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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.42 n.4 São Paulo dez. 2008

 

DIÁLOGO

 

O sonho de Lygia: comentário à entrevista

 

El sueño de Lygia: comentário a la entrevista

 

Lygia’s dream: comment to interview

 

 

Glaucia Pessoa1

Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora utiliza a literatura da escritora Lygia Fagundes Telles como metáfora para as transformações que ocorrem do pensamento às palavras, ressaltando a importância que a linguagem adquire para os psicanalistas e a psicanálise na obra de W. Bion.

Palavras-chave: Verdade; Rêverie (sonhar); Pensamento; Transformação; Linguagem de êxito.


RESUMEN

La autora utiliza la literatura de la escritora Lygia Fagundes Telles como metáfora para lãs transformaciones que ocurren del pensamiento a las palabras, destacando la importancia que el lenguaje adquiere para los psicoanalistas y el psicoanálisis en la obra de W. Bion.

Palabras clave: Verdad; Rêverie(soñar); Pensamiento; Transformación; Lenguaje de éxito.


ABSTRACT

The author treats Ligia Fagundes Telles’s literature as a metaphor for the transformations that take place from the thought to the words, emphasizing the importance that the language acquires for the psychoanalysts and psychoanalysis in Bion’s work.

Keywords: Truth; Reverie; Transformations; Success language.


 

 

Não quero a sabedoria da desilusão, mas quero a sabedoria da ilusão que é o sonho.
Emil Cioran

 

 

“Entre-vistas”: verdade ou loucura por Lygia Fagundes Telles

A escritora Lygia Fagundes Telles sonha. E se sonhar é “acordar-se para dentro”, como diz o poeta Mario Quintana, seus sonhos (histórias de vida e histórias literárias) se transformaram em literatura e a levaram, no ano de 1941, em plena II Guerra Mundial, à Faculdade de Direito, colidindo com um mundo em que o preconceito em relação à mulher era antigo e profundo. Época em que já escrevia e publicava os seus contos. “Confesso que esse começo foi difícil, era um desafio. Eu era escritora! N ão se usava mulher escritora! Escritor era coisa de homem e coisa de mulher era goiabada.” Sem demérito algum à mãe – que fazia goiabada da melhor qualidade no tacho –, observa Lygia. Assim, a parte inicial de sua vida deve ter lhe mostrado que, embora se pudesse fazer goiabada, seu desejo era ultrapassar os modelos pré-concebidos, que sempre procurou evitar e repetir para si mesma. A mãe, uma excelente pianista e compositora na adolescência, não seguiria o chamado da vocação, da verdade e da paixão. Isso seria uma extravagância e uma ousadia, diz Lygia, e em vez de abrir o álbum de Chopin a mãe abriria o caderno de receitas. Retrato de impressões delineadas por Lygia da mentalidade da época, indícios que expressam o preconceito predominante que inibia as escolhas e limitava a maior parte das mulheres a se circunscreverem, rainhas, no limite da casa e do lar. “De certo modo, a vida é muito difícil, não é? Faço parte daquelas mulheres consideradas loucas, que vão à frente levando as primeiras rajadas no peito.”

Tornar-se e ser quem se é provoca o risco de ser chamado de louco. “No discurso da linguagem dos pais e da cultura em que a determinação da personalidade do indivíduo se sujeita em ser”, como diz Lacan, “o desejo do desejo do outro”. Bion, em conferência em N ova Iorque, diz: “Sempre se pressupõe que estejamos aprendendo a nos comportar de um modo civilizado – desde o momento do nascimento. Em uma idade precoce, nós já aprendemos não só a não ser nós mesmos, mas quem devemos ser; nós temos um rótulo, diagnóstico, interpretação bem estabelecida de quem somos”. E em outra entrevista, ele comenta: “Uma criança tenta ser boa; tenta ser quem ela acha que seu pai e sua mãe querem que ela seja; gasta muito tempo tentando não ser ele ou ela mesma. Portanto, é difícil uma mudança para o desejo de expressar quem se é; é como mudar a direção de seu pensamento”.

Mas os artistas têm um modo de se expressar que transforma o outro em algo novo, seja na pintura, na escultura ou na literatura. “Talvez o próprio Shakespeare não pudesse entender uma de suas peças encenada hoje. Ou se Freud ressuscitasse, poderia não entender a psicanálise. Estas pessoas fazem algo com a mente humana que significa que ela jamais será novamente a mesma.”

Sabemos que para Bion a necessidade humana mais premente e que nos constitui é descobrirmos a verdade sobre nós mesmos. Mas a busca da verdade emocional é diferente da busca pela verdade racional. Ao suspender “memória e desejo”, a razão “pensa” independentemente de nexos causais, o que indica que os pensamentos não dependem de um conhecimento a priori do sujeito e daquilo que ele quer conhecer. A razão é uma faculdade para pensar a respeito de experiências emocionais e das suas representações simbólicas por meio dos pensamentos oníricos, estruturando a personalidade. Desse modo, Bion gosta de chamar a atenção para o pensamento sem pensador, pois o pensamento não é o produto das nossas representações mentais, mas a resposta às nossas relações com os objetos no processo do nosso desenvolvimento mental.

Na essência da experiência psicanalítica, a Verdade – em princípio incognoscível – do vir a ser e do tornar-se é infinita e inefável. Em outras palavras: a verdade não se transforma, mas somos nós que nos transformamos em sua direção num processo de “alfa-betaização” infindo. Bion, na sua Teoria do pensar, chamou esse processo de função alfa, em que os elementos das nossas impressões sensoriais não são transformados em conformidade com o mundo dos objetos da realidade externa. Mas, diante do desconhecido, somos nós que na ausência do objeto transformamos nossos conteúdos mentais em elementos capazes de serem transformados em conteúdos significativos para tornar o pensamento onírico possível.

Em Aprender com a experiência, Bion estende essas noções e recomenda ao analista estar num estado de rêverie (sonho) para receber e acolher as projeções das vivências primitivas e angústias do paciente. A capacidade de sonhar e simbolizar do analista permite ao paciente (re) introjetar essa função em si mesmo e transformar suas histórias e seus sonhos não elaborados em pensamentos.

Desse modo, embora a experiência da verdade emocional seja incognoscível, quando há um compartilhamento emocional e essa relação pode evoluir, o pensar se instala. E as interpretações na clínica que se vinculam a essa relação, quando comunicadas com êxito, podem ser sentidas pelo paciente com um sentimento de verdade. O que preliminarmente era não compreendido ou impensado transforma e expande a mente.

Esse compartilhamento da relação conduz ao aprender com a experiência emocional e leva à sabedoria, à restauração e à possibilidade de criação.

“Escrever é um ato de amor que envolve o leitor, que o compromete”, diz Lygia, com a sua personalidade e disposição, desafiando o desencontro entre a cultura e a natureza que poderia tê-la fixado em “mulher goiabada”. Lygia, na sua qualidade de escritora, ao sonhar e simbolizar a realidade de um tempo, acolheu o preconceito ao transformar a “mulher goiabada” em temas como a rejeição, a fuga, a solidão e a loucura, por meio de uma escrita sensível e exitosa.

No romance As meninas (1973), época de liberação sexual, repressão política e drogas, passamos da leitura ao comprometimento com o destino de três meninas retratadas por meio da interioridade de cada personagem, em que o fluxo convencional de tempo e espaço é abolido. Isso só faz realçar ainda mais os seus perfis, impregnando em nós os traços dos seus desejos mais íntimos e destinos. Podemos perceber esse uso exitoso da linguagem no monólogo de uma das personagens do romance, em conflito entre a sua virgindade e a liberação sexual da época, em que amor platônico e desejo são dirigidos para a impossibilidade de um encontro com um homem mais velho e casado:

Se Deus está no pormenor, o gozo mais agudo também está na miudeza, ouviu isto, M.N? Ana Clara contou que tinha um namorado que endoidava quando ela tirava os cílios postiços, a cena do biquíni não tinha a menor importância mas assim que começava a tirar os cílios, era a glória. Os olhos nus. Em verdade vos digo que chegará o dia em que a nudez dos olhos será mais excitante do que a do sexo. Pura convenção achar o sexo obsceno. E a boca? Inquietante a boca mordendo, mastigando, mordendo. Mordendo um pêssego, lembra? Se eu escrevesse, começaria uma história com esse nome, O homem do pêssego. Assisti de uma esquina enquanto tomava um copo de leite: um homem completamente banal com um pêssego na mão. Fiquei olhando o pêssego maduro que ele rodava a apalpava entre os dedos, fechando um pouco os olhos como se quisesse decorar-lhe o contorno. Tinha traços duros e a barba por fazer acentuava seus vincos como riscos de carvão, mas toda a dureza se diluía quando cheirava o pêssego. Fiquei fascinada. Alisou a penugem da casca com os lábios e com os lábios ainda foi percorrendo toda sua superfície como fizera com as pontas dos dedos. As narinas dilatadas, os olhos estrábicos. Eu queria que tudo acabasse de uma vez, mas ele parecia não ter nenhuma pressa: com raiva quase, esfregou o pêssego no queixo enquanto a ponta da língua, rodando-o nos dedos, procurou o bico. Achou? Eu estava encarapitada no balcão do café, mas via como num telescópio: achou o bico rosado e começou a acariciá-lo com a ponta da língua num movimento circular, intenso. Pude ver que a ponta da língua era do mesmo rosado do bico do pêssego, pude ver que passou a lambê-lo com uma expressão que já era sofrimento. Quando abriu o bocão e deu o bote que fez espirrar longe o sumo, quase engasguei no meu leite. Ainda me contraio inteira, quando lembro, oh Lorena Vaz Leme, não tem vergonha?
“Não”, diz em voz alta o Anjo Sedutor. Acendo depressa um tablete de incenso, oh mente pervertida. Queria ser santa. Pura como esse perfume de rosas que enrola em mim e me dá sono.

As narrativas de Lygia alcançam e comunicam uma experiência emocional que é compartilhada com a maioria das pessoas que vão ao encontro da sua obra, que permanece e transcende o próprio tempo.

O sonho de Lygia como metáfora para os métodos de comunicação entre os psicanalistas e com os nossos pacientes, que Bion designou como linguagem de êxito em analogia com o modelo do artista, é o desafio que nos aguarda.

 

Referências

Bion, W. R. (2004). Transformações: do aprendizado ao crescimento. 2ª ed. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1965)        [ Links ]

_____ (1973). Atenção e interpretação. Rio de Janeiro: Imago.        [ Links ]

_____ (1991). O aprender com a experiência. Rio de Janeiro: Imago.        [ Links ]

_____ (1992). Conversando com Bion (Bion em Nova Iorque e São Paulo). Rio de Janeiro: Imago.        [ Links ]

_____ (1994). Estudos psicanalíticos revisados (Second Thoughts). 3ª ed. Rio de Janeiro: Imago.        [ Links ]

Deiss de Farias, D. (1998). Sobre uma teoria do pensar – uma aproximação clínica-sobre um sonhar na sessão. Rio de Janeiro: SBPRJ.        [ Links ]

Telles, L. F. (1992). As meninas, São Paulo: Nova Cultural.        [ Links ]

Zimerman, D. E. (2004). Bion da teoria à prática. 2. ed. Porto Alegre: Artmed.        [ Links ]

Cadernos de Literatura Brasileira, n. 5, 1998 – Lygia Fagundes Telles (Rio de Janeiro, Instituto Moreira Salles).        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Glaucia Pessoa
(Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ)
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22411-003 Rio de Janeiro, RJ
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E-mail: gpessoa@openlink.com.br

Recebido em: 18.2.2009
Aceito em: 25.2.2009

 

 

1 Candidata da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro SBPRJ.

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