separadas num vínculo de intimidade. Nesse contexto, pertencer ao rebanho é possuir, em determinado momento, a sensorialidade como único vértice possível da constituição da existência. O pensamento e a mente separada são aquisições que implicam suportar dores mentais inomináveis e conseqüentemente insuportáveis.

Para mim, o inominável terror sem nome que Bion propôs, pelo menos em um de seus vértices, tem a ver com um sistema mental que pode nos separar e diferenciar do rebanho, implicando a dificuldade de tolerar nossas sensações e sofrer solidão e isolamento. Na relação analítica, somos convidados continuamente a corresponder aos ditames da mente gregária e do pensamento de rebanho e a nos separarmos; se assemelha a enfrentar ameaça de colapso e agonia de ser diferente e não pertencer, assim como é o sentimento de orfandade.

Uma vez ele quis me presentear com uma tela, obra de arte abstrata e bem colorida que eu deveria colocar em frente ao divã para dar vida ao meu consultório, que, segundo julgava, “não tinha vida”, pois não havia nenhum quadro. Fiquei impressionada com sua insistência para que eu  aceitasse o presente e o colocasse no lugar escolhido por ele. Disse-lhe que poderia aceitar a tela, caso ele quisesse me dar, mas não a colocaria no consultório e sim num outro lugar. A tentativa de intimidade paradoxalmente também mostrava outra face: tentativa de intimidação que recaiu sobre a sua idéia de que eu mandava no consultório e ele não tinha absolutamente nenhuma voz ali. Ele disse: “Eu não mando nada aqui! É sua praia, a senhora aqui é a dona da cocada preta!” Dei a ele a idéia que me ocorreu, de que tinha muito medo de não ter existência para mim. Profundamente tocado, chorou.

Arranjos estéticos, tais como obras de arte, vinho e comida, tanto compõem a área de existência e prazer de estar vivo como também podem compor a da inexistência, quando o prazer estético se opõe à simbolicidade e, almejando substituí-la, arrasta seu significado para longe, restando apenas a sensorialidade bruta, excitação ou adormecimento. Hanna Segal formulou essa condição quando entreviu o homem que não podia tocar violino em público porque o movimentar rítmico de seus braços tinha para ele apenas o sentido de masturbação. O significado fora perdido, não estando mais a serviço da simbolização originada pelos movimentos para produzir tonalidades de uma melodia imortal, a música (Segal, 1981/1983). Não podia se exercitar e, a partir da excitação promovida pelo exercício, gerar os movimentos necessários à expressão do ato criativo, meio através do qual tanto poderia se constituir como ser humano, quanto distinguir-se do rebanho.

A própria música clássica, composição de tonalidades de sons que só podem se arranjar por certos movimentos corpóreos e que, por si sós, são capazes de se confundir com estimulações excitantes e ritmos masturbatórios, representam o que quero expressar. Por um lado, a habilidade para alcançar uma melodia imortal e a ascensão do espírito humano ao que há de mais sublime em busca da humanização. Por outro, um ritmo masturbatório extenuante de um prazer sem sentido em busca da excitação física. Entre uma coisa e outra se encontra a música.

Não quero minimizar o alcance da humanização a que podemos chegar durante nossa existência, mas não pretendo perder de vista o animal sensorializado e de rebanho que somos. A mente separada, como Bion já pontuou, é um fardo para o nosso precário senso de existir. Como seres humanos e animais gregários que somos, transitamos no vínculo entre o sublime e o precário, a ternura e a crueldade, o amor e a excitação prazerosa, sempre a caminho de nos tornar aquele que ainda não conhecemos. E também perceber-nos sós no convívio com nossos semelhantes.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Thaís Helena Thomé Marques
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto - SBPRP
Rua Dr. Granadino de Baptista, 412 - Senador Salgado Filho
17.502-180 Marília sp Brasil
Tel.: +55 14 3454-1637<
E-mail: thmarq@terra.com.br

Recebido em 9.9.2007
Aceito em 10.10.2007

 

 

1 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto SBPRP.
2 Em Elementos de psicanálise, Bion formulou que, para que os sentidos estejam ativos, necessita-se apenas de uma mente: a paixão é a evidência de que duas mentes estão unidas e que não pode de nenhuma maneira haver menos de duas mentes se a paixão está presente.
3 Durante a experiência analítica e ao entrar em contato com a dor de perceber a separação e diferença entre as mentes envolvidas, o analisando pode reverter imediatamente uma suposição significante do analista no momento em que a recebe, borrando o espaço potencial que está sendo construído para observação daquelas novas idéias prenhes de significados que lhe estão sendo apresentadas e construindo com rapidez um outro que esteja mais de acordo com suas idéias já conhecidas, evitando, desse modo, sofrer (Bion, 1963/2004).
4 Entendo que Bion se refere a isso como um estado de privação do analista que acontece principalmente pelo fato de ele estar lidando com uma idéia insaturada, sobre a qual não tem nenhum conhecimento e que ainda não pode ser compartilhada, dispondo-se a examiná-la distanciado de suas próprias necessidades e das referências básicas das quais depende sua existência (Bion, 1963/2004).

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