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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.42 n.4 São Paulo dez. 2008

 

ARTIGOS

 

Escuta analítica da bissexualidade psíquica1

 

La escucha analítica de la bisexualidad psíquica

 

Analytical listening of the psychic bisexuality

 

 

Teresa Rocha Leite Haudenschild2

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora pressupõe que, para que o analista tenha uma escuta da bissexualidade psíquica do paciente na sessão, é necessário que ele mesmo a tenha elaborado suficientemente. Acentua que, embora apareça primeiro na análise a bissexualidade psíquica secundária, esta é uma transformação da primária, a qual deve ser o foco de um cuidadoso trabalho analítico. Enfatiza a importância do fator transgeracional nas falhas de constituição da bissexualidade psíquica primária. Como consequência extrema dessas falhas pode resultar uma ambissexualidade, em lugar da constituição da bissexualidade psíquica. Algumas vinhetas clínicas ilustram o tema tratado.

Palavras-chave: Bissexualismo primário e bissexualismo secundário; Feminino puro e masculino puro; Materno primário e feminino primário; Masculino e feminino; Ambissexualidade.


RESUMEN

La autora presupone que, para que el analista tenga una escucha de la bisexualidad psíquica del paciente en la sesión, es necesario que el mismo la haya elaborado suficientemente. Destaca que, a pesar de aparecer primero en el análisis la bisexualidad psíquica secundaria, esta es una transformación de la primaria, la cual debe ser el foco de un cuidadoso trabajo psicoanalítico. Enfatiza la importancia del factor transgeneracional en las fallas de constitución de la bisexualidad psíquica primaria. Como consecuencia extrema de esas fallas puede resultar una ambisexualidad, en lugar de la constitución de la bisexualidad psíquica. Algunas viñetas clínicas ilustran el tema tratado.

Palabras clave: Bisexualismo primario y bisexualismo secundario; Femenino puro y masculino puro; Materno primario y femenino primario; Masculino y femenino; Ambisexualidad.


ABSTRACT

The author presupposes that, in order to be able to listen to a patient’s psychical bisexuality, it is necessary for the analyst to have elaborated it sufficiently. She underlines that, despite the fact the secondary psychical bisexuality appears first in the analysis, this is a transformation of the primary that must be the focus of careful analytical work. She also emphasizes the importance of the transgenerational factor in the failures of the constitution of primary psychical bisexuality. As an extreme consequence of these failures ambisexuality can result in the place of psychical bisexuality. Some clinical vignettes illustrate the theme.

Keywords: Primary bisexuality and secondary bisexuality; Feminine pure and masculine pure; Primary maternity and primary femininity; Feminine and masculine; Ambisexuality.


 

 

Introdução

Para escutar a bissexualidade psíquica de seus analisandos é preciso que o analista tenha elaborado suficientemente sua própria psicobissexualidade: que tenha um “bom casal parental internalizado”, o que pressupõe diferenças de gênero e de gerações.

É a partir dessa referência interna que o analista pode escutar as “falhas” internas de seus analisandos: a insuficiência da internalização de uma figura materna ou paterna, por exemplo (Ogden, 1991), insuficiências que muitas vezes se devem a fatores transgeracionais, a “falhas” na constituição do psiquismo dos pais desses analisandos, o que é apontado exaustivamente por Guignard (1996/1997).

Além de útil na escuta analítica, a psicobissexualidade do analista vai balizar a reconstituição da bissexualidade psíquica do analisando, tanto a nível primário (a nível da relação primária mãe-criança), como a nível secundário (relativo aos conflitos edípicos).

 

Constituição da bissexualidade psíquica

“A bissexualidade é um conjunto masculino-feminino: um ‘complexo’ psico-corporal- sexual que em princípio irá se tornando cada vez mais psíquico, mas que guardará sempre articulações com o corpo” (Haber, 1997, p. 66).

Como se constitui?

Bissexualidade psíquica primária

Podemos pressupor que a criança, como objeto do desejo de um casal, antes mesmo de nascer, pode estar sendo esperada com determinado sexo. Ao nascer é identificada pelos pais – e de modo particular pela mãe (ou não) – como sujeito separado, como um “outro”, e então designada (Stoller, 1968) como sujeito sexual com um gênero determinado. Assim, nesse percurso, é considerável a importância das fantasias inconscientes e conscientes dos pais e da elaboração e integração (ou não) da bissexualidade psíquica destes.

Na relação primária com a mãe vai sendo constituída a bissexualidade psíquica primária da criança.

Segundo Bion, a mãe disponível e aberta para a escuta de tudo o que vier da criança, a mãe capaz de rêverie, que oferece continência para os sentimentos, angústias e desejos da criança, nomeando-os e explorando seus significados, é o objeto favorecedor para que a criança introjete a capacidade de conter seus próprios recursos psíquicos. Para ele, haveria então um primeiro momento em que a criança emprestaria (sem ter noção disso) a capacidade continente da mãe, que aos poucos iria sendo introjetada, e um segundo momento, em que ela, já com autocontinência psíquica, poderia utilizá-la.

Winnicott (1966) diz que, num momento bem inicial, “o objeto é o sujeito” (p. 177). A mãe se adapta ao bebê de tal modo que este sente que o seio é ele, é sua continuidade. É um “objeto subjetivo, que não foi ainda repudiado como fenômeno não-eu” (p. 177). N essa “ilusão primária”, nesse modo de relação objetal com o “elemento puramente feminino”, é estabelecida a experiência de ser simplesmente, a experiência mais fundamental de um ser humano. “As identificações projetivas e introjetivas provêm desse lugar onde cada um é o mesmo que o outro” (p. 177). N um segundo momento, quando o bebê já realizou essa identificação primária, de ser um com o seio, pode então relacionar-se a partir do “elemento masculino puro”: pode ser um sujeito ativo ou passivo em relação ao outro, com movimentos pulsionais próprios, nos seus afazeres…

Winnicott (1966) salienta que nesse momento inicial da acolhida do ser, “o que está em jogo é uma continuidade real de gerações, a saber: aquilo que é transmitido de uma geração a outra por intermédio do elemento feminino para o homem e a mulher, para o recém-nascido, menino ou menina” (p. 177-178).

Acredito que nessa transmissão, feita por intermédio de um elemento feminino puro, como diz Winnicott, há desde esse contato com o ser da mãe (tomado como seu ser, já que este lhe é contínuo e adaptável) a apreensão da bissexualidade psíquica materna: a apreensão do valor que a mãe dá a todos os seres humanos masculinos e femininos. Se não, como poderia ela abrir-se irrestritamente à relação de continuidade com um bebê de outro sexo que o seu?

Pressuponho que tanto a mãe capaz de escuta psíquica com seu rêverie, quanto a capaz de adaptar-se às necessidades do bebê, teriam que ter uma razoável elaboração de sua bissexualidade psíquica (característica acentuada por Bion), a partir de um “bom coito parental” interno e da realização deste em sua vida real. Se num primeiro momento a relação inicial da mãe com seu bebê é “neutra”, como diz Winnicott, no meu entender só é porque os investimentos eróticos dela dirigem-se ao marido.

Bissexualidade psíquica secundária

Origina-se na bissexualidade psíquica primária, inaugurando-se na apreensão, pelo bebê, de que sua mãe tem um “outro” olhar (diferente do materno que lhe é dedicado), para um “outro” objeto: o pai. É esta apreensão do “feminino primário” (Guignard, 1997) pela criança que marca sua sexualidade: o modo real em que sua mãe vive sua própria sexualidade, junto ao peso das fantasias e invejas da criança. Aqui se evidencia o transgeracional: a transmissão do valor que a mãe dá ao pai, do contentamento do intercurso com ele (o que supõe já uma transmissão feita à mãe pela avó), são indelevelmente marcados na estrutura psíquica da criança, seja ela menino ou menina.

A elaboração da bissexualidade psíquica secundária, relativa às paixões, raivas e rivalidades edípicas (positivas e negativas) é colorida pelas imagos parentais resultantes da elaboração da bissexualidade psíquica primária, assim como pelas experiências reais na relação com a criança onde os investimentos parentais também pesam.

A bissexualidade psíquica secundária refere-se a relações com objetos totais, à posição depressiva e aos conflitos edípicos, pressupondo uma comunicação inter e intrapsíquica da ordem do simbólico.

 

A bissexualidade psíquica na clínica

Bion (1965/2004) diz que “se a análise for bem-sucedida em restaurar a personalidade do paciente, ele vai se aproximar de ser a pessoa que foi quando seu desenvolvimento tornou-se comprometido” (p. 157). Ele acredita, assim, que toda pessoa (desde que não tenha pressupostamente algum comprometimento orgânico) tem equipamento inato para se desenvolver psiquicamente. Mas como a mente “não cresce como uma flor” (Meltzer, 1989), como é constituída na relação, e inicialmente construída através da relação primária com a mãe, teríamos que indagar sobre as condições adequadas para isso.

Como vimos, Bion coloca a mãe capaz de rêverie, a mãe capaz de dar significado emocional às primitivas experiências do bebê, como fundamental para a constituição mental deste. Seria uma mãe pós-edípica, com um “bom casal internalizado”, que tem espaço para o pai, para o outro, para o diferente, em sua mente.

Ele aproxima o analista a essa mãe com rêverie: capaz de acolher, nomear e dar significados, nunca saturados, às experiências emocionais surgidas na relação do analisando com ele, na sessão.

Bion acentua ainda, quando fala da mãe com rêverie, que além do amor pelo bebê, o amor que esta tem pelo pai é essencial na relação com o filho. No analista, poderíamos pensar em amor pela verdade, desconhecida, a qual vai se desvelando (aletheya) na relação, sempre nova a cada dia… Em suma: o amor do analista pela psicanálise, a quem serve, dando passagem à vida psíquica.

 

A bissexualidade psíquica do analista na sessão

Como se dá a escuta analítica? Qual seria a configuração de objetos internos que possibilitaria ao analista escutar psiquicamente seu analisando?

Teríamos que pensar essa escuta como um leque de ampla abertura, que abrange desde a escuta de estados mentais muito primitivos, como os relativos às relações pontuais ou adesivas anteriores à posição esquizoparanóide (estes últimos já relativos a investimentos em objetos parciais e com predomínio de identificações projetivas), até estados mais evoluídos, relativos a objetos totais e à posição depressiva, em que predominam identificações introjetivas.

Assim o analista, por meio de sua análise, pressupostamente teria que ter explorado seu próprio leque mental em todos esses níveis para poder ajudar seu analisando a acessálos também.

Mas bem sabemos que muitas vezes somos suscitados, em alguns processos analíticos, a acessar em nós cantos obscuros de nossas mentes nunca dantes explorados, a descobrir verdades encobertas nunca dantes desveladas…

A escuta analítica da bissexualidade psíquica

No meu entender (cf. Bion), o que nos auxilia nesse empreendimento corajoso a que nos oferecemos junto a nossos analisandos é nosso “bom casal internalizado”, nossa bissexualidade psíquica primária (Haber, 1997) internalizada desde as relações primárias com nossa mãe. Ela própria portadora da internalização de “objetos internos” parentais (Guignard, 1997), coloridos (ou não) pelo amor e a valorização da mulher pelo marido e vice-versa.

É a partir dessa identificação básica, fruto originado da ligação amorosa de um casal que nos valoriza e nos atribui nossa identidade de gênero a partir de nosso corpo (Stoller, 1968), que respeita nossa misteriosa singularidade psíquica e que nos convida a respeitar tanto a singularidade de cada um deles como a do casal, é que vamos constituindo nossas primeiras relações e nos constituindo psiquicamente.

Quando no divã um analisando, através de suas representações fantasmáticas, explicita um inconsciente materno que expressa um encontro heterossexual falho (por exemplo, o de uma mulher que é submissa ao marido ou o submete falicamente), certamente podemos hipotetizar nesse analisando uma falha básica na integração e internalização do casal parental, falha básica em sua identidade, numa etapa precoce, onde se instalaria um narcisismo saudável.

É claro que para uma escuta em profundidade e mais precisa do inconsciente de nosso analisando seriam necessários alguns anos de trabalho analítico, sendo que as dificuldades primárias na constituição da bissexualidade psíquica só aparecem depois das secundárias, manifestadas desde o início da análise.

 

A escuta da bissexualidade psíquica na clínica

Marina e Andréa

Vêm-me à mente duas pacientes: Marina e Andréa. Ambas filhas caçulas: a “raspa do tacho”, como costumamos dizer no Brasil, acentuando que seriam o “filho que restou”, que não estava incluído no projeto dos pais. Ambas executivas de alto escalão, a primeira com cerca de quarenta anos, a segunda com trinta, ambas bem-sucedidas profissionalmente, com família constituída e um único filho.

O espantoso, no início da análise de ambas, é que, apesar de sua extrema espontaneidade, ao deitar-se no divã têm dificuldade de trazer associações livres e sonhos. Atémse a problemas relacionais objetivos com os colegas de trabalho ou com o marido na vida cotidiana.

Marina: ser o “homem” da casa para não sofrer

Com o passar do tempo, Marina traz a lembrança de que sua mãe quase fora morta pela sogra da avó (bisavó paterna) por ser a terceira filha (como Marina) e, portanto, uma boca a mais, e não um homem que poderia trabalhar pela família (Haudenschild, 2004). A bisavó colocara a criança ao relento no inverno durante a noite enquanto a avó dormia, mas o avô acordara e salvara a mãe de Marina.

Até esse momento Marina vivia se lamentando de sua falta de criatividade (o que era real, pois só à custa de muito esforço conseguia seus êxitos profissionais) e a partir daí sua vida ganhou uma fluência nova.

Acredito que foi a lembrança do avô salvando a mãe que trouxe a ela uma integração mais estável de um casal cuidador, básica para a sua identidade: integração referente à sua bissexualidade psíquica primária. Se havia um homem que desejava que sua filha vivesse e protegia sua vida, a mulher poderia despreocupadamente dedicar-se à criança.

Foi esta escolha que a mãe de Marina fez: de um marido dedicado às filhas e amoroso, mas, pelos muitos anos de análise, posso hipotetizar que essa mãe tinha um encontro heterossexual falho com o marido, dedicando-se mais às funções de mãe do que de esposa. Era Marina, por exemplo, que ia com o pai de braço dado à igreja quando mocinha, enquanto a mãe preparava o almoço de domingo. E Marina tem indícios seguros de que o pai mantinha uma relação amorosa estável fora de casa.

Por outro lado, acredito que, ainda sob a sombra transgeracional de que “meninas são mais uma boca na casa, portanto indesejadas”, Marina apreciava muito ser parecida com o pai, usando extensivamente roupas masculinas. Mas uma de suas lembranças mais apreciadas era a de um vestidinho confeccionado pela mãe para ela com a mesma fazenda do vestido da irmã mais velha, que era muito feminina: “ele era de organdi, pinicava [doía ser mulher], mas eu fiquei muito contente. Tenho a foto com ele até hoje”.

Andréa: a dor da não-aceitação

Andréa tem uma mãe muito submissa e um pai fálico, suscetível de ataques repentinos contra a mulher e as filhas, protegendo o único filho homem, irmão imediatamente anterior a Andréa.

Conta que a mãe era submissa e nunca a protegia da fúria do pai, principalmente quando Marina em tenra idade (16 anos) arranja um primeiro emprego com a finalidade de viajar por sua conta nas férias.

 

Falhas na constituição da bissexualidade psíquica primária

Podemos conjeturar que o casal internalizado dos pais de Marina e Andréa muito influiu na constituição do casal parental internalizado por ambas.

A desvalorização da mulher, por elas internalizada através da relação inconsciente e consciente com o casal parental, as fez precocemente buscar êxito financeiro para se livrar da submissão ao homem. E a marca dessa desvalorização pesou sobre a escolha de seus parceiros: ambos com pouca iniciativa, quase sustentados por elas.

Creio que fizeram essas escolhas pelo temor de serem dominadas, como suas mães, mas também pelo anseio de reconstituir uma relação precoce com a mãe, uma vez que estes maridos propõem uma relação simbiótica, de cuidados sensoriais e presença constante (ora elas são como filhas deles, ora eles são como filhos delas): relação que esses maridos também mantêm realmente com as próprias mães, até hoje.

Marina e Andréa patinavam nesse círculo vicioso no início da análise: independência econômica, mas submissão inconsciente a uma relação primária simbiótica, não subjetivante, transmitida na relação primária com a mãe, de acordo com minha hipótese.

Era necessário, portanto, escutar as falhas na constituição de sua bissexualidade primária, constitutiva de sua identidade. Sem esquecer que, ao longo dos anos, a minha escuta, como a de uma mãe pós-edípica com capacidade de rêverie, foi aos poucos favorecendo uma escuta do novo, do diferente, introduzindo o lugar do pai e propiciando a internalização do casal cuidador.

Acredito que a lembrança de Marina, do avô socorrendo a mãe, tenha sido fruto da aceitação e reconhecimento já desse lugar, por meio de introjeções do casal parental na parceria analítica.

O caminhar de Marina e Andréa

Marina, com mais tempo de análise, está em franco crescimento psíquico, associa livremente e traz sonhos com elaborações interessantíssimas; e suas relações com o marido e a filha têm se modificado consideravelmente, possibilitando o crescimento e a busca de caminhos próprios para todos.

Andréa ainda está passando pelas “dores da própria gestação”: está descobrindo o quanto de couraça significam seus êxitos profissionais por trás dos quais ela se encastelava para se defender dos homens com os quais convive diariamente, pois é diretora de uma grande empresa onde há poucas mulheres.

O que norteia sua análise é seu amor à verdade, revelado pela sua espontaneidade e sua coragem de sofrer as dores psíquicas, refazendo passos iniciais de seu desenvolvimento através da nomeação e significação de estados precoces, há tanto tempo encapsulados, à espera de uma escuta que deles desse conta (Freud, 1937).

É assim que desfilam na sala de análise, ao lado de seus êxitos escolares desde muito pequena, a dor de não se sentir amada pela mãe que “só tinha olhos para o irmão” que veio antes dela. A vergonha de se sentir “mais uma menina”, herdando a roupa das irmãs mais velhas… A dor da não-presença do pai, sempre fora de casa, cheio de amantes, enquanto a mãe se submetia, desde que ele sustentasse a casa.

Aos poucos Andréa conta do casal de avós maternos, que morava perto de sua casa e a quem recorria quando das brigas dela com os pais, que eram muitas: “pois era muito desbocada e nunca deixei de responder, seja à minha mãe ou ao meu pai, quando queriam que eu me submetesse irracionalmente”. Esses avós a escutavam, secavam suas lágrimas (até hoje Andréa é muito chorona ao contar seus infortúnios: é um choro mudo, às vezes imperceptível até) e ela diz que “saía outra de lá”. Saía inteira, penso eu, pois esse casal escutava o “outro” dela: a sua singularidade e a ajudava a reconstituir o casal internalizado primário, a sua bissexualidade psíquica primária, básica para sua autovalorização e identidade própria.

A lembrança desse casal cuidador adveio também depois de algum tempo de parceria analítica, pressupondo-a assim como favorecedora de uma internalização mais estável desse casal.

 

Falhas na constituição da bissexualidade psíquica secundária

Nesta, o conflito exprimido é a partir das fantasias inconscientes do próprio sujeito, e não de situações traumáticas reais da infância ou de fantasias inconscientes transgeracionais (identificações alienantes). “É característica de um psiquismo organizado pela posição depressiva e fantasias edípicas, cujo regime de funcionamento pertence à ordem do simbólico” (Haber, 1997, p. 65).

Aqui pode-se pensar numa análise clássica, com a instalação de uma “neurose de transferência”, onde os conflitos edípicos negativos e positivos com cada um dos pais e com o casal vão aparecendo, assim como as rivalidades entre irmãos de ambos os sexos. São conflitos relativos a “objetos totais”, a pessoas totais, com personalidade própria.

A bissexualidade secundária articula-se à primária, uma vez que é uma transformação dessa.

Articulação da bissexualidade psíquica primária com a secundária

Assim, numa pessoa em que a bissexualidade psíquica primária ainda não se estabeleceu firmemente, os conflitos daquela (busca de reconhecimento e valorização, dor de não ser amado, desejo de apego simbiótico etc.) podem colorir a elaboração edípica.

A bissexualidade primária pode assim, après coup, ganhar uma releitura e reelaboração. E como estes níveis mais precoces só vão podendo ser explorados no decorrer do processo analítico, os conflitos relativos à bissexualidade secundária geralmente são os primeiros a ser abordados na análise.

É a partir do olhar parental atento e reconhecedor de sua feminilidade, ou masculinidade, que a identidade sexual da criança vai se constituindo. Se a mãe ou o pai têm angústias em relação ao sexo do outro, se há depreciação ou desvalorização recíproca, a criança introjeta esse casal que não se ajusta, que não aceita a heterossexualidade; o que acarreta falhas na constituição da bissexualidade psíquica primária, como vimos.

As falhas na constituição da bissexualidade psíquica secundária aparecem quando a criança pode não introjetar um casal adequado devido à própria inveja, ou à incapacidade de aceitar suas limitações, o que implicaria a renúncia às qualidades, atributos e privilégios do outro sexo.

O menino “grávido”

Lembro-me aqui de um analisando de três anos, cuja mãe estava grávida. Ao chegar para o primeiro encontro analítico contou-me que estava esperando um bebê, que iria nascer antes do da mãe. Ele o tinha na barriga: estufou-a e pôs minha mão sobre ela para eu sentir como estava grande. Disse que iria amamentá-lo quando nascesse, pois seu peito cresceria mais do que o de sua mãe e teria muito mais leite…

Esse menino tinha identificações masculinas bem claras, com designação de gênero pelos pais, assim como um “bom casal internalizado”, no meu entender. Mas estava vivendo naquele momento fantasias perverso-polimorfas próprias à sua idade, elaborando Édipo negativo e positivo, e trabalhando a renúncia à ambissexualidade.

Apesar de acreditar em suas teorias sexuais infantis, pôde ir renunciando a elas muito rapidamente, favorecido pela análise, pela entrada na escola e pelas brincadeiras com outros meninos (era filho único e até esse momento só convivera com adultos).

O pai de primeira viagem que é uma “mãe” para o filho

Vem-me à mente também um analisando adulto que acabara de ter seu primeiro filho, mas achava que sua mulher não tinha jeito para cuidar da criança (embora contasse que ela deixara todas as suas atribuições profissionais e estava amamentando o bebê). Ele suspendeu o trabalho por umas semanas e estava sempre presente cuidando do filho, dando banho, acalentando, em suma: substituindo sua mulher. Dizia: “Só não tenho leite, mas acho que se precisasse iria ter: li que na África há uma tribo que, quando a mãe morre, quem dá leite ao recém-nascido é o pai: veja como a cabeça manda no corpo…”

Interpretações de como ele queria ter atributos femininos não eram ouvidas, ou transformadas em elogios às suas qualidades maternas.

Ele (também primeiro filho) a custo foi renunciando a querer ocupar o lugar de ambos os sexos e reconhecendo a diferença e o valor de sua mulher. Mesmo o valor da analista (mulher) era checado: “será que um homem não o compreenderia melhor?”

Embora, no meu entender, com uma bissexualidade psíquica primária suficientemente estabelecida, ele, invejando os atributos do corpo feminino, tinha a fantasia do homem como um ser completo: bastava-lhe querer para ocupar o lugar da mulher, da mãe. Assim, creio que admirando os atributos maternos, e conjuntamente invejando a atenção dada pela mãe à irmã que veio logo depois dele, ele tentava fazer com o filho uma dupla “homo”, deixando a mulher de fora (como se sentira de fora quando a mãe cuidava primariamente da irmã recém-nascida).

Penso que na elaboração da bissexualidade psíquica secundária, desde que esta se origina da primária, aparecem sempre reelaborações relativas a esta última. Cabe ao analista decidir quando há predominância de falhas na elaboração de uma ou de outra, para dirigir o foco e a interpretação ao nível apropriado.

 

Considerações finais

Há alguns anos fizemos uma pesquisa sobre a escuta analítica a partir do gênero do analista e do analisando (Haudenschild, 2001).

Um dado interessante encontrado foi a dificuldade do analista homem poder apreender a transferência erótica da analisanda mulher, interpretando-a, na maioria das vezes, a partir de uma posição maternal, como se esses investimentos fossem os de uma criança pequena à mãe.

Marcados hoje por influências kleinianas, winnicottianas, bionianas, os analistas atuais não podem deixar de lado a influência marcante da mãe na constituição do seu psiquismo e do de seus analisandos. Assim, muitas vezes, privilegiam a escuta a partir da posição materna, em detrimento de outras, assim como Freud, em sua época, praticamente “não ouvia” as transferências maternas a ele, privilegiando as paternas.

No entanto, é o próprio Freud (1912) que, com o conceito psicanalítico fundamental de “atenção flutuante”, nos abre caminhos incomensuráveis para a escuta e a posição nunca fixa do analista. É como se este se dispusesse a uma coreografia improvisada e imprevista, a partir dos movimentos mínimos de seu analisando, e ao mesmo tempo mantivesse um olhar terceiro, à distância, como o de um diretor de cena, convidando seu parceiro a se contatar com as nuances presentes da verdade relacional. Verdade muitas vezes camuflada e distorcida por defesas construídas e mantidas durante anos, às vezes por toda a vida, como baluartes… Para conhecê-las, e ajudar o analisando a encontrar caminhos para sair delas, muitas vezes temos que “dançar” com ele por algum tempo, até alcançar alguma compreensão do motivo de ele ter ficar encerrado nelas, distante das suas possibilidades reais de vida.

É a partir da coreografia a que cada um de nossos analisandos nos convida que, como parceiros e observadores atentos, podemos ajudar a reelaborar sua bissexualidade psíquica, antídoto imprescindível à ambissexualidade (Haudenschild, 2007). A aceitação de que se pode ter ambos os sexos psiquicamente é o que propicia a renúncia de os ter corporalmente e leva à apreensão de que masculino e feminino se complementam reciprocamente: foram feitos, na sua incompletude, “justinho um para o outro”…

 

Referências

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Endereço para correspondência
Teresa Rocha Leite Haudenschild
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP
Rua Tomé de Souza, 1029
05079-200 São Paulo, SP – Brasil
Tel.: +55 11 3834-9428
Fax: +55 11 3832-3672
E-mail: haudenschild@sti.com.br

Recebido em: 9.9.2008
Aceito em: 11.11.2008

 

 

1 Apresentado no XXVI Congresso Latinoamericano de Psicanálise.
2 Analista didata e Analista de crianças e adolescentes da SBPSP. Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.

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