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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.42 n.4 São Paulo dez. 2008

 

ARTIGOS

 

Encontro com o feminino: Hilda Hilst e outras1

 

Encuentro con lo femenino: Hilda Hilst y otras

 

Meeting with the feminine: Hilda Hilst and others

 

 

Dominique Touchon Fingermann2

Analista membro da Escola de Psicanálise do Campo Lacaniano

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Se o ponto de partida da psicanálise foi o “feminino”: a escuta das mulheres e de suas conversões no corpo de algo mal dito do sexo (histeria), Freud concluiu a sua obra deixando a questão do feminino em aberto como “continente negro”. Por outro lado, o “falocentrismo” freudiano tão criticado pelas feministas não permite discernir o próprio do feminino, já que se a mulher é desejante e castrada (como o homem), inclusive na maternidade, ela permanece referenciada ao masculino – e ao falo (inclusive na sedução – mascarada). No entanto, na experiência psicanalítica, cotidianamente, e também através da literatura ocasionalmente, temos notícia de algo radicalmente “heteros” nessa sexualidade, algo descabido, desobediente a essa lei fálica, “um gozo suplementar” – diria Lacan.

Palavras-chave: Feminino; Heterossexualidade; Gozo fálico; Alteridade; Falo; Desmedida.


RESUMEN

Si el punto de partida de la psicoanálisis fue el “femenino”: la escucha de las mujeres y de sus conversiones en el cuerpo de algo mal dicho del sexo (histeria), Freud concluyó su obra dejando la question de lo femenino en abierto como “continente negro”. Por otro lado, el “falocentrismo” freudiano tan criticado por las femenistas no permite discernir el propio de lo femenino, ya que si la mujer es deseante y castrada (como el hombre), incluso en la maternidad, ella permanece referenciada al masculino – y al falo (incluso en la sedución – mascarada). Pero, en la experiencia psicoanalítica, cotidianamente, y también a traves de la literatura ocasionalmente, tenemos noticia de algo radicalmente “heteros” en esa sexualidade, algo desmesurado, desobediente a essa lei fálica, “un gozo suplementar” – diria Lacan.

Palabras clave: Femenino; Heterosexualidad; Gozo fálico; Alteridad; Falo; Desmedida.


ABSTRACT

If the starting point of psychoanalysis was the feminine – listening to women and their bodily conversion of something damned and not said of sex (hysteria), Freud ends his oeuvre leaving open the question of the feminine as the “dark continent”. Alternatively the Freudian “phalocentrism” so criticized by the feminists doesn’t allow to discern the feminine in itself, because if woman is desiring and castrated (as the man), including maternity, she continues to be refered to the masculine – and to the phalo (also in seduction – masked). Anyhow in psychoanalytical experience, in everyday and also in literature occasionally, we get notice of something radically “heteros” in this sexuality, something unbecoming, disobedient to this phallic law, “a suplementary ‘jouissance’ ” – as Lacan would say.

Keywords: Feminine; Heterosexuality; Phallic “jouissance”; Alterity; Phallus; Excessive.


 

 

1. Encontro com o feminino

O pretexto desta comunicação foi um convite para falar do feminino a partir da obra de Hilda Hilst numa série de palestras sobre “Psicanálise e literatura”.

Articular psicanálise-literatura-feminino e o texto ímpar de Hilda Hilst poderia constituir um assunto de tese; esta breve comunicação não pretende exaurir a complexidade de tal interseção, mas apenas tangenciá-la.

Esse pretexto produziu um encontro inesperado com o feminino, similar ao “feminino” que o psicanalista flagra onde menos se espera, nas escadas e nos desvãos de um percurso analítico.

A questão da relação da psicanálise com a literatura encontra hoje uma resposta relativamente homogênea entre os psicanalistas, apesar de alguns abusos no passado que ocasionaram uma desconfiança legítima dos literatos em relação a qualquer intromissão dos psicanalistas em seu campo. Não se trata mais de aplicar ao texto literário o método psicanalítico, fazendo um tipo de psicanálise aplicada que seria apenas uma análise selvagem. Por exemplo, seria muito tolo – para não dizer canalha – pegar O caderno rosa de Lori Lamby (Hilst, 2007) e reduzi-lo à fantasia edipiana de Hilda Hilst, retranscrevendo aí sua história com o pai, poeta fracassado e louco, e seu suposto desejo incestuoso etc.

Em vez de colocar a psicanálise como referência do texto, reveladora de seu subtexto, o psicanalista se coloca numa posição de reverência em relação ao texto literário. Reverenciamos a façanha do poeta, do escritor, do artista em produzir e compartilhar com o outro, como num passe de mágica, o que numa análise pode – eventualmente – se produzir de melhor no final, mas ao preço de uma longa travessia. O que pode se produzir de melhor numa análise é que a extrema singularidade de um sujeito, aquilo que o distingue de todos os outros, possa ser, no final das contas, destacada e extraída dos sintomas, da dor, do desamparo, da “derrelição”, diria a Obscena senhora D (Hilst, 1986).

É comum alguém confundir a sua extrema singularidade com dor, solidão, exílio e abandono. No entanto, é possível encontrar na literatura, na arte em geral e no final de uma análise, uma forma que, embora única, inédita, inaudita, tenha valor para o laço social. A singularidade pode encontrar uma forma que, embora ím-par, produza alguma parceria. A literatura é, portanto, modelo e não objeto de análise e de redução do texto aos conceitos que os analistas inventam para operar na sua clínica. A literatura, muitas vezes, nos espanta pelo seu efeito de verdade, que nos atinge, sempre mais além do saber contido no texto. Algo na textura do texto tange o não sabido: Unbewusst: Inconsciente.

Vi-me afastada do centro de alguma coisa que não sei dar nome, nem por isso irei à sacristia, teófaga incestuosa, isso não, eu Hillé também chamada por Ehud A Senhora D, eu Nada, eu Nome de Ninguém, eu à procura da luz numa cegueira silenciosa, sessenta anos à procura do sentido das coisas. Derrelição Ehud me dizia, Derrelição – pela última vez Hillé, Derrelição quer dizer desamparo, abandono, e por que me perguntas a cada dia e não reténs, daqui por diante te chamo A Senhora D. D de Derrelição, ouviu? Desamparo, abandono, desde sempre a alma em vaziez, buscava nomes, tateava cantos, vincos, acariciava dobras, quem sabe se nos frisos, nos fios, nas torçuras, no fundo das calças, nos nós, nos visíveis cotidianos, no ínfimo absurdo, nos mínimos, um dia a luz, o entender de nós todos o destino, um dia vou compreender, Ehud compreender o quê? isso da vida e morte, esses porquês escute Senhora D, se ao invés desses tratos com o divino, desses luxos do pensamento, tu me fizeste um café, hein? E apalpava, escorria os dedos na minha anca, nas coxas, encostava a boca nos pelos, no meu mais fundo, dura boca de Ehud, fina úmida e aberta se me tocava, eu dizia olhe espere, queria tanto te falar, não, não faz agora. (Hilst, 1986, p. 61)

O feminino em Hilda Hilst (2004) encontra-se, assim, no espanto, embaixo do vão da escada: uma alteridade abismática e sua medida estilhaçada (Hilst, 2004, p. 107). O feminino não se procura: se acha onde não se pensa. Por exemplo, encontra-se nos poemas reunidos no volume “Do desejo”. Hilda Hilst (2004) escreve:

(…) porque a ânsia Tem parecimento com esse desmesurado de mim Que te procura. Mas também não é isso Esse meu neblinar contínuo que te busca. (Hilst, 2004, p. 115)

Quem procura “O feminino” não acha, mas no neblinar do texto, quem se atreve pode topar com o desmedido, desmesurado nas duas versões entrelaçadas que o texto de Hilst (2004) apresenta: uma que sabe o que foder quer dizer e outra que geme diante do Nada.

Extasiada, fodo contigo ao invés de ganir diante do Nada. (p. 17)

Extasiada, extremada, excessiva, estremecida, Hilda Hilst (2004), uma mulher, que faz texto com sexo, uma mulher “descompassada no de dentro da outra” (Hilst, 2004, p. 51).

Há um incêndio de angústia e de sons Sobre os intentos. E no corpo da tarde Se fez uma ferida. A mulher emergiu Descompassada no de dentro da outra. (Hilst, 2004, p. 51, ibid.)

 

2. Psicanálise e feminino

O que disse a psicanálise do feminino?

Freud disse em seu último texto sobre “A feminilidade” (1936), que não é da alçada da psicanálise “descrever o que é a mulher”, já que é “uma tarefa irrealizável” desvendar o enigma do feminino e desbravar esse “continente negro”. E não deixa de nos espantar quando, no final do texto, no final de sua obra, portanto, depois de cinquenta anos de prática e teorização da psicanálise, nos dá esse conselho: “Se você quiser aprender um pouco mais sobre a feminilidade, interroguem a sua própria experiência ou então perguntem para os poetas” (Freud, 1936).

Ficamos surpresos por ele nos deixar com a pergunta “O que quer a mulher?” (Was will das Weib?), justamente porque Freud inventou a psicanálise e iniciou a sua conceitualização ouvindo as mulheres, e porque ele nunca cessou de formalizar a questão da sexualidade, das suas diferenças, e consequências, encantos, tropeços e mal-estares. O mistério do feminino e seus percalços, em particular na histeria, constitui inegavelmente um dos pontos de partida da psicanálise e de seus fundamentos, tanto que as teorizações de Freud lhe valem até hoje uma fama de misógino e a ira das feministas de todos os tempos. Então o que dizem os psicanalistas desse “continente negro”?

Há uma primeira constatação da clínica freudiana que condiciona toda a sua teoria: a sexualidade é infantil. Ou seja, antes que a genitalidade tenha valor específico, diferenciando posições masculinas e femininas, o psiquismo humano é marcado e mapeado a partir das pulsões sexuais que inscrevem no corpo, em torno de suas zonas erógenas e dos objetos que as satisfazem: rastros da sexualidade, e de humanidade. O ser se humaniza desde essas primeiras inscrições em torno dos orifícios do corpo e dos objetos orais e anais, olhar e voz, que trançam o corpo enlaçando-o com o outro materno, sua libido e sua ausência.

As pulsões e a satisfação que obtêm são sempre parciais, não existe uma pulsão genital única e unificante que reuniria a sexualidade como um todo. Ou seja, aquilo que define essencialmente a sexualidade não permite que se faça a diferença masculino/feminino. Essa sexualidade infantil originária não diferencia homem e mulher, que também compartilham, inicialmente, o mesmo objeto de amor feminino: a mãe. A renúncia a esse primeiro objeto amoroso, o complexo de Édipo, deveria, segundo Freud, iniciar os destinos diferentes da sexualidade feminina e masculina.

O problema – que de certa forma constitui um escândalo da psicanálise – é que Freud aplicou às mulheres a medida que tinha para o homem: o falo. A medida é ter ou não ter o falo, o que, consequentemente, inscreve o feminino como deficiente. A identidade sexuada faz-se a partir do temor de perder o falo para quem o tem e da inveja para aquela que não tem. Esse falocentrismo de Freud é um problema, sobretudo porque ele não dá muitas pistas para podermos identificar a especificidade do feminino: mesma marcação pulsional, mesmo objeto inicial, mesma organização da libido e do desejo a partir do falo e de sua possível falta. N otemos, no entanto, que essa ordenação fálica da sexualidade não é mais confortável para os homens do que para as mulheres, porque se elas sofrem da falta fálica, os homens sofrem – e como! – da ameaça de castração. O próprio órgão fálico é notável pela sua potência, sempre limitada pela detumescência. O falo inscreve, portanto, simbolicamente a limitação da satisfação, do gozo possível. “A libido é masculina”, sustenta Freud, “porque é marcada pela castração”.

Portanto, constatamos uma igualdade dos dois sexos frente à possibilidade de satisfação limitada da sexualidade. Tal capacidade de satisfação unissex marcada e proporcionada pela castração, é chamada por Lacan de “gozo fálico”, a partir da primazia do falo observado por Freud. Esse “gozo fálico” é próprio do ser humano que, ao veredicto da castração “menos!”, responde “mais!”. Sempre querer mais, mais um pouco, em substituição da satisfação absoluta, é uma condição das aquisições infinitas da civilização (é o destino pulsional chamado sublimação). Mas será que essa igualdade simbólica acaba com a diferença e a heterossexualidade, como às vezes parece confirmar o mundo contemporâneo e sua produção em série de seres unissex?

Na configuração falocêntrica, sem cartilha nem palavra de ordem para identificar o universal da feminilidade, quais são os recursos, as escolhas possíveis propriamente “femininas”, para que um ser humano ocupe uma posição de uma mulher (e isso independente de seu sexo biológico)?

Se o homem manifesta sua virilidade com a potência da ereção e todas as derivações possíveis do poder e do ter que seus aparatos e paradas lhe permitem acumular, a mulher entra nesse jogo com as mesmas prerrogativas. A mulher entra igualmente no jogo, ainda mais nos dias de hoje, acrescentando ainda a maternidade e seus possíveis, a essa série fálica diversificada de “mais-de-gozar,” que intenta completar a falta fálica primeira (que condiciona tanto homens quanto mulheres).

Por outro lado, pelo fato inicial das particularidades das condições anatômicas do encontro sexual, a posição feminina precisa se moldar às condições fisiológicas do desejo masculino. Isso dá, forçosamente para a mulher, uma posição de “objeto do desejo”, enquanto o homem é requisitado a comparecer na posição de desejante. N esse sentido podemos concordar com Freud quando diz que “A anatomia é o destino”. Se o homem deseja, a partir de sua falta, a mulher nesse jogo complementar dos sexos pode (ou não), se fazer de objeto que falta ao homem.

A “mascarada” feminina consiste em todos os cuidados ditos “femininos” para disfarçar, encobrir a sua falta fálica, como se, não tendo o falo, ela pudesse encobrir a falta numa fetichização de seu corpo, velando a falta e apelando para o desejo como complemento do masculino.

Constatemos desde já uma maneira interessante de “positivar” a suposta deficiência feminina, embora essa posição tenha atraído os (des)qualificativos de submissa, até masoquista, passiva e enganadora. Quando a mulher não puder, ou não quiser jogar esse jogo, consentindo em se fazer objeto, resta-lhe a posição dita histérica: aquela que se faz de homem por não consentir ocupar o papel de submissa.

Igual, por um lado, pois desejante e castrada como um homem, incluindo aí a sedução e a maternidade; dependente, por outro, na posição de complementação do masculino: o feminino que se procura, não se encontra a não ser sempre referenciado e relativo ao masculino.

Todos iguais então?

Se fosse mesmo assim, todos iguais, uns embaixo, outros em cima e podendo trocar de posições para fazer diversão nessa mesmice, não deveria haver tantos problemas na sexualidade. Por que, então, tantos desencontros, insatisfações, devastações, e outros tipos de maldições da sexualidade das quais ouvimos falar na clínica? Apesar da aparente equiparidade e complementaridade dos dois pólos masculinos e femininos, não há encaixe. Pela via da clínica psicanalítica, cotidianamente, e também da literatura, ocasionalmente, temos notícias de algo radicalmente “hetero” nessa sexualidade, algo descabido, desobediente a essa lei fálica, “um gozo suplementar” – diria Lacan (1972-, 1973, p. 68) –, que nada deve, nem completa, nem compete com o masculino, um gozo que não cabe nas medidas fálicas.

Mas, então, como falar do feminino? Vamos mais uma vez ficar sem palavras, já que os discursos, as teses e as teorias não conseguiram abraçar o essencial feminino, deixando para sempre amaldiçoado esse “continente negro”? Ora, para se responder a tais questões é preciso voltar a explorar “as experiências de cada um e nas letras do poeta” como sugere Freud.

 

3. O feminino nas letras dos poetas

a. A figura mitológica de Tirésias (Grimal, 1982, p. 459) nos dá um bom exemplo do valor da experiência e das medidas que tentou extrair dela, pois teve a oportunidade de fazer a dupla experiência: – sete anos homem, sete anos mulher –, Zeus e Hera, numa briga do casal, querendo medir qual dos dois gozava mais na cama, tiveram a ideia de chamar Tirésias para testemunhar a diferença essencial. Este tentou medir a diferença e respondeu aos deuses: a mulher goza nove vezes mais. Hera, furiosa por ele haver traído o mistério feminino divulgando essa tal medida, condenou-o à cegueira, e Zeus, em compensação, deu-lhe o dom da profecia e o privilégio de viver sete gerações.

O feminino é algo que não cabe nas medidas, que fundamentalmente escapa à tentativa de posse do homem. A conclusão freudiana a respeito do continente negro não é uma declaração de ignorância. Antes, representa a designação dessa dimensão que aponta para um gozo não limitado pela lei fálica da castração, a dimensão de um gozo “suplementar” e não complementar, condição do futuro do homem e da humanidade, que depende da inclusão da alteridade radical presentificada pela mulher, ou seja, da hetero sexualidade feminina.

b. Um exemplo bem conhecido é o filme De olhos bem fechados, última obra do cineasta americano Stanley Kubrick (1999).

Alice (Nicole Kidman) e dr. William Harford (Tom Cruise) representam um “casal 20”, unissex, bem-sucedido, até que, por um triz, pela brecha de um olhar que deriva e devaneia no acostamento da vida do casal, abre-se a capacidade feminina de Alice. Foi um “quase nada” a sua desobediência a essa lógica fálica unissex: a captura por um instante do olhar de um outro homem sem relevância. Mas vimos na tela como o personagem de Tom Cruise, desestabilizado, assombrado pelo vislumbre dessa outra dimensão impensável de gozo (um olhar, uma fresta, uma sombra, um deslumbramento fantasiado) fuça e busca desesperadamente no baú das fantasias eróticas masculinas, algo que possa aproximá-lo dessa mulher. Uma mulher que soube, no filme, no fim, fazê-lo aceder a essa dimensão incomum através de um laço social: o amor assim renovado pela alteridade, heteros, heteridade3 essa dimensão feminina.

c. Poderia também tomar exemplos nos textos de Virginia Woolf, Clarice Lispector, Marguerite Duras e tantos outros para evidenciar essa dimensão que escapa ao entendimento, ao pensar e às medidas fálicas de tudo ou nada.

Destacamos especialmente Marguerite Duras, pois sua obra é uma tentativa insistente de tecer e fazer texto com os fios dispersos da dimensão do “heteros” que, por tantas vezes, borda e transborda a narrativa como loucura, paixão, morte. Cito um trecho de seu livro A doença da morte (Duras, 1982, p. 39-52), no qual um personagem masculino, anônimo, paga uma mulher para que ela permaneça à sua disposição, a fim de poder desvendar o seu mistério:

Elle sera toujours prête, consentante ou non. C’est sur ce point précis que vous ne saurez jamais rien. Elle est plus mystérieuse que toutes les évidences extérieures connues jusque là de vous (…) …(...) vous regardez, la fente, les lèvres et ce qui l’entoure, le corps entier, vous ne voyez rien. vous demandez comment le sentiment d’amour pourrait survenir. Elle vous répond: peut-être d’une faille soudaine dans la logique de l’univers. Elle dit par exemple d’une erreur. Elle dit, jamais un vouloir (Duras, 1982, p. 39-52)4

Feminilidades nas letras dos poetas: A graça e o olhar desvanecente de N icole Kidman, a fluidez de Virginia Woolf e seus “de repente” abismáticos, o grito embutido nos silêncios de Duras…, uma mulher em duas, de nome impronunciável, da mulher às avessas (Stessa) do conto de Lya Luft (2008, p. 95-100) e os excessos da excêntrica, extravagante, exorbitante Hilda Hilst.

 

4. Acesso à desmedida feminina nos excessos de Hilda Hilst

A partir de quais traços e rastros da sua letra, Hilda Hilst (1977a) poderia caber nessa sequência, como texto exemplar do feminino?

Te cuspir na cara, uma bofetada, um soco, tudo melhor do que a palavra (…) todos Kleinekus repetindo que estou morto quando isso seria o inexprimível, mas o mais significante de todos os meus atos (…) Estou em agonia, mas não vou morrer (…) devo morar no silêncio, mas o de mim calado corre para ti, expressa-se em atos, e que atos os teus... (Hilst, 1977, p. 29-30)

Leo Gilson Ribeiro comenta, assim, o estilo de Hilda Hilst – “a sua escritura é uma subversão”, o seu estilo é essencialmente feminino, acrescentaria.

A linguagem tem um papel encantatório, de aplacar a fúria do conhecer, de romper os limites do apreensível pelo humano para chafurdar no Absoluto, uma densidade que atinge propositalmente o paroxismo do delírio, da vertigem (…). É uma constante a equiparação do prosaico e do banal com as mais transcendentes preocupações filosóficas do ser humano. Ela reúne as duas Eskatologos – a doutrina final do tempo e a do skatologos, a doutrina que disserta sobre as fezes. (Hilst, 1977b)

Eliane Robert Moraes (1999, p. 114), em “Da medida estilhaçada” (p. 114), oferecenos uma abordagem precisa e preciosa de sua narrativa e nota como “Fluxo” (Hilst, 1977b, p. 183-217) trança as “três figuras fundamentais do imaginário literário de Hilda Hilst: o desamparo humano, o ideal do sublime, e a bestialidade”.

Diria mais precisamente que, com suas palavras desmedidas, surpreendentes, com a sua linguagem encantatória e encantadora que ressoa quase como uma prece, a obscena Senhora Hilst nos permite alcançar as medidas estilhaçadas do feminino. Uma “alguémmulher” que faz ex-sistir o estilhaço do feminino no texto e não apenas no subtexto.

(...) há uma desastrada lembrança de mim mesma, alguém-mulher querendo compreender a penumbra, a crueldade. (Hilst, 1986, p. 63)

Corpo, humana, dor, derrileção, a morte… e Deus que não responde. Deus não responde, mas permanece o interlocutor dessa experiência quase mística de amor, o hetero incorporado: corpo, cuspe, silêncio, caretas, trapalhadas, solidão, carne, sangue, luz, peito, peido, doçura, súplica, gargalhada: “dou gargalhada porque lá em cima é oco” (Hilts, 1977, p. 129).

O feminino presente na obra de Hilda Hilst não é o que completa o homem, é o que o des-completa e, assim, preservando esse lugar impensável embora tangível do ser, salva a sua humanidade. Como disse Aragon (2002), “la femme est l’avenir de l’homme”.

 

Referências

Aragon, L. (1963/2002). Le fou d’Elsa. Paris: Gallimard.

Duras, M. (1982). La maladie de la mort. Paris: Les Éditions de Minuit.        [ Links ]

Grimal, P. (1982). Dictionnaire de la Mythologie grecque et romaine. Paris: Presses Universitaires de France.        [ Links ]

Freud, S. (1971). La féminité. In Nouvelles Conférences de psychanalyse. Paris: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1936)        [ Links ]

Hilst, H. (1977a). Um cálido in extremis. Ficções. São Paulo: Quirón.        [ Links ]

Hilst, H. (1977b). Apresentação. Ficções. São Paulo: Quirón.        [ Links ]

_____ (1986). A obscena senhora D. In Com meus olhos de cão e outras novelas. São Paulo: Brasiliense.        [ Links ]

_____ (2004). Do desejo. São Paulo: Globo.        [ Links ]

_____ (2007). O caderno rosa de Lori Lamby. São Paulo: Globo.        [ Links ]

Lacan, J. (1975). Encore – Séminaire XX. Paris: Éditions du Seuil. (Trabalho original publicado em 1972- 1973)        [ Links ]

Luft, L. (2008). Uma em duas. O silêncio dos amantes. Rio de Janeiro: Record. (Trabalho original publicado em 1999)        [ Links ]

Moraes, E. R. (1999). Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Dominique Touchon Fingermann
Escola de Psicanálise do Campo Lacaniano
Travessa Alonso, 30 –Vila Madalena
05436-060 São Paulo, SP
E-mail: dfingermann@terra.com.br

Recebido em: 24.11.2008
Aceito em: 19.12.2008

 

 

1 Palestra realizada em agosto de 2008, dentro do ciclo de debates “Psicanálise & Literatura” do Centro Cultural Banco do Brasil (SP). Título da mesa: Literatura, Psicanálise e Feminilidade, com a participação de Lya Luft.
2 Psicóloga-DESS Psicologia Clínica Universidade Aix-Marseille. Analista membro da Escola de Psicanálise do Campo Lacaniano. Autora de Por causa do pior, São Paulo: Illuminuras, 2005.
3 Neologismo criado por Lacan, condensando “alteridade” e “heteros”. Conferir Seminário de Dissolução (15/05/80).
4 [...] Ela estará sempre pronta, condescendente ou não. É certo que sobre este ponto preciso você nunca saberá nada. Ela é sempre mais misteriosa que todas as evidências exteriores por você conhecidas até então... Você olha, a fenda, os lábios e aquilo que a cerca, o corpo inteiro e não vê nada... você pergunta como o sentimento de amor pode sobrevir. Ela lhe responde: talvez de uma falha repentina na lógica do universo. Ela diz, por exemplo, de um erro. Ela diz, nunca um querer...

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