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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.42 n.4 São Paulo dez. 2008

 

ARTIGOS

 

As condições de surgimento da “Mãe Suficientemente Boa”1

 

Las Condiciones del Surgimiento de la “Madre Suficientemente Buena”

 

The conditions of the Appearance of the “Good Enough Mother”

 

 

Silvia Lobo2

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho faz uma tentativa de pensar a respeito das possibilidades de constituição na subjetividade das mulheres das condições para o surgimento da “mãe suficientemente boa”. Elege como referência a História, pensando-a como o passado em processo, e recolhe fragmentos do desenvolvimento das ideias sobre o corpo humano, sobre a concepção dos bebês e sobre o conceito de mãe dentro da psicanálise por meio de Freud, Melanie Klein e Winnicott.
Por este caminho, de forma sucinta e limitada, endossa as palavras de Castoriadis quando diz que a mãe, que cuida e acalenta, até pelo modo como acalenta e cuida, é a História mais três milhões de anos de hominização.
Por fim, propõe que a relação das mulheres com seu corpo, sua sexualidade e a vivência da maternidade estão intimamente ligados à experiência da relação com as mães, tanto as próprias, quanto aquelas que as antecederam na transmissão geracional.

Palavras-chave: História; “Mãe suficientemente boa”; Transmissão geracional; Feminilidade.


RESUMEN

Este trabajo trata de pensar sobre las posibilidades de constitución de la subjetividad en las mujeres, para el surgimiento de la “madre suficientemente buena”. Elige como referencia la Historia, pensándola como el pasado en proceso, y recoge fragmentos del desarrollo de las ideas sobre el cuerpo humano, sobre la concepción de los bebes y sobre el concepto de madre dentro del Psicoanálisis a través de Freud, Melanie Klein y Winnicott.
Por este camino, de forma sucinta y limitada, endosa las palabras de Castoriadis cuando dice que “la madre, que cuida y acoge, hasta por el modo como acoge y cuida, es la Historia más tres millones de años de hominización”.
Por fin, propone que la relación de las mujeres con su cuerpo, su sexualidad y la vivencia de la maternidad está íntimamente relacionada a la experiencia con sus madres, tanto las propias, cuanto aquellas que las antecedieron en la transmisión generacional.

Palabras clave: Historia; “Madre suficientemente buena”; Transmisión generacional; Feminilidad.


ABSTRACT

This paper attempts to consider the possibilities of constituting the conditions leading to the appearance of the “good enough mother” within the subjectivity of women. It chooses History as its reference, considering it as the past in process, and collects fragments of the development of ideas about the human body, about the conception of babies and aobut the concept of mother within Psychoanalysis through Freud, Melanie Klein and Winnicott.
Through this path, in a succinct and limited manner, it endorses the words of Castoriadis when it claims that “the mother, who cares and nurtures, even through the way she nurtures and cares, is the History of over three million years of hominization”.
Finally, it proposes that the relationship of women with their body, their sexuality and maternity is closely linked to the experience of the relationship with mothers, both their own as well as those who preceded them in the generational transmission.

Keywords: History; “Good enough mother”; Generational transmission; Femininity.


 

 

Há poucas dúvidas de que as atitudes gerais de nossa sociedade e a atmosfera filosófica da época em que vivemos contribuam para o ponto de vista aqui sustentado por nós e referido à época atual: poderíamos não tê-lo mantido em outro lugar e em outra época.
D. W. Winnicott , “A criatividade e suas origens”

 

Introdução

A reflexão que apresentamos traz a perspectiva de que a ideia de Winnicott da “mãe suficientemente boa” necessitou do século XX para se configurar. Elegemos como referência a História, pensando-a como o passado em processo e investigamos, de forma sucinta, a transformação na História da Cultura das concepções sobre o corpo humano, sobretudo o corpo feminino, que acompanham a representação da mulher. E sugerimos que, na vida, as raízes da “suficiente bondade” assentam sua base na intimidade da experiência com as mães, elos de uma corrente geracional de transmissão da feminilidade. Feminilidade entendida, aqui, como inseparável da inclusão do homem e do desejo de “fazer bebês”3 (Le Guen, 2001).

 

O corpo da mulher na história

Cada época elenca novos temas que, no fundo, falam mais de suas próprias inquietações e convicções do que de tempos memoráveis…
Marc Bloch, Apologia da história

A humanidade, ao longo dos séculos, adorou e temeu o que não conseguia explicar e as criaturas capazes de gerar vida, conhecedoras dos segredos da fertilidade, que plantavam e colhiam, e cuja própria vida era governada por ciclos sangrentos dos quais sobreviviam, só poderiam ser vistas como detentoras de poderes sobrenaturais. Mulheres que, como amantes, mães ou filhas, eram associadas ora às Deusas, ora a Satã.

No livro do Gênese encontramos que:

… o Senhor Deus chamou Adão e perguntou-lhe: “Comeste da árvore que te proibi de comer?” E então o homem retrucou: “A mulher que me deste por companheira me deu da árvore e eu comi”. E disse o Senhor Deus à mulher: “… Multiplicarei tuas dores e as tuas concepções; com dor terás os teus filhos, e o teu desejo será para o teu marido, que te dominará.” (Biblia Sagrada. O livro do Gênesis, cap. 3.)

Esta citação nos estimula a imaginar o longo caminho percorrido, através dos tempos, pelas representações sobre a mulher, que criada da costela de um homem foi amada como santa e inseminada por obra divina, que queimada como bruxa e perseguida como feiticeira, foi inspiradora como musa e desejada como objeto de luxúria, que idealizada como mãe abnegada tem sido necessária como companheira do homem.

Nessa trajetória, a geografia do corpo feminino foi alterada muitas vezes. Por mais de mil anos Galeno (Corbin, 2008), predominou a ideia do sexo único, pela qual os órgãos sexuais da mulher tinham estrutura igual a dos órgãos masculinos. Eles estavam situados no interior para ficarem protegidos e poderem assegurar o bom desenvolvimento da gestação. As condições fisiológicas eram determinantes do comportamento moral e do destino histórico das mulheres. Aristóteles (Corbin, 2008) pensava que “a mulher era apenas um vaso destinado a receber a semente do homem” (p. 185), enquanto Ésquilo (Lobo, 2005) propunha que “a mãe não é genitora daquilo que costuma chamar de seu filho; é apenas alimentadora da semente que cresce. O verdadeiro pai/genitor é aquele que monta” (p. 11). Mais tarde, Lutero (Lobo, 2005) complementaria “… e se uma mulher ficar esgotada e finalmente morrer de parto, não importa. Deixe-a morrer de parto, ela está aí para isso” (p. 11).

Os avanços na configuração da Anatomia e Fisiologia, que distingue homens e mulheres, representaram o fim da doutrina da homologia anatômica e um novo modelo do corpo humano e seu funcionamento engendra uma representação nova do feminino e um medo inédito da mulher. O orgasmo feminino deixa de ser considerado útil à geração e a concepção passa a ser entendida como um processo secreto, que não necessita de nenhuma manifestação de sinais exteriores. Neste momento, aos olhos dos especialistas, o gozo feminino parece ser ainda mais perigoso por não ser mais necessário. As manifestações epilépticas do orgasmo sugerem o risco de uma liberação de forças telúricas.

Ao final do século XIX, os inúmeros discursos sobre a sexualidade feminina ainda eram masculinos e passaram a alimentar uma identificação entre histeria, perversão e fingimento. O qualificativo de histérico revestia-se do significado de uma injúria e era associado a fantasias de devoramento e de submersão por uma Eva tentadora, conhecedora de táticas de estimulação do desejo masculino, capaz de desencadear o inusitado pelo fato de ela identificar-se com a natureza e ameaçar revelar, a qualquer momento, sua animalidade.

Assim, o século XX vai tornar visível o início de profundas transformações nos costumes e nas ideias. Anos de surgimento da psicanálise, de configuração de uma nova mulher e de descobertas científicas transformadoras em diversas áreas do conhecimento. O mundo humano entra em reboliço. A história, em seu movimento incontido, impõe novos confrontos por meio de questionamento mais maduro das antigas referências.

Neste processo, o corpo humano que já fora o território estável do sujeito quando submetido à concepção religiosa e aos saberes populares, exaltado em sua materialidade através do sagrado e do imaginário –, desloca-se para o território do social e aparece como resultado de uma construção. Surge um conjunto de regras, um trabalho cotidiano das aparências, de complexos rituais de interação entre o dentro e o fora, entre a carne e o mundo. Impõe-se a consciência da gestão social do corpo. O homem que se libertava da tutela da Igreja cai nas malhas do controle do Estado e de suas Instituições.

Instaura-se o sentimento de risco de submissão a um poder – ora divino, ora terreno –, nem sempre identificável e institui-se a tensão entre os contrários: o corpo para mim e o corpo para o outro, o corpo místico e o sexuado, o corpo laico e o sagrado, o corpo individual e o coletivo, o corpo interior e o exterior.

O surgimento da psicanálise torna mais refinada e mais complexa a porosidade dessas fronteiras. A partir dela, o corpo passa a ser também uma ficção, um conjunto de representações mentais, uma imagem inconsciente que se elabora, se dissolve, se reconstrói através da história do sujeito. História que, da perspectiva psicanalítica, inclui uma combinação de “o que aconteceu, o que não aconteceu e o que poderia ter acontecido” (Green, 2003, p. 35), em uma peculiar mistura do ocorrido com o desejado. Os discursos sociais e os sistemas simbólicos fazem a mediação. A estrutura libidinal desta imagem corporal e tudo aquilo que vem perturbá-la, transformam o corpo em um corpo clínico, um corpo sintoma, um corpo imaginado. Deste modo, o corpo em suas várias acepções – contemplado, desejado, penetrado, satisfeito, fecundado – constitui-se em objeto histórico, observado sem descanso, ao mesmo tempo em que se articula a noção de sexualidade de um ponto de vista moderno, “humana demasiada humana”, e a sexualidade feminina emerge do lugar de mistério profundo onde ficara encerrada.

As relações estabelecidas entre os homens e as mulheres são, a partir daí, redefinidas. A desigualdade social entre os sexos estende-se para muito além da Biologia. A Biologia Humana exige Cultura Humana. E uma vez diferente do homem, se fez necessário garantir à mulher uma educação particular.

Impõe-se a homens e mulheres mandatos e proibições que os encarceram a férreos estereótipos, contudo é possível afirmar que os códigos sociais afetam de modo muito diferente a umas e outros. O motivo fundamental da diferença é que os homens – ao serem considerados sujeitos desejantes – terão legitimidade pelo fato mesmo de nascerem homens, enquanto as mulheres não serão concebidas como detentoras de seu próprio desejo. Dito de outro modo, a subjetividade feminina será construída como satélite do desejo alheio, conformada pela dependência afetiva, econômica e legal e por um modelo de maternidade incondicional, abnegado e altruísta, como um papel vitalício exercido por toda a vida. Mulheres socializadas como seres-para-outros, um corpo sem Ser. Fundamenta-se, assim, um duplo padrão de moral.

 

Freud, Klein, Winnicott

Os homens se parecem mais com sua época do que com seus pais.4

No campo do pensamento instaura-se um acirrado debate em torno da definição do que é uma mulher. Intelectuais e pessoas comuns, imersos em contradições, avaliam o comportamento moral feminino ora sob a influência da Biologia, ora à luz da Cultura moldado pelas circunstâncias, pelas leis e pelos homens.

Essas controvérsias prosseguem no tempo e é neste cenário que Freud se insere. Herda da época histórica que o precedeu uma concepção pré-conceituada da diferença entre homens e mulheres, que assinalava a incapacidade feminina na lida com a vida, sua fraqueza física e moral. “Ainda que um gênio, não estava preparado para tomar suficientemente em consideração as mulheres como mães, o que de início lhe dificultou estar atento à transferência materna ao psicanalista homem – ou à contratransferência maternal por parte do psicanalista masculino. A função essencialmente andrógina do psicanalista na transferência não assinalou de modo evidente” (Welldon, 1988, p. 3).

Assim, ao pensar a sexualidade feminina, descreveu a situação social na qual a mulher se encontrava ideologicamente confinada. Contudo, paradoxalmente, ao conceber a mulher como um homem castrado seguiu a corrente de pensamento mais sofisticada de seu tempo, incorporando e ampliando em sua fala um discurso feminino e feminista que pensou a mulher dotada de pensamento, sexualidade e inserida na cultura. Anos depois, Elisabeth Badinter (1963), intelectual influente, ainda definiria a mulher como “... um animal racional. Um homem, como todo mundo” (p. 34). Freud, comprometido com a verdade da clínica psicanalítica, apresentou a histeria como dor psíquica, ligada a um traumatismo e resultante da tensão entre desejo insatisfeito e pressão social. E, no decorrer de seu trabalho, inspirado pelas primeiras psicanalistas, incorporou a importância da fase pré-edípica e com ela o amor e a identificação primeiro com a mãe. Ao fim, Freud transformou o discurso oficial, separou a história psíquica feminina daquela masculina e, pela perplexidade de sua interrogação sobre a natureza das mulheres, contribuiu para abrir dentro da cultura um lugar humanizado para que elas pudessem se apresentar. A mulher aparece como necessária e influente no destino dos filhos e dos homens, para o Bem e para o Mal.

André Green (2003) e Masud Khan (1984), entre outros, propõem que Freud teve continuidade por meio de Winnicott, que completou seu trabalho. Nesta ampliação, transformou a mãe freudiana que proíbe e frustra, em outra, que “se adapta ativamente” às necessidades do bebê. À mãe descrita como primeiro objeto de desejo contrapôs outra, que abriga o desamparo. Melanie Klein interfere neste caminho e Adam Phillips (2006) assinala que o trabalho de Winnicott não pode ser entendido sem referência a ela. N as palavras do próprio Winnicott (1990) encontramos: “A única coisa importante é que a psicanálise, baseada firmemente em Freud, não pode desperdiçar as contribuições de Klein” (p. 162). De fato, com ela entram no foco da psicanálise os primeiros estágios da relação de objeto com a mãe e a interrogação sobre o seu lugar no mundo do bebê.

A psicanálise passa de uma teoria que prioriza o desejo sexual para uma teoria que valoriza o cuidado emocional. Winnicott compartilhou com Klein a crença fundamental na importância decisiva dos estágios precoces do desenvolvimento e concorda com ela sobre a necessidade de satisfação do bebê. Pensa, porém, que a satisfação só é possível em um contexto de proximidade com a mãe capaz de reciprocidade, de adoecer com e por seu bebê e necessária para fazer com que ele comece a existir, a sentir que a vida é real. Assinala, ainda, que essa mãe não pode ser complacente, pois o bebê confia na firme atenção dela para sua sobrevivência. E desta experiência surge a esperança da dependência possibilitadora da independência.

Deste modo, mesmo tendo reconhecido a influência do legado de Freud e Klein, Winnicott distingue-se, desenvolvendo uma narrativa diferente do processo de desenvolvimento e da contribuição da mãe, dando ênfase à capacidade de preocupação com o outro e ao reconhecimento da alteridade. No caminho de assunção de sua singularidade faz um corte epistemológico invisível, sai do modelo dicotômico herdado e cria a ideia da terceira área da experiência, introduzindo a importância da transicionalidade e do paradoxal.

Já foi dito (cf. Phillips, 2006) que na psicanálise britânica do pós-guerra não houve um retorno a Freud como houve na França com a obra de Lacan, mas um retorno à mãe. De fato, teorias convincentes passam a ser publicadas sobre a importância da maternagem contínua para as crianças e os perigos potenciais da separação. Contudo, alguns afirmam que essas teorias foram desenvolvidas, ou usadas, ideologicamente para persuadir as mulheres a ficar em casa, no momento em que se sentiam autoconfiantes e valorizadas no espaço público, após seu papel decisivo na substituição dos homens mobilizados pela guerra. Winnicott é alvo desse tipo de crítica.

De fato, pensamos que a obra de Winnicott não é ideológica. Seu trabalho foi devotado ao reconhecimento e descrição da mãe que fazia bem a seu bebê e ao uso desse relacionamento como modelo do tratamento psicanalítico. Ao falar sobre “a mãe suficientemente boa” pretendeu ser compreendido e não copiado. A intenção não foi pedagógica, não pretendeu ensiná-las como vir a ser, apenas descreveu o que observou e aprendeu na prática pediátrica e no deslocamento para a clínica psicanalítica da assistência social e coletiva. Winnicott quis tanto se dirigir às mães, talvez para protegê-las de uma puericultura que poderia limitá-las, uma pediatria que poderia ameaçá-las e uma psicanálise que poderia culpá-las. Apresentou-as àqueles que auxiliam mães e bebês para que, cedo ou tarde, conseguissem reconhecer uma boa mãe quando a vissem, e então se assegurassem de que elas tivessem toda a oportunidade de desempenhar sua tarefa, interferindo o menos possível nesse processo.

 

Conclusão

Pensamos que Winnicott não pretendeu ensinar as mães a serem suficientemente boas, até porque não é algo a ser ensinado. Para ele, o seio constitui um símbolo, não de fazer, mas de ser. É sendo que a mãe, ao possibilitar a ilusão, se encanta e é sendo que se entristece na desilusão. Não desempenha um papel, não o intelectualiza, apenas o vive de modo genuíno e mais do que qualquer outra coisa, sente – e “conta” a seu bebê – que a vida é digna de ser vivida. O que implica no reconhecimento de que, a princípio, o modo como as mulheres se constituem em mães não está depositado em suas mãos, nem sob sua vontade.

Considera que há experiências que pertencem à área da esperança em relação à dependência e outras à área da desesperança. Nas palavras de Winnicott (1975) é possível existir um relacionamento de submissão com a realidade externa, onde o mundo em todos seus pormenores é reconhecido apenas como algo a que se ajustar ou a exigir adaptação. A submissão traz consigo um sentido de inutilidade e está associada à idéia de que nada importa e de que não vale a pena viver a vida. Winnicott vai destacar que a “mãe suficientemente boa” efetua uma adaptação ativa que exige uma preocupação fácil e sem ressentimentos. O que nos remete, de novo, à história das mulheres, quando submetidas a uma realidade que lhes dificultou ou impediu a descoberta criativa do mundo. Em que condições puderam essas mulheres do passado ser mães suficientes? Com qual autonomia geraram filhos com recursos de criatividade? Que tipo de interlocução encontraram na cultura de seu tempo? N ão colocamos em questão a existência de mães boas e suficientes ao longo de toda a história da humanidade, contudo pensar na “mãe suficientemente boa” implica concebê-la como mulher, respeitada pela cultura, reconhecida como dona de seu corpo e de sua liberdade, capaz de viver o paradoxo de amar com devoção e alteridade. Daí a proposta de que precisou das transformações do século XX, do movimento feminista, do desenvolvimento da humanidade para se tornar visível. Condições necessárias, ainda que não suficientes.

Pesquisas atuais5 desenvolvidas com mulheres gestantes abrem as portas para o mundo das representações mentais e dos significados, das fantasias, temores e afetos que cercam a experiência da gravidez e do desejo de fazer bebês. Colocam sob suspeita o chamado instinto maternal, questionam a imagem idealizada da boa mãe e apontam o fato de que, para algumas mulheres, a maternidade é vivida como fatalidade. Esses estudos postulam que a gravidez requer novas e complexas tarefas libidinais e de ajuste na dinâmica intrapsíquica da gestante, ao mesmo tempo que confronta as mulheres com a emergência dos conflitos não resolvidos das fases prévias e abala o equilíbrio parcial ou inadequado das soluções do passado. Assinalam a importância da transmissão transgeracional, com forte ênfase nas perturbações da relação mãe-filha, que em alguns casos foram rastreadas retrospectivamente até em cinco gerações. Essas mesmas pesquisas assinalam a importância do trabalho psicanalítico, bom e suficiente, na restauração dos recursos emocionais das mulheres gestantes.

A psicanalista Annick Le Guen (2001), pergunta: O que transmitem as mães às suas filhas? E responde: A identidade, a sexualidade, a feminilidade, o reconhecimento e a complementaridade do outro sexo, o desejo de maternidade, a ternura, o erotismo, mas também sua ambivalência e sua violência, porque mães de vida são também mães de morte. Transmitem suas histórias singulares e aceitam ou recusam suas filhas. Winnicott (1947/1978) fala, em 1947, das vinte razões pelas quais uma mãe pode odiar o seu bebê.

Deste modo, as mães, para assim serem, devem administrar dentro de si um trinômio, com inter-relações complexas, formado por imagos de mãe, mulher e filha. A “mãe suficientemente boa” pode ser pensada como herdeira de uma relação de vida, aquela para quem a feminilidade e a condição de mulher possam estar assumidas e asseguradas, proibindo-se de fechar o prazer e a sexualidade feminina no estatuto de mãe. Mãe que, sobretudo, não vive a rivalidade no encontro com a futura mãe, que suas filhas e noras virão a ser, não reivindica seu lugar por elas, fantasmaticamente, ocupado, não sente que devam ser eliminadas. A “mãe suficientemente boa” não dissocia os registros do sexual e do maternal, reconhece a própria ambivalência e identifica seu amor e sua raiva, sem nada fazer a respeito. Apenas a comporta, a tolera. Por isso é suficiente. Por isso é boa. Qualidades essas, nesse contexto, inseparáveis da submissão aos limites e do reconhecimento dos enganos. Mãe que depressivamente reconhece o equívoco como essencial à existência humana.

Por fim, consideramos que a capacidade do relacionamento suficientemente bom, que tal mãe pode manter, contém uma parceria amorosa com o homem em sua subjetividade, que inclua o amor por ele e o amor dele por ela, que torne disponível incluir o bebê em uma relação triangular. “O que está em questão aqui, e que é de fundamental importância, é se, em um relacionamento, os parceiros reais de uma situação são aqueles que estão efetivamente presentes ou se uma parte ausente pode desempenhar um papel em virtude do fato de estar presente na mente de um dos membros do casal” (Green, 2003, p. 55). Perspectiva que nos faz configurar uma mãe-feminina, como parte integrante de uma dupla genitalizada, capaz de dar aos filhos um pai real, incluído psiquicamente, e transmitir às filhas não só a feminilidade, como o desejo de ter bebês.

E é nesse complexo trajeto cultural e ontológico que a mulher na mãe pode vir a ligar a ternura ao erotismo e tornar possível o surgimento da “mãe suficientemente boa”.

 

Referências

Badinter, E. (1963/1991). Prefácio. In A. L.Thomas, Diderot, Madame D’Epinay, O que é uma mulher? Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Bloch, M. (1997). Apologia da história. Rio de Janeiro: Zahar.        [ Links ]

Castoriadis, C. (1990/1992). As encruzilhadas do labirinto III. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 220.        [ Links ]

Corbin, A. (org.) (2008). História do corpo. Vol. 2 Rio de Janeiro: Vozes.        [ Links ]

Green, A. e Fundação Squiggle. (1996/2003). Winnicott póstumo: ensaio sobre a natureza humana. Sobre a terceiridade. São Paulo: Roca.        [ Links ]

Le Guen, A. (2001). De mères en filles – Imagos de la feminité. Paris: PUF.        [ Links ]

Lobo, M. (2005). Uma história universal da femea. São Paulo: Selo Religare – W II Editores, p. 11.        [ Links ]

Khan, M. (1984). Psicanálise: teoria, técnica e casos clínicos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves.         [ Links ]

Phillips, A. (2006). Winnicott. São Paulo: Ideias e Letras.        [ Links ]

Welldon, E. (1988/1993). Madre, virgem, puta: idealización y denigración de la maternidad. Madri: Siglo veintiuno de España Editores        [ Links ]

Winnicott, D.W. (1947/1978). O ódio na contratransferência. In: Da pediatria à psicanálise. São Paulo: Francisco Alves.        [ Links ]

_____ (1975). A criatividade e suas origens. In: O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Silvia Lobo
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP
Rua Caçapava, 49/103 – Jd. Paulista
01408-010 São Paulo/SP
E-mail: lobosilvia@uol.com.br

Recebido em: 23.10.2008
Aceito em: 11.11.2008

 

 

1 Apresentado no XVII Encontro Latino-americano sobre o pensamento de Winnicott: Ressonâncias.
2 Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.
3 A expressão “fazer bebês” inspira-se em uma expressão cunhada por Le Guen “l’acte d’enfanter”.
4 Velho provérbio árabe.
5 Tereza Lartigue Becerra – Psicanalista investigadora do Instituto Nacional de Perinatologia – México.

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