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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.42 n.3 São Paulo set. 2008

 

RESENHAS

 

 

Resenha: Gildo Katz*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre

 

 

Identidade

Entrevista a Benedetto Vecchi

Zygmunt Bauman

Tradução: Carlos Alberto Medeiros Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, 112 p.

Identidade é o resultado de uma entrevista que Zygmunt Bauman concedeu ao jornalista italiano Benedetto Vecchi, na qual procura mostrar como a questão da identidade se tornou um conceito-chave para o entendimento da vida social na era da “modernidade líquida” termo que ele cunhou para falar do esgarçamento das relações na atualidade. Segundo Bauman, à medida que nos deparamos com as incertezas e as inseguranças da “modernidade líquida”, nossas identidades sociais, culturais, profissionais, religiosas e sexuais sofrem um processo de transformação contínua, uma vez que os sentimentos de pertencimento ou de identidade não são definitivos nem são tão sólidos assim, mas negociáveis e revogáveis; tudo depende das decisões que o indivíduo toma, do caminho que percorre e da maneira como age.

As entrevistas fugiram do padrão porque entrevistado e entrevistador nunca estiveram face a face. O e-mail foi o instrumento escolhido para esse diálogo, o que impôs um ritmo um tanto fragmentário à troca de perguntas e respostas. Segundo o jornalista:

Na ausência da pressão do tempo e do face a face, nosso diálogo a longa distância foi caracterizado por muitas pausas para reflexão, pedidos de esclarecimento e pequenos desvios para assuntos que originalmente não pretendíamos abordar. Cada resposta de Bauman servia apenas para aumentar a minha perplexidade. À medida que o material por ele fornecido começou a tomar forma, fui ficando cada vez mais consciente de ter adentrado um continente muito mais amplo que o esperado, um continente cujos mapas eram quase inúteis, em se tratando de encontrar direções (p. 7).

Isso não deveria ser surpresa, pois Bauman não é como outros sociólogos ou “cientistas sociais”. Suas reflexões são um trabalho em desenvolvimento, e ele nunca se contenta em definir ou “conceitualizar” um acontecimento, em vez disso, procura estabelecer conexões com fenômenos sociais ou manifestações do etos público que parecem muito distantes do objeto inicial da investigação e tecer comentários sobre eles. Daí a natureza errante dos pensamentos que aparecem em seus textos. Seu intelecto é, de fato, ao mesmo tempo rebelde e rigoroso. É fiel ao presente, mas cuidadoso em reconhecer a sua genealogia, ou melhor, genealogias. Nesse sentido, torna-se impossível definir suas influências intelectuais ou seu alinhamento a determinada escola de pensamento.

Zygmunt Bauman nasceu em 1925, em uma família judia polonesa. Tendo escapado para a União Soviética no início da Segunda Guerra Mundial, alistou-se no Exército polonês, aliado ao Exército Vermelho, e com ele enfrentou o nazismo. Começou seus estudos em sociologia ao retornar a Varsóvia. Seus primeiros professores lhe proporcionaram a capacidade de “olhar o mundo de frente”, sem recorrer a ideologias preconcebidas. Em 1956, participou do influente movimento reformista que desafiou a liderança do Partido dos Trabalhadores Unidos e a subjugação de seu país às ordens de Moscou. Essa experiência o marcou e o preparou para o confronto com a ideologia oficial do marxismo soviético, no que os trabalhos de Antonio Gramsci desempenhariam seu papel. O ano de 1968 se revelaria um momento decisivo em sua vida. Bauman, que apoiava o incipiente movimento dos estudantes poloneses, teve seus trabalhos proibidos pelo Partido Comunista, quando o anti-semitismo foi usado para reprimir estudantes e professores universitários que exigiam o fim do sistema unipartidário em nome de “liberdade, justiça e igualdade”.

Impedido de lecionar, emigrou da Polônia, reconstruindo sua carreira no Canadá, nos Esta­dos Unidos e na Austrália, até chegar à Grã-Bretanha, onde, em 1971, tornou-se professor titular da Universidade de Leeds. Atualmente também é professor emérito de sociologia dessa instituição e da Universidade de Varsóvia.

Bauman é uma das figuras intelectuais mais importantes na atualidade, principalmente por suas reflexões sobre a modernidade e a fluidez nos relacionamentos e nas estruturas sociais. A partir de 1993, começou a se concentrar na globalização, analisando-a do ponto de vista não apenas econômico, mas também, e fundamentalmente, em seus efeitos sobre a vida cotidiana. Fez disso o ponto de partida para a sua exploração do “novo mundo” criado pela crescente interdependência em nosso planeta, a qual afetou as estruturas estatais, as condições de trabalho, as relações entre os Estados, a subjetividade coletiva, a produção cultural e as relações humanas.

Identidade é um retrato da vida na contemporaneidade no qual o autor amplia o espaço de discussão do tema, inserindo-o em sua teoria da era líquido-moderna. Nele, aprofunda-se na questão central de seu pensamento: no mundo de hoje, qual é o espaço do eu e do outro? Qual é a medida da liberdade individual? E do respeito ao próximo, com todas as suas diferenças? É possível construir uma identidade sem levar a alteridade o outro em conta? A sobrevivência de um Estado-nação moderno pode afirmar-se na falência ou na negação de outros Estados? Nesse “novo arcabouço” é que categorias estabelecidas como “pertencimento”, “comunidade”, “reconhecimento” e “nacionalidade” são criticados e analiticamente reposicionados no cenário fluido do mundo atual.

A identidade é, por sua própria natureza, motivo de graves preocupações e agitadas controvérsias. Isso aparece logo no início do livro, quando, ao ser homenageado pela Universidade Charles de Praga, pedem que ele escolha o hino nacional que deverá ser tocado na cerimônia. Bauman decide escolher o hino europeu, uma vez que abraçava os dois pontos alternativos de sua identidade e anulava as diferenças: tirava da pauta uma identidade definida pela nacionalidade não podia ser polonês, pois esta cidadania fora-lhe cassada, ao mesmo tempo em que eliminava o fato de ter-se naturalizado inglês, fato que não o retirava da condição de estrangeiro, estranho. O hino europeu lhe dava o direito do sonho de pertencer, porque, por meio de seus versos, possibilitava-lhe alcançar o impossível: diferentes, mas os mesmos, separados, mas inseparáveis, independentes, mas unidos. A natureza paradoxal e ambivalente da identidade será o fio condutor de toda a entrevista.

Para Bauman, portanto, as inseguranças e incertezas advindas com a modernidade líquida são as principais responsáveis pelas transformações em nossas identidades. E quando o autor se refere a identidades no plural, é porque concebe que estas não são perenes, mas que assumem posturas diversificadas diante das situações sociais. Apresentam-se não apenas como identidades nacionais, mas também como identidades culturais, profissionais, sociais, religiosas e sexuais.

Para desenvolver essas questões, dotado de imaginação sociológica e de uma clareza notória, Bauman observa que não é possível recorrer aos autores clássicos indagando o que é ou o que constitui a “identidade”, isso porque eles próprios não elaboraram essas questões enquanto tais. Além disso, explica ele, “esse súbito fascínio pela identidade, e não ela mesma, é que atrairia a atenção dos clássicos da sociologia” (p. 23). Entretanto, se os clássicos não podem ajudar muito, o raciocínio do autor assume um tom de análise nitidamente simmeliano. Bauman tece seu argumento por meio de eventos quase anedóticos da vida cotidiana, dando carne e osso à dimensão psicossociológica e altamente patológica dos processos contemporâneos de identificação.

“É realmente um dilema e um desafio para a sociologia se você lembrar que, há algumas décadas apenas, a ‘identidade’ não estava nem perto do centro de nosso debate” (p. 22-23). Para entrar no problema teórico da identidade, o autor revê a trajetória da noção, partindo da concepção pré-moderna de “identidade nacional”, essa “ficção” que conseguiu incorporar, após um violento processo de investimento político e simbólico, a “naturalidade” ao “nascimento”.

A aparência de “naturalidade” era tudo, menos “natural”. A naturalidade, e assim também a credibilidade do pertencimento declarado, só podia ser um produto final de antigas batalhas postergadas. E a sua perpetuação não podia ser garantida, a não ser por meio de batalhas ainda por vir (p. 29).

Ali, a identidade não era senão a luta pela imposição da identidade se se quiser, a “identidade nacional” nasce com o silenciamento de outros discursos, locais e regionais.

O cenário líquido-moderno, porém, não apenas engloba a questão da “identidade nacional” como a ultrapassa. Segundo o autor, processos como os de precarização dos padrões de emprego e rotinas de trabalho e “terceirização internacionalizada”, junto ao retraimento das funções sociais do Estado, produzem níveis patológicos de insegurança e ansiedade, bem como uma desarticulação interna das demandas por políticas sociais. Esses níveis de insegurança, por sua vez, produziriam formas sociais neocomunitárias, cuja ideologia tem base racista e xenófoba. É possível reconstruir o argumento em dois momentos principais: vê-se, primeiramente, um núcleo mais ou menos rígido composto pela tríade trabalho-Estado-atores. Num segundo momento, aparecem os efeitos perversos (insegurança e comunitarismo) advindos de uma combinação específica entre as partes desse núcleo.

Quanto ao mundo do trabalho, inSPIrado pelas críticas de Richard Sennett à desregulamentação legal e cotidiana da dinâmica laboral, Bauman afirma que o local de trabalho “onde antes o status social costumava ser definido” (p. 36) atualmente, além de inSPIrar pouca confiança, não deixa espaço para a identificação e a solidariedade grupais devido a sua flexibilização. Nesse sentido, Bauman reproduz e reitera a seguinte idéia postulada por Sennett: “um local de trabalho flexível provavelmente não seria o lugar onde alguém desejaria construir um ninho”. Ao enfatizar as novas formas de violência tipicamente líquidas notadamente aquelas ligadas ao eufemismo necessário à violência contra a subjetividade, como por exemplo “recursos humanos” e “administração por objetivos” Bauman sustenta que os problemas atuais de auto-identificação ultrapassam, em muito, os exercícios tradicionais fortemente alienantes de violência laboral.

Em segundo lugar, o papel do Estado. Talvez seja o ponto em que o autor dá, de fato, sua maior contribuição à teoria social ao apontar para um novo grupo de atores sociais sem direito à identificação. Numa perSPIcaz operação intelectual que une Mary Douglas a Max Weber, o sociólogo polonês define a função política do Estado penal contemporâneo: “Trancafiar pedófilos, varrer das ruas os vagabundos, ociosos, mendigos e outros indesejáveis, e deter suspeitos de terrorismo antes que se transformem em terroristas de fato” (p. 52). Aqui, sua crítica dá ênfase aos processos de privatização do espaço público, de criminalização global e, especialmente, de produção de “lixo humano” um novo grupo de ‘pessoas rejeitadas’ não mais necessárias ao perfeito funcionamento do ciclo econômico” (p. 47).

A terceira e última parte do argumento é também a mais controversa. Bauman critica os denominados novos atores ou movimentos sociais, afirmando que “não existe um lar óbvio a ser compartilhado pelos descontentes sociais, pois os ressentimentos sociais estão órfãos. A guerra por justiça social foi, portanto, reduzida a um excesso de batalhas por reconhecimento” (p. 41-3). O argumento do autor consiste em dizer que as “novas bandeiras” “gênero, raça e heranças coloniais” (p. 42) com “âncoras sociais próprias” ao mesmo tempo em que se afundaram “numa proliferação de campos de batalha”, esqueceram-se da “miséria” vivida pelo “lixo humano”. No entanto, é válido questionar: como esse “refugo humano” é produzido? Bauman sugere que essas novas bandeiras estariam dificultando tanto lutar, quanto pensar uma “solução universal e abrangente” (p. 43).

Em certa medida, no que concerne à questão das “novas bandeiras”, o sociólogo polonês, ao falar da fragmentação das lutas sociais, a vê como sintoma de um declínio não restrito aos movimentos sociais, mas de caráter moral de “um mundo esvaziado de valores que fingem ser duradouro” (p. 59) e cuja esfera político-pública é continuamente despolitizada, porquanto particularizada: “O descontentamento social”, diz ele, “dissolveu-se num número indefinido de ressentimentos de grupos ou categorias, todas eram cegas, ou pelo menos desconfiadas ou francamente hostis, a reivindicações semelhantes de exclusividade declaradas e ouvidas por outros” (p. 42). Não obstante, na medida em que tais grupos têm suas identidades histórica e politicamente reconhecidas, a esfera pública se fragmenta, democratizando-se, por estar complexa e heterogênea, exigindo então outras perspectivas de análise.

Seguramente, esse processo não é simples. O próprio Bauman, apesar de em princípio problematizar a questão em termos redutores por meio da fórmula unidade versus diferença “como alcançar a unidade (apesar da?) diferença e como preservar a diferença na (apesar da?) unidade” (p. 48) é muito claro quanto ao que está em jogo nessas “batalhas por identidade”. Para o autor, elas são “misturas de demandas ‘liberais’ pela liberdade de autodefinição e auto-afirmação’ com ‘apelos ‘comunitários’ a uma ‘totalidade maior do que a soma das partes’, bem como à prioridade sobre os impulsos destrutivos de cada uma das partes” (p. 84).

A compreensão da tensão entre as múltiplas identidades, para ambas as partes, aponta necessariamente para a profunda ambivalência que ocupa o cerne das estratégias de reconhecimento: na medida mesma em que demandam reconhecimento identitário, ou seja, igualdade legal e legítima, tais estratégias reproduzem diferença. De acordo com Bauman, “As batalhas de identidade não podem realizar sua tarefa de identificação sem dividir tanto quanto, ou mais do que, unir. Suas intenções includentes se misturam com (ou melhor, são complementadas por) suas intenções de segregar” (p. 85). O cenário delineado pelo sociólogo polonês, portanto, é liquidante (fluido).

No que diz respeito à identificação propriamente individual, o caráter fluido das relações sociais e dos quadros de ação social constitui, segundo o autor, um dos eixos centrais da patologização psíquica contemporânea. Por meio de exemplos tão inusitados quanto o amor hiperbólico de Don Juan de Molière, a relação com animais de estimação na Londres de hoje ou as horas sem-fim ao celular, a análise enfatiza o abismo entre cultura subjetiva e cultura objetiva, destacando os efeitos do “consumismo” na subjetividade liquidada. Também os casamentos e nós”, diz ele, “tem uma opinião ambígua sobre essa novidade que é ‘viver livre de vínculos’ de relacionamentos ‘sem compromisso’. Não voltaríamos atrás, mas nos sentimos pouco à vontade onde estamos agora” (p. 69).

Talvez não esteja nessa temática o ponto mais forte de Bauman como sociólogo, pois ele próprio parece não ultrapassar seu sentimento de estranheza com relação à fluidez dos laços líquido-amorosos e suas altas taxas de separação ou divórcio. Nesse sentido, é sintomática a formulação pela qual sintetiza os conselhos de “insensíveis especialistas” (p. 73) em relacionamentos: “se você quer ‘se relacionar’, mantenha distância. Se deseja obter satisfação com o convívio, não estabeleça nem exija compromissos” (p. 74). Dessa forma, confirma a tendência de reduzir os relacionamentos amorosos ao modo “consumista”, porque é o único em que, na modernidade líquida, o indivíduo se sente seguro e à vontade, o que traduz uma mudança nas relações amorosas em relação à modernidade. Nesta, desejo de amar e ser amado só pode se realizar se for confirmado por uma genuína disposição a entrar no jogo para o que der e vier, a comprometer (a própria) liberdade, caso necessário, para que a liberdade da pessoa amada não seja violada.

Ao que tudo indica, Bauman vê essa fluidez amorosa como uma contradição relativa. Sustenta que perguntar para uma pessoa quem ela é só faz sentido quando se acredita que ela é algo diferente de você. Partindo desse princípio, podemos até instigar um pouco mais os nossos conceitos e valores pessoais acerca do nosso eu, e, se formos nos revelando, vamos acabar por descobrir nossas múltiplas facetas sociais num ambiente fluido em que vivemos.

Discorrendo sobre a influência da globalização na formação da identidade, Bauman acredita que ela é algo a ser inventado e não a ser descoberto. Ela é alvo de um objetivo construído a partir do zero, na medida em que é preciso compor a sua identidade da forma como se compõe um quebra-cabeça, porém um quebra-cabeça incompleto, no qual faltam muitas peças e que jamais saberemos quantas. Nesse processo de montagem, é necessário saber escolher as peças e colocá-las no local adequado, porém o trabalho não é direcionado ao fim tal qual os quebra-cabeças comprados nas lojas, mas aos meios, não se começa pela imagem final, mas por uma série de imagens já obtidas ou que pareçam valer a pena ter para montar tantas imagens.

Com esse posicionamento, podemos até visualizar o esforço que nos impomos em nos manter atualizados, operantes e necessários, para garantir a nossa identidade de trabalhador ou mesmo permanecer ativos, no mercado de trabalho num mundo globalizado. De acordo com Bauman, há tempos atrás, a identidade humana de uma pessoa era determinada pelo fundamental papel produtivo que essa desempenhava na divisão social do trabalho. Isso ocorria quando o Estado proporcionava garantia de solidez e durabilidade desse papel, e quando os sujeitos podiam exigir das autoridades que prestassem contas, quando as deixassem de cumprir. Essa cadeia fornecia um alicerce para um patriotismo constitucional. Porém, esse nacionalismo dá lugar aos interesses e às preocupações regionais, locais e particulares.

Dentro dessa linha de pensamento,Bauman nos fala sobre a família, o Estado e a Igreja, presentes e importantes na “constituição da identidade” das pessoas. Afirma também que hoje as relações, eletronicamente mediadas, tendem a ser frágeis e fáceis de serem abandonadas (diferentes dos três pilares citados, família, Estado e Igreja, que de certa forma se apresentam solidamente), estabelecem-se relações quando se está “surfando na rede”, mas dessa forma a capacidade de estabelecer interações espontâneas com pessoas reais se perde nesses relacionamentos virtuais.

Assim, não podemos esperar, nessa sociedade, que as estruturas durem por muito tempo; pela fluidez com que os fatos e as coisas se diluem, essas estruturas também muito cedo se deformam e são decompostas, independentes de serem estruturas de autoridade, de religião, de celebridades, de organizações políticas ou econômicas. Serão engolidas por outras ainda mais poderosas, serão substituídas ou simplesmente desaparecerão do cenário. Para essa sociedade, o que realmente importa é que o jogo continue e que só se mantenha no jogo quem permanecer com fichas suficientes para continuar jogando. Encontramo-nos, portanto, em nossa época líquido-moderna, um indivíduo livremente flutuante, desimpedido, que é tomado por um herói popular, pois estar fixo e ser identificado de modo inflexível e sem alternativa é algo muito malvisto.

Em 1994, um cartaz foi espalhado pelas ruas de Berlim. Ele dizia: “Seu Cristo é judeu. Seu carro é japonês. Sua pizza é italiana. Sua democracia, grega. Seu café, brasileiro. Seu feriado, turco. Seus algarismos, arábicos. Suas letras, latinas. Só o seu vizinho é estrangeiro” (p. 13).

E é nisso que os habitantes do líquido mundo moderno são diferentes. “Buscamos, construí­mos e mantemos as referências comunais de nossas identidades em movimento — lutando para nos juntarmos aos grupos igualmente móveis e velozes que procuramos, construímos e tentamos manter vivos por um momento, mas não por muito tempo” (p. 32).

Apesar disso, acredita que não se pode ser contra a globalização, da mesma forma que não se pode ser contra um eclipse do sol. O problema, e o próprio tema do movimento, não é como “desfazer” a unificação do planeta, mas como domar e controlar os processos, até agora selvagens, da globalização e como transformá-los de ameaças em oportunidade para a humanidade. O mesmo se pode dizer em relação às novas tecnologias. É difícil ser contra, pois é fato que elas estão aí para ficar. O que sim se pode é “transformá-las de ameaças em oportunidade para a humanidade”.

No seu todo, muito além de matizar distintos componentes e dimensões centrais na estruturação da identidade, o livro-entrevista oferece um lúcido e, sobretudo, crítico panorama da sociedade atual. É dentro da liquefação dos processos e laços sociais que Bauman entrelaça posições, trajetórias e estruturas sociais. Nesse emaranhado inseguro e imprevisível, a identidade não é construída com relação a fins (“Eu quero ser”) nem tampouco com relação a meios (“Eu posso ser”). “Selecionar os meios necessários para conseguir uma identidade alternativa de sua escolha não é mais o problema”, para Bauman, “o verdadeiro problema e atualmente a maior preocupação é a incerteza oposta: qual identidade escolher e por quanto tempo se apegar a ela?” (p. 91).

Na décima quinta e última pergunta, quando Vecchi o questiona sobre a política da identidade, Bauman comenta:

Se você deseja que eu ate os muitos fios que começamos a tecer, mas na maioria dos casos deixamos soltos, eu diria que a ambivalência que a maioria de nós experimenta a maior parte do tempo, ao tentarmos responder à questão da nossa identidade, é genuína. A confusão que isso causa em nossas mentes também é genuína. Não há receita infalível para resolver os problemas a que essa confusão nos conduz, e não há consertos rápidos nem formas livres de risco para lidar com tudo isso (p. 105).

Logo a seguir, complementa:

Também diria que, apesar de tudo, teremos de nos confrontar vezes sem conta com tarefa de au to-identificação, a qual tem pouca chance de ser concluída com sucesso e de modo satisfatório. É provável que fiquemos divididos entre o desejo de uma identidade de nosso gosto e escolha, e o temor de que, uma vez assumida a identidade, possamos descobrir que não existe uma ponte, se você tiver de bater em retirada (p. 105).

Na diversidade cultural, no mundo moderno e no absolutismo étnico uma característica regressiva da modernidade tardia residem o maior perigo de se formar identidades que tentam assegurar a sua identidade adotando versões fechadas da cultura e da comunidade, recusando o engajamento nos difíceis problemas que surgem quando se tenta viver na diferença. Bauman sugere que, na medida do possível, evitemos esse problema sem deixar de evitar o enfrentamento do desafio de viver nesse paradoxo que se aplica, a meu ver, na estrutura da comunidade analítica e na formação da identidade do psicanalista, pois “as identidades flutuam no ar, algumas de nossa própria escolha, mas outras infladas e lançadas pelas pessoas em nossa volta, e é preciso estar em alerta constante para defender as primeiras em relação às últimas” ( p. 19).

Essa é uma das razões pelas quais Bauman tem muito a dizer para uma gama de leitores muito maior do que normalmente se espera de um trabalho de sociologia mais convencional, o que condiz com suas próprias ambições de atingir um público composto de pessoas comuns “esforçando-se para ser humanas” num mundo mais e mais desumano. Como ele gosta de insistir, seu objetivo é mostrar a seus leitores que o mundo pode ser diferente e melhor do que é.

 

 

* Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre SBPdePA.

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