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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.42 n.4 São Paulo dez. 2008

 

EDITORIAL A CONVITE

 

O feminino

 

El feminino

 

The Feminine

 

 

Cândida Sé Holovko1

 

 

O termo “Feminino” com sua carga polissêmica em psicanálise nos remete a inúmeras possibilidades de abordagens. Ao utilizarmos esse conceito necessitamos, de início, definir o contexto e os modelos teórico-clínicos de referência nos quais é empregado: Quando dizemos “Feminino” ao que nos referimos? Ao desenvolvimento da “psicossexualidade da mulher” como proposto por Freud?; ao “elemento feminino puro” em homens e mulheres como momento originário do Ser? (Winnicott); aos processos identificatórios do “materno primário”, germe da descoberta da alteridade e ao “feminino primário” matriz da descoberta inicial da diferença entre os sexos? (Guignard, 1999); às “perversões femininas” (Welldon, 1988); a uma “posição feminina” presente nos dois sexos e alicerce da subjetividade?; ou será que estamos nos referindo ao estudo dos “papéis de gênero”, condicionados pelos determinantes socioculturais-ideológicos de época, que incidem em nossa compreensão do que é masculino e feminino e que tem forte impacto na construção das teorias e na prática psicanalíticas? Estaríamos incluindo as diferenças entre os conceitos de “feminino e feminilidade”?

Desde Freud sabemos que estamos diante de um conceito psicanalítico bastante complexo, de difícil delineamento e de significados pouco precisos. Freud foi o primeiro analista a oferecer às mulheres uma escuta sensível às suas angústias, descobrindo significados até então inimagináveis. Recebeu as contribuições das psicanalistas pioneiras que concordavam com suas ideias, principalmente a respeito das transferências maternas e da importância capital da relação pré-edípica com a mãe (entre elas Ruth Mack Brunswick). No entanto, ele, Freud, no que se refere à teorização do psiquismo feminino e da condição da mulher não pode escapar a seu momento histórico, impregnado pelas ideias patriarcais do seu contexto sociocultural-ideológico (entre outros textos “A sexualidade feminina”, 1931 e a “Feminilidade”, 1932). Sua teoria falocêntrica, com as ideias de uma masculinidade inicial da menina, da inveja do pênis, do complexo de castração, ainda desperta muita polêmica nos meios psicanalíticos. Alguns psicanalistas, apoiados na teoria freudiana, privilegiam a ideia do feminino como falta, carência, vazio, enquanto outros teóricos, desde os primeiros, como Ernest Jones, Melanie Klein, Karen Horney etc., procuram compreender as mulheres a partir de seus próprios padrões, não da falta, mas da presença de uma sexualidade com características próprias e não mais em referência à psicologia masculina. Como assinala Daniele Quinodoz (2003), os psicanalistas correm o risco de não perceberem a angústia que muitas mulheres têm de serem amputadas de seus órgãos genitais e reprodutivos femininos em função da teoria escolhida por eles para a compreensão do universo feminino. Dependendo dessa opção podem surgir dificuldades na escuta da ancoragem corporal dessa angústia e do seu uso nas interpretações. Florence Guignard (1999) também destaca que a figurabilidade dos órgãos de prazer sexual e de reprodução, anatomicamente ocultos à visão, são geralmente tratados como inexistentes dentro do modelo da teoria sexual infantil fálica, proposta por Freud. Essa teoria organiza o complexo de castração masculino, e penso que tem criado muitas vezes crenças equivocadas com graves repercussões na clínica da mulher.

Como Guignard, 1999, também acredito que a introjeção identificatória do materno e do feminino será particularmente requerida no plano do ego corporal em relação ao destino de mulher. Quero dar ênfase, neste ponto, às experiências corporais especificamente femininas, com o seu marcado ritmo biológico: menstruação, gestação, menopausa, abortos, sensualidades, que têm forte impacto na construção da feminilidade e que muito frequentemente são desconsideradas em muitas análises. Penso ainda que máxima importância também deve ser dirigida às experiências edípicas na relação fundamental com a figura paterna para os destinos da sexualidade feminina.

Gostaria de acrescentar que concordo com Glocer Fiorini (2008), quando propõe em psicanálise a necessidade de “desconstruir as articulações freudianas: mulher=mãe; sujeito=masculino; objeto=feminino; feminino=enigma=o outro”, a fim de que possa haver o reconhecimento de uma ordem sexual feminina com autonomia da maternidade e consequentemente aberta aos processos de subjetivação e da posição desejante próprios da mulher.

As enormes mudanças que ocorreram nos comportamentos e papéis das mulheres no último século, e o assombro dos homens e delas próprias em face dessas grandes transformações e dos novos papéis que a própria cultura pressiona nos dois sexos, intensificaram as investigações sobre esse tema do feminino no seio de várias disciplinas do conhecimento humano.

Nesse sentido, a Associação Psicanalítica Internacional – IPA, sintonizada com os novos tempos, criou em 1998 o Comitê Mulheres e Psicanálise (Committee on Women and Psychoanalysis – COWAP, IPA), com a finalidade de explorar o pensamento psicanalítico sobre as problemáticas femininas. Em 2001, já na gestão da então presidente do COWAP, dra. Mariam Alizade, psicanalista argentina que deu significativas contribuições e impulso a esse Comitê, esse objetivo foi ampliado e o COWAP passou a se dedicar ao estudo de questões ligadas à feminilidade, masculinidade e às patologias de gênero. Como afirma Giovanna Ambrósio, atual presidente Internacional do COWAP: “Estamos orgulhosas em retirar das sombras, para onde foram colocados pela literatura psicanalítica, muitos temas importantes como os do incesto, transsexualidade, perversão feminina…”

Parabenizo a Revista Brasileira de Psicanálise pelo incentivo ao estudo do tema e pela oportunidade concedida. Tenho certeza que a leitura desses excelentes textos publicados neste número irá estimular ainda mais as reflexões sobre este vasto “continente fértil” do universo feminino.

 

 

Referências

Brunswick, R. (1944). Análisis de un caso de paranoia. Rev. Psicoanal. ARG, 1 (4): 599-651, p. 650. (Trabalho original publicado em 1929)

Gocer Fiorini, L. (2008). Lo femenino, lo otro y los cuerpos sexuados. (p. 12). Trabalho apresentado no XXVII Congreso Latinoamericano de Psicoanálisis – FEPAL, “ Persona y Presencia del Analista”, em Santiago do Chile, de 25 a 27 de Setembro de 2008. (EJE: Género Y Sexualidad (“Genealogias del otro femenino”).

Guignard, F. (1999). Materno ou feminino? A “rocha da origem” como guardiã do tabu do incesto com a mãe. Revista de Psicanálise da SBPPA, Porto Alegre, VIII (2), p. 228, agosto de 2001.

Quinodoz, D. (2003). Ser uma mulher? O ponto de vista de uma psicanalista. Revista de Psicanálise da SBPPA, Porto Alegre, X (2), p. 215.

Welldon, E. (1988/1993). Madre, virgem, puta: idealización y denigración de la maternidad. Madri: Siglo Veintiuno de España Editores.

 

 

1 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo sbpsp. Representante do Comitê Mulheres e Psicanálise – COWAP-IPA, junto à SBPSP de 2005 a 2008.

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