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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.42 n.4 São Paulo dez. 2008

 

INTERCÂMBIO

 

O divino gozo: o narcisismo feminino e os místicos1

 

El divino goce: el narcisismo femenino y los místicos

 

Divine jouissance: feminine narcissism and mystics

 

 

Juan Eduardo Tesone2

Sociedade Psicanalítica de Paris
Associação Psicanalítica Argentina

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O discurso dos místicos apresenta-se repleto de paradoxos. O místico paga o preço do desapego a si mesmo, vivendo somente através do brilho do objeto, esplendor que o ilumina... ocultando, tão somente, o prazer carnal do êxtase. Portando, o místico goza... sem temor do pecado, nem de reprimendas, protegido de qualquer olhar em seu reduto monástico. Por acaso o discurso dos místicos mostraria, velado pela legitimação religiosa, o gozo suplementar da mulher que de outra maneira não poderia ser narrado, pois poderia correr o mesmo risco e ter o destino que Tiresias?.

Palavras-chave: Amor; Místico; Narcisismo; Feminino; Gozo; Divino.


RESUMEN

El discurso de los místicos está lleno de paradojas. El místico paga el precio del desapego de Sí, sólo vive por el fulgor del objeto, esplendor que ilumina... ocultando (apenas) el placer carnal del éxtasis. Pues el místico goza... sin atisbo de pecado ni de reproches, protegido de cualquier mirada, en su reducto monástico. ¿Acaso el discurso de los místicos mostraría, velado por la legitimación religiosa, el goce suplementario de la mujer, de otra manera inenarrable so pena de padecer la misma suerte que Tiresias?.

Palabras clave: Amor; Místico; Narcisismo; Femenino; Goce; Divino.


ABSTRACT

The discours of mystics point to a huge paradox. Mystics pay the price of being dispossessed of the Self. They live only through the emanation of the object, and are illuminated by its blaze...which (scarcely) veils the bodily pleasure of their ecstasy. Mysthics thus experience jouissance... without sin and without reproach, sheltered from view in the confiness of the monastery. Might we not perhaps consider that the discours of mystics in fact points to the supplementary jouissance of woman, veiled by religious legitimacy and otherwise inexpressible, at the risk of succumbing to the same fate as Tiresias ?.

Keywords: Love; Mystic; Narcissism; Feminine; Jouissance; Divine.


 

 

O que quer a mulher? A pergunta é de Freud quando faz a comparação desta ao continente negro inexplorado, enigma que ele teve tanto cuidado em não nos revelar, isto supondo-se que ele tenha, de fato, sabido algo a respeito.

Resolver enigmas nunca trouxe sorte àqueles infelizes que foram tragados por esse afazer, seja Édipo diante da Esfinge, seja Tirésias diante de Hera. Antes de tornar-se adivinho, Tirésias teria sido mulher. Pelo menos por certo tempo, ele teria vivido num corpo de mulher por ter batido, ou matado (em todo caso, teria separado) duas serpentes que copulavam. Depois, tendo atacado novamente um casal de serpentes, voltou a ser homem. Pelo fato de ter passado pelo feminino teria então guardado a experiência dos dois sexos.

Ora, um dia Zeus, ao discutir com Hera afirmando que durante o ato sexual a mulher desfrutaria de maior prazer do que o homem – enquanto Hera sustentava o contrário –, decidiram então consultar Tirésias que afinal de contas tinha conhecido tanto as condições de homem como as de mulher. Colocada a questão, ele responde que se houvessem dez partes de prazer o homem gozaria apenas uma vez enquanto a mulher gozaria nove vezes. A partir disso, Hera, furiosa, cegou Tirésias e Zeus, satisfeito com a resposta de Tirésias, transformou-o em adivinho.

Nicole Lorraux (1989) sublinha que, decididamente, os segredos femininos devem ficar muito bem guardados. Os olhos cegos do tebano mostram que ele não tem mais a necessidade de ver… porque ele sabe. Mas ele teve que pagar um preço muito elevado por ter valorizado o gozo feminino.

Classicamente, o feminino é culturalmente mais ligado ao sofrimento ou a bela indiferença do que ao gozo. Sejam as dores do parto, as regras, a frigidez da histérica ou o masoquismo, todos são chamados de feminino.

Lacan, quer estejamos de acordo ou não, teve o mérito de subverter esse lugar-comum chegando mesmo a afirmar que a mulher, em relação ao que ela designa de gozo na função fálica, tem um “gozo suplementar”, aproximando-se talvez da idéia de Tirésias. Diz ele: “Creio no gozo da mulher porque ele é a mais”. E ele assinala esse gozo, de maneira mais evidente, nos excessos dos místicos. Gozo cuja expressão no êxtase de Santa Teresa, na estátua de Bernini, na igreja de Santa Maria da Vitória, em Roma, é um exemplo paradigmático. Mas mesmo assim é necessário que esse gozo seja velado, até mesmo para a santa: “é claro que o testemunho essencial dos místicos é justamente dizer que eles sentem, mas que não têm conhecimento nenhum a esse respeito” (Lacan, 1975).

Como lembra Marie-Christine Laznik (1990): para Lacan a sexualização depende da relação que os sujeitos humanos mantêm em relação à questão fálica e o que visam em seu desejo. Para Lacan o sexo real não é determinante para a constituição de um sujeito, e sim de que lado virá a ocupar na fórmula. Esta afirmação de Lacan, apesar de estar longe de ser evidente, até mesmo contestável, apresenta pelo menos o interesse de sublinhar que o feminino pode ser, acima de tudo, uma posição não necessariamente ligada ao sexo anatômico. E ele afirma que São João da Cruz se colocava a si próprio ao lado do feminino.

Enfim, não escrevia ele ao “gênero feminino” à medida que a simbólica nupcial (símbolo) torna feminino o discurso? Essa feminilidade vista por Freud como a “rocha da origem” está presente nos dois sexos. Apesar de que, como assinala Christian David (1992), a bissexualidade do homem não é simétrica à da mulher.

Os discursos dos místicos se desdobram em pleno paradoxo. Desde seu narcisismo todo-poderoso, eles procuram tornar Um por maior que seja, ou no voltar-se sobre si mesmo ou num élan fusional. Numa relação especular buscam a completude narcísica estando simultaneamente num desfazimento de si que os excentriza de si mesmos. Santa Tereza de Ávila (1997) inicia assim um de seus poemas: “Eu vivo, mas sem viver em mim mesma”.

Vuestra soy, pues me criastes,
vuestra, pues me redimiste,
vuestra, pues que me sufristes,
vuestra, pues que llamaste,
vuestra porque me esperastes,
vuestra, pues no me perdi:
¿que mandais de mi?

Como assinala Didier Anzieu (1980) o núcleo do ser não se encontra mais no centro de si mesmo, mas em sua periferia, lá onde Deus o envolve.

Poderá Deus ser uma escolha de objeto? Sim, como sublinha Bernard Brusset em seu relatório onde, de acordo com Winnicott, toda eleição de objeto é de um objeto criadoencontrado. Deus não pode ser um objeto apesar de grandioso, pois não há margem para criá-lo. Ele É, e nesse ponto ele não pode nem ser nomeado pelos humanos.

Ele é aquilo que É.

De mais a mais, podemos notar a qualidade de objeto subjetivo, narcísico, que implica tal escolha. No amor místico estamos em pleno sentimento oceânico do qual falava Freud em “Mal-estar na cultura”, aquele desejo de voltar a um estado anterior ao da distinção do eu/não-eu, o que caracteriza o narcisismo primário. Entretanto, Freud preferiu, antes, referir-se não ao maternal como primário, assim nos chama a atenção M. C. Laznik, mas sim à nostalgia do pai que dirige o sentimento de fazer Um com o grande Todo.

Nesta aproximação de Deus, o místico paga o preço de um desfazimento de si, de uma desubjetivação que o abole como sujeito. Ele vive apenas através do brilho do objeto, fulgurância que o ilumina… escondendo (apenas) o prazer carnal do êxtase. Este gozo é necessário, se não for desconhecido dele próprio, ficar pelo menos desconhecido aos outros. E se esse véu cair, o gozo encontra-se legitimado na oblatividade religiosa.

Portanto o místico goza… sem qualquer pecado e reprimenda, ao abrigo de qualquer olhar, no cercado monástico. O eu narcísico ligado ao narcisismo de morte, diz Green (1983), deve lutar ao mesmo tempo contra suas pulsões e contra o objeto, ambos sempre traumáticos. Diante deste combate onde o narcisista não se dá conta, escolhe voltar-se sobre si mesmo narcisicamente, isolamento fantástico, enganoso. Ele busca o aniquilamento do desejo, a neutralidade, e a colocação à distância do objeto.

O místico em pleno estado paradoxal recalca as pulsões através de uma perversidade afetiva que evita a satisfação direta das pulsões, mas não as renuncia. Quanto ao objeto, ele não o rejeita, não o coloca à distância; entra em uma relação especular na qual o olhar atribuído a Deus o torna divino confirmando sua onipotência narcísica. Unido a Deus, assinala Anzieu, o místico participa da criação divina e a continua. Na união mística, a alma inteira torna-se outro “a amada transformada em o amado (São João da Cruz)”.

A carga libidinal apresenta-se fortemente genitalizada: Jesus Cristo é o esposo divino, a igreja sua esposa. Esta recarga libidinal dota o místico “de uma energia excepcional que lhe permite encarar a solidão, as intempéries, o deserto, as perseguições ou de se consagrar à fundação de múltiplas confrarias ou mosteiros. Mas uma vivência de plenitude requer a conjunção de dois elementos: a superabundância libidinal e o acesso a um sentimento de Si primário e sem limites” (Anzieu, 1980). Paradoxo de reencontrar o completo no extremo vazio.

Bataille (1957) nos lembra que os seres humanos são seres descontínuos, que entre um ser e outro há um abismo, uma descontinuidade. Esse autor define o erotismo como a tentativa de anular esta descontinuidade, “aquilo que está em jogo no erotismo é sempre a dissolução das formas constituídas. E ele coloca três formas de erotismo: o erotismo do corpo, o dos corações e o erotismo sagrado que de fato contêm todos os três. Esse erotismo divino ou sagrado consiste na busca do ser pleno, ilimitado que não limita mais a descontinuidade pessoal. E Bataille que sublinha que o que caracteriza a experiência mística é a ausência de objeto. E esta escolha não está desprovida de matar a subjetividade… movimento que ressalta a morte em jogo em toda procura erótica, aquilo que os místicos buscam até chegar ao paroxismo do êxtase:

Vivo sin vivir en mi
Y de tal manera espero
Que muero porque no muero.
(De la Croix)

O domínio do erotismo, nos diz Bataille, é aquele da transgressão dos interditos, o desejo que triunfa sobre o interdito. Ele liga a experiência erótica à santidade sem, entretanto, fazer a equivalência entre uma e outra. O ponto de convergência entre elas é a intensidade.

Ora, entre os místicos há transgressões, principalmente de limites, e uma carga libidinal perceptível no gozo do êxtase. Mas a condição sagrada exige que o gozo fique encoberto em nome de ser maior que o si mesmo.

Santa Tereza dizia que “mesmo se o inferno quisesse devorá-la ela teria que perseverar”. Perseverar em quê?

Se não fosse o gozo assim sendo “divino” poderia ser mandada ao inferno. Gozo no sofrimento sempre associado por identificação à dor de Cristo crucificado. Trata-se, em todo caso, de fazer recuar sempre o limite que permita obter o gozo, aquele cuja prece e escalada nas moradas da alma de Santa Tereza é um belo exemplo. E, somente na sétima e última morada, ela acede à “comunhão-união”.

Rosolato (1980) propõe que o êxtase é uma transposição sublimada do gozo orgásmico sexual, que exalta toda a visão hierogâmica, como no Cântico dos Cânticos, num desdobramento narcísico de natureza simétrica. E ele cita El Halladj para melhor enfatizar essa relação em espelho: “o olho pelo qual você me vê é o olho através do qual eu te vejo”. Então, que aproximação poderíamos tentar estabelecer entre Tirésias, o gozo feminino, os místicos e a escolha de objeto?

Lavie (1980) nota que o místico tem o direito de não possuir este pudor comum que faz com que outros se escondam, e o que para os primeiros é fonte de gozo. Admite-se que Deus “santifica” tudo, ou que pelo menos pode-se fazer em Seu nome, o que de outra maneira não seria possível de forma impune. Deus seria um objeto-não objeto ligado a um sujeito que não será um, mas sim Um nesta comunhão-união, da qual falava Santa Teresa. Através deste desvio, o místico experimenta um afrouxamento subjetivo naquilo que ele vive, como se a carga libidinal lhe chegasse com toda inocência:

Entreme donde no supe
Y quedeme no sabiendo
Toda ciência trascendiendo3
Yo no supe donde estaba
Pero cuando alli me vi
Sin saber donde me estaba
Grandes cosas entendi
No diré lo que senti
Que me quedé no sabiendo

Como assinala Marie-Christine Hamon (1980), um léxico se impõe: “dilatação” oposto a “securas”, suavidade, favores, pedidos deliciosos, prazeres terrestres, “rapto”, “transportes”, o “vôo do espírito”, “feridas do amor”, “entre êxtase e suspensão” e os “tormentos saborosos”. O gozo refere-se explicitamente ao corpo: “… o corpo tem efetivamente sua parte nesta felicidade, nessas delícias, notadamente….” confessa Teresa D’Ávila. Ela particulariza ao extremo, assinala Hamon, as sensações: comoção, enrijecimento dos membros ou desarticulação de todo o corpo, enfraquecimento do pulso, perda de respiração, desfalecimentos, levitações, sem contar as imagens de liquefação ou de penetração (o trespassamento ou a transverberação).

Ao longo de séculos de dominação masculina, o gozo feminino nunca foi admitido, o que levou as histéricas, principais testemunhas desta intolerância, a pagarem um alto preço no fogo da Inquisição.

E se os discursos dos místicos mostram de maneira extrema, embora velados pela legitimação religiosa, o gozo suplementar da mulher, não narrado em outros tempos, não correria o risco de sofrer o mesmo destino de Tirésias?

 

Referências

Anzieu, D. (1980). Du code et du corps mystiques et de leurs paradoxes, NRP, 22.        [ Links ]

Loraux, N . (1989). Les expériences de Tirésias. Le féminin et L’homme grec. Paris: Gallimard.

Lacan, J. (1975). Le séminare Encore, Livre XX. Paris: Seuil.        [ Links ]

Laznik, M-C. (1990). La mise en place du concept de jouissance chez Lacan. RFP, Tome LIV.        [ Links ]

David, C. (1992). La bisexualité psychique. Paris: Payot.        [ Links ]

Sainte Teresa de Ávila (1997). El libro de la Vida. Obras completas. Burgos: Monte Carmelo.        [ Links ]

Green, A. (1983). Narcissisme de vie, narcissisme de mort. Paris: Minuit.        [ Links ]

Bataille, G. (1957). L’erotisme. Paris: Minuit.

Jean de la Croix. (S/D). Nuit Obscure.Cantique spirituel. Paris: Gallimard.        [ Links ]

Rosolato, G. (1980). Présente Mystique, NRP, 22.        [ Links ]

Lavie, J-C. (1980). Servir. NRP, 22.        [ Links ]

Hamon, M-C. (1980). Le sexe des mystiques. Ornicar? Champ freudien, 20-21.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Juan Eduardo Tesone
Sociedade Psicanalítica de Paris SPP e da Associação Psicanalítica Argentina APA
Teodoro García 2475 - 3º “B”
1426 Buenos Aires
E-mail: jetesone@speedy.com.br

Recebido em: 13.10.2008
Aceito em: 14.10.2008

 

 

1 Tradução de Eliana Rache, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.
2 Membro da Sociedade Psicanalítica de Paris SPP e da Associação Psicanalítica Argentina APA.
3 Jean de la Croix “Faits sur ene êxtase de três haute contemplation”Nuit Obscure, Cantique spirituel, Gallimard. “Je suis entre ou ne savais et je suis resté ne sachant toute science dépassant” “Moi je n’ ai pás su ou j’entrais mais lorsque’em cet endroit me vis sans savoir ou je me trouvais de grandes choses j’ai compris point ne dirai ce qu’ai senti car je suis reste me sachamt toute science dépassant”.

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