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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.42 n.4 São Paulo dez. 2008

 

INTERCÂMBIO

 

Feminilidade primária – feminilidade estrutural1

 

Feminidad Primaria – feminidad estructural

 

Primal Femininity – structural femininity

 

 

Marian Alizade2

Associação Psicanalítica Argentina

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A feminilidade preliminar é a base dos primeiros movimentos e identificações sensuais. A mulher-mãe exercita com seu bebê o território de uma feminilidade passiva onde, segundo as palavras de Freud (1905, p. 792), ocorre “uma espécie de orgasmo”. Essa entrega preliminar é o primeiro esboço da feminilidade em todo ser humano. A rejeição ao feminino tem fortes raízes culturais. A quarta série complementar (Alizade, 2004) enfatiza a importância do fator sociocultural no caráter e no psiquismo. A feminilidade estrutural é a consequência da decantação do final do complexo de Édipo e constroi no psiquismo das mulheres, de um lado, o espaço “solo” e, de outro, o espaço não-mãe. Este artigo considera ambos os espaços e mostra suas consequências no desenvolvimento psíquico e na saúde mental das mulheres.

Palavras-chave: Feminilidade estrutural; Complexo de Édipo; Espaço não-mãe; Espaço “solo”; Quarta série complementar.


RESUMEN

La feminidad primaria es la base de los primeros movimientos sensuales e identificaciones. La mujer-madre ejercita con su hijo el territorio de una feminidad pasiva, donde se juega lo que Freud denominó en 1905 (p. 792), “una especie de orgasmo”. Esta entrega primaria es el primer esbozo de feminidad en todo ser humano. El rechazo a lo femenino tiene fuertes raíces culturales. La cuarta serie complementaria (Alizade, 2004) resalta la importancia del factor sociocultural en el psiquismo. La feminidad estructural es la consecuencia de la decantación del final del complejo de Edipo y construye en la psique de las mujeres por una parte el espacio solo y, por otra, el espacio no-madre. El trabajo desarrolla ambos espacios y muestra sus consecuencias psíquicas en el desarrollo y salud mental de las mujeres.

Palabras clave: Feminidad estructural; Complejo de edipo; Espacio no-madre; Espacio sólo; Cuarta serie complementaria.


ABSTRACT

Primal femininity undergrounds the first sensual identifications and dynamics.The mother develops with her-his child a special passive femininity where, following Freud´s words (1905- p. 792) takes place “a kind of orgasm”. This primal surrender is the first outline of femininity in every human being. Rejection of femininity has strong cultural roots. The fourth complemental serie (Alizade, 2004) stresses the importance of cultural factors in the psyche. Structural femininity is the consequence of the end of the Oedipus complex and builds up in women psyche both, the lone psychic space and the non-maternal psychic space. This paper considers both spaces and shows its effects in women development and mental health.

Keywords: Structural femininity; Oedipus complex; Non-maternal psychic space; Lone psychic space; Fourth complemental serie.


 

 

Introdução

Neste trabalho retomo e sintetizo várias linhas de pensamento que têm sido objeto de trabalhos anteriores. Aqui, porém, pretendo centrar-me na passagem da feminilidade primária para a feminilidade estrutural. Esta proposição teórico-clínica foi esboçada a partir da observação de pacientes e transformou-se na proposta de um final do complexo de Édipo nas mulheres (Alizade, 1992, 2003, 2008b).

Em primeiro lugar, para os objetivos de minha exposição, considero importante distinguir os termos “posição psicossexual” e “função”.

Posição refere-se ao predomínio de uma determinada constelação psíquica. Homens e mulheres deslizam, em diferentes circunstâncias da vida, por distintas posições psicossexuais, tais como: feminilidade, masculinidade, bissexualidade, maternidade, paternidade, falicismo e outras.

Essas posições e suas respectivas funções foram objeto de inúmeras especulações psicanalíticas, tanto teóricas quanto clínicas. A posição é estática, enquanto a função é móvel e dinâmica. A função é a aplicação da posição psicossexual a uma área específica.

Ainda que sejamos todos bissexuais, em termos gerais as mulheres se encaminham para o exercício da função feminina e materna, e os homens para as funções masculinas e paternas.

A posição fálica abre um grande capítulo na psicanálise. O falo, ligado imaginativamente ao pênis, encarna ao mesmo tempo a falta e o todo-poder. É utilizado por todos os humanos, qualquer que seja o sexo, como um paliativo tanto imaginário quanto simbólico frente às ansiedades de finitude e o desamparo inerentes a todo vivente.

 

A feminilidade primária

A feminilidade primária (Alizade, 1992, Aslan, 1999) constitui a base dos primeiros movimentos sensuais e de identificações. Essa feminilidade, comum aos dois sexos, é desenvolvida no contato primário de intimidade entre a mãe (ou cuidador substituto) e seu bebê. A mulher-mãe exercita, no contato com seu filho, o território de uma feminilidade passiva, onde acontece o que Freud denominou em 1905 uma “espécie de orgasmo” (p. 792). Ele se referia à sucção produtora de prazer que leva ao adormecimento e a uma reação motora que comparava ao orgasmo. Essa entrega, por parte do bebê, pode ser entendida como o primeiro esboço de feminilidade em todo ser humano.

A feminilidade fica associada à ideia de vulnerabilidade e apoio em um semelhante. É um conceito vincular.

As mulheres, quando em posição feminina, exteriorizam o apego ao corpo do outro (corpo materno primário e seus substitutos metonímicos). No apego se interligam várias pulsões em distintas proporções: a pulsão de apego, a de domínio, a de agarramento, a de autoconservação, e a pulsão sexual.

Em 1937 Freud enuncia que a pedra fundamental para ambos os sexos é a recusa da feminilidade. A inveja do pênis, nas mulheres, não seria mais do que um anseio de não ser femininas e, portanto, a expressão de um rechaço veemente a tudo que supostamente seria mais fraco e menos potente. A ideia da maternidade, estreitamente associada a ela, ainda que possua um matiz de idealização (mãe fálica), não impede o despertar de um temor oculto, devido aos riscos físicos inerentes aos processos fisiológicos da gravidez e do parto. A feminilidade que é rechaçada é a feminilidade primária, fantasiada e pensada como um fator de decadência, fraqueza e enfermidade.

A inveja do pênis tem sua contraparte no menino, a saber, a inveja do ventre fértil das mulheres e sua capacidade de gozo. Horney (1932, p. 133-134) assinala que todo homem já sentiu, quando criança, o desejo de ser mulher e, assim, sentiu-se ferido em seu narcisismo. Esse sofrimento narcísico é posteriormente compensado com a retirada da libido dos objetos externos e a sobrecarga libidinal dos genitais, com suas consequências psíquicas. A vulnerabilidade dos homens oculta-se frequentemente sob a ideologia patriarcal. Seu desejo de ser mulher é mais frequente do que o desejo das mulheres de serem homens. Isto explica a superioridade numérica de transexuais e travestis, homens que buscam criar um corpo de mulher em seus próprios corpos (Alizade, 2007b). Neste ponto cabe destacar que seu objeto de inveja é a maternidade falicizada (imago da mãe fálica), considerada todopoderosa. O mesmo não ocorre com a feminilidade, que persiste como atributo grandemente denegrido e reprimido. Quem desejaria encarnar o feminino quando desvalorizado, e inclusive menosprezado? Quem desejaria ocupar o lugar do não-poder e de tão pouca importância? O feminino pareceria ficar excluído do universo fálico e a menina, segundo Freud, ao tornar-se mulher deverá abandonar a masturbação clitoridiana (fálica) a fim de reprimir sua masculinidade e embrenhar-se na feminilidade (Freud, 1925, p. 488-489). Os restos de atividade fálica da menina se manifestariam como persistência da masturbação clitoridiana. Pode-se observar nestas ideias de Freud a influência da ideologia patriarcal e do estereótipo de mulher que prevalecia nos inícios do século XIX: um ser dócil e passivo.

Cournut, M. (1998) diferenciou os termos masculino e feminino. Feminino se adequaria mais à ideia de feminilidade primária, temida e recusada. A feminilidade, ao contrário, estaria constituída pela máscara histérica e aparência ornamental das mulheres.

Para essa autora, nesse trabalho, feminilidade ganha o sentido de feminino. Encarna o imaginário do não-poder, da inermidade (sem defesas) e do perigo no contato com o fraco e com o perecível.

O excesso de feminilidade primária produz patologias do apego e da alteridade, e é fonte de díades mortíferas, simbioses conjugais e fraternas, e desejos peremptórios e desesperados de possuir um outro protetor, além de terror à solidão.

Encontramos no rechaço ao feminino fortes raízes culturais. Introduzi o termo “quarta série complementar” com a finalidade de ressaltar a importância do fator sociocultural (Alizade, 2004). A quarta série é o reservatório dos mandatos da cultura tramitados pelo meio ambiente, pela família e pela linhagem transgeracional. Não é um fator circunstancial na produção de patologias, mas sim um elemento que contribui para a estruturação psíquica. A sociedade e a cultura estão cotidianamente presentes nas normas familiares, escolares, universitárias e desportivas. As instituições encontram um espaço psíquico e se internalizam. A suposta liberdade de ser é emoldurada em um quadro que oscila entre o imperceptível e a percepção consciente, onde habita a obediência instaurada no id e no superego. Ideais e fantasias são governados por ideias e desejos que pertencem às circunstâncias socioculturais de cada ser humano e de cada grupo familiar.

Usos e hábitos de pensamento se inserem na intimidade das representações e dos afetos.

Integrar o fator cultural como série complementar exige a inclusão da psicossexualidade na intimidade do tecido sociocultural da psicanálise, sem, entretanto, que ela perca sua especificidade. Exige redimensionar a leitura linear causal das séries complementares para inseri-las em movimentos inter-relacionados de influência recíproca e de multicausalidade concêntrica (Bleger, 1963, p. 116-118).

A feminilidade primária se prolonga nas meninas na situação pré-edipiana exaustivamente estudada por Freud (1925, 1931), e se evidencia claramente nas crenças sobre ”como deve ser um ser feminino”. Estas crenças desembocam em hábitos educacionais em que predominam ordens culturais de suavidade, ternura, fraqueza, submissão, e expectativa de futura maternidade.

O manuscrito G (1895), de Freud, nos mostra a intervenção dos ideais culturais e sua transmissão no que diz respeito à forma que a ideia do feminino toma em determinado tempo histórico e respectiva cultura.

Recordemos algumas frases do Manuscrito citado: “Cabe perguntar por que a anestesia é característica tão predominante nas mulheres. Isso se deve ao papel passivo que ela desempenha, pois um homem anestesiado logo renunciaria a toda tentativa de relação sexual, enquanto a mulher não tem escolha possível, já que não é consultada”. A seguir, Freud destaca que a educação exige que ela “renuncie ao arco da reação específica e que adote ações específicas permanentes destinadas a induzir a ação específica no indivíduo masculino” (p. 134). “A debilidade da carne feminina, sua participação na ocupação de dar vida e dar morte, atravessada pelas aventuras da maternidade, contribuíram para que ficasse inscrita sobre a palavra ‘feminino’ a ordem do vulnerável, do inferior, do denegrido e das incógnitas”. O temor à morte, trauma universal de nossa cultura, exacerbou o imaginário social na vinculação de atributos perigosos à ideia de feminilidade (Alizade, 2007a). O fraco incita a dominação, quando não a brutalidade.

A ideia de feminilidade nas mulheres está associada às seguintes circunstâncias de vulnerabilidade:

a) corpo com menos força muscular do que o dos homens;

b) corpo aberto, entendido como um corpo facilmente penetrável (Alizade, 1999), cuja intimidade erógena é de fácil acesso. A força viril agressiva encontraria as mulheres inermes ao exercer a penetração forçada (violências de estupro);

c) corpo duplo na gravidez (Alizade, 1999, p. 136). A gestação absorve energias, exige dedicação e possui uma quantidade inexorável de risco físico. A ideia de gestação tem um matiz idílico e um matiz trágico;

d) fragilidade psíquica, que é resultante da educação feminilizante patogênica. A representação-expectativa frente ao menino ou ao homem costuma ser de fragilidade corporal e inferioridade. Quando predomina a educação para a passividade e a exaltação patogênica geradora de dependência, e também a idealização e inveja excessivas, a violência mental é mobilizada. A menina precocemente se submete a uma aprendizagem que exacerba o cultivo de sentimentos de menos valia e de culpa (menina má, menina bruxa);

e) violência cultural devida a uma falsa leitura da diferença sexual que fixa papéis subordinados e de exclusão. A violência cultural exercida sobre as mulheres implica o exercício da violência de autoridade e violência de lei.

 

III. A feminilidade estrutural e o término do complexo de Édipo nas mulheres

As mulheres, em seu desenvolvimento, se deslocam da feminilidade primária para a feminilidade estrutural. Esta é consequência da decantação do final do complexo de Édipo. A instalação da feminilidade estrutural constrói no psiquismo das mulheres tanto o espaço solo, como o espaço não-mãe.

Segundo Freud (1924), o complexo de Édipo na menina ”...escapa ao destino que é concedido ao menino; ele pode ser abandonado pouco a pouco, tramitado por repressão, ou seus efeitos podem persistir por muito tempo na vida psíquica normal da mulher(...)Na menina falta o motivo para a demolição do complexo de Édipo”.

Afasto-me dos postulados de Freud ao propor este movimento psíquico. Tento lançar luz a uma zona obscura da teoria e clínica psicanalíticas. O final do complexo de Édipo na mulher é um acontecimento que requer certo amadurecimento psíquico e que tem uma lógica própria vinculada à positivização do “não”. É um tempo de afirmação e individuação.

Esse tempo psíquico instaura a individuação e a autonomia no mundo interno. Os conflitos adolescentes constituem uma combinação de restos pré-edípicos anteriores e componentes edípicos negativos. Logo ao final do complexo edípico acontece a reconciliação da jovem mulher com a figura materno-feminina.

A mulher acessa o naufrágio e a “queda dos dentes de leite”,3 figura empregada por Freud (1924) para se referir ao final do complexo de Édipo no menino. O ritmo e a modalidade diferem com o final do complexo de Édipo no menino. “(…) O complexo de Édipo no menino não é simplesmente reprimido; desintegra literalmente sob o impacto da ameaça de castração” (Freud, 1925, p. 490). A queda dos dentes de leite nas meninas durante a travessia edípica culmina em um ato de individuação, autonomia e liberdade.

O término do Édipo, nesse caso, não requer qualquer ameaça de castração – como é descrito nos meninos. O amadurecimento, as mudanças psicossociais, a elaboração das ansiedades de separação e a superação da rivalidade com o menino abrem portas para o acesso a um novo território psíquico.

Em um movimento cognitivo e criativo “a luva virada do avesso”4 (imagem da criatividade), e o “não ter” (pênis – poder fálico imaginário, força de menino – privilégios patriarcais) adquirem uma categoria trófica internalizada. O desprendimento dessa negatividade e o trabalho de positivização constroem um tecido mental saudável. Por trás do “não ter” aceito prazerosamente, é descoberto o “ser” desalienado da impregnação desiderativa identificatória masculina. Este “novo ato psíquico” modifica a estrutura da mulher feminina e é a origem da feminilidade estrutural. O NÃO positivizado tem importantes consequências psíquicas. À medida que a negação não afeta diretamente o objeto considerado, não ter pênis e seus derivados imaginários e simbólicos nada informam sobre o que as mulheres, sim, têm. O tempo de afirmação abre campo a novas equações do ter, distantes dos valores fálicos. As mulheres têm vazio cheio – interioridade fértil – virtualidade - sangue de vida (Alizade, 1992).

No nível objetal, a jovem se separa do pai, do marido, do filho, do amante, tendo superado as ansiedades de separação. Este processo de finalização do complexo de Édipo neutraliza a excessiva dependência e o sofrimento da espera, proposto por Schaeffer (2002, p. 40-41) em relação ao pênis, ao filho, ao casal e a seus substitutos.

As mulheres se detêm sobre si mesmas e se tomam como objeto em um tipo de desdobramento intrapsíquico que gera um refluxo narcisista sobre o ego e a construção do espaço solo. Essa reflexividade intrapsíquica incorpora uma identificação unificadora que abre as portas para sua plena individuação e autonomia interior. Cessa a expectativa ansiosa de ser dois, originada durante a etapa pré-edípica nos tempos do apego à mãe, e de ser dois construída na fantasia de conseguir um pênis-filho. As mulheres adquirem a certeza do Um, e conseguem a apropriação de si mesmas que as libera das alienações identificatórias.

A confirmação narcísica de seu valor permite-lhes reencontrar os objetos de amor a partir de uma ótica discriminada. Ganham acesso à plenitude de sua bissexualidade psíquica (integração dos elementos femininos e masculinos) e a seu potencial exogamizante. Regressam a seu objeto primário, a mãe, já sem hostilidade, e às mulheres de sua geração. Abre-se um espaço entremulheres de homossexualidade sublimada. No espelhar-se nas outras, buscam-se a si próprias, desligadas dos agarramentos objetais dependentes. O tempo de entremulheres inaugura uma especularização narcisista positiva. A capacidade de “estar consigo mesmas” se transforma em requisito indispensável no declínio e naufrágio do Édipo. Solidão trófica e feminilidade encontram um ponto de intersecção.

Em meu trabalho clínico tive oportunidade de observar o movimento anímico que, partindo do anseio vincular muitas vezes compulsivo, graças a um tipo de ato somatopsíquico novo, acaba levando à resolução das inseguranças afetivas, e as ansiedades de separação se acalmam. As mulheres, ao chegar ao porto da feminilidade estrutural, exercitam e desenvolvem uma parte psíquica somente para si, um self para si mesmas, um adeus simbólico à mãe e ao pai; ao pênis e ao falo, em um movimento de tipo desnarcisização positiva e libertadora. A inveja do pênis já não desempenha um papel predominantre. Abre-se outra dimensão mental, seguramente mais além do falo, expressão que parecia risível a Lacan (1972-73, p. 69). É um território alheio ao pênis-falo. A ordem feminina se instala graças ao desenvolvimento dessa zona psíquica, dando nascimento a um movimento de apropriação e desalienação que afasta os fantasmas de abandono, carência afetiva e dependência amorosa. As mulheres encontram um território próprio, não construído na base da inveja, mas sim na exploração e reconhecimento daquilo que têm e que são. É um movimento de afirmação, de reflexão e de autoconhecimento. Ao desligar-se parcialmente das invejas e alienações encontram e descobrem novas potencialidades psíquicas que estavam ocultas sob a conflitiva edípica aparentemente interminável.

As escolhas objetais se independizam da exigência de agarramento ao objeto, produto da fragilidade psíquica anterior à resolução de seu Édipo. Poderão escolher ou reescolher seus objetos de amor e de autoconservação.

A construção do espaço de solidão interior organiza o espaço psíquico não-mãe. Este, estabelece a distância entre a feminilidade e a maternidade (Alizade, 2006). A investigação e incorporação desse espaço não-mãe faz surgir inquietudes interessantes em relação aos conceitos de saúde mental ou enfermidade nas mulheres que não manifestam desejo de ter filhos, ou quando a expressão desse desejo é meramente formal para não destoar da expectativa social em função de mandatos superegóicos. Essa inquietude clínica vale tanto para as mulheres heterossexuais como para as homossexuais.

A não maternidade poderá ser sempre entendida a posteriori como patologia encoberta. A psicanálise poderá construir ou encontrar uma razão inconsciente que explique a não realização da maternidade, a partir de um conflito. Essa leitura retroativa frequentemente é fruto de uma ideia pré-concebida ou de um preconceito expressos pela equação: saúde = desejo de maternidade.

A feminilidade estrutural (Alizade, 2002) e o final do complexo de Édipo (Alizade, 1992, 1999) levam à consideração de zonas psíquicas não necessariamente maternas nas mulheres. Ao lado da necessidade de apego, da dependência, da necessidade do outro, de DARSE CUERPO muitas vezes compulsivamente(Alizade, 1992, p. 69-78), postulo esta outra corrente psíquica em que predominam a autonomia, a apropriação de si, a liberdade interior, o desapego objetal e a necessidade de si mesma. Ambas as correntes aparecem em maior ou menor grau nas mulheres e influenciam a prioridade que outorgarão ao acontecimento materno.

Na corrente de apego se expressam os restos pré-edípicos, cuja intensidade foi descrita por numerosos autores; na corrente de desprendimento expressa-se a resolução do Édipo e o exercício da liberdade pós-edípica.

Devido ao previamente exposto, a patologia e a saúde mental se manifestam, nas mulheres, independentemente do anseio de realização materna. A maternidade pode apresentar- se também de forma sublimada: mulheres que deslocam seu anseio maternal para filhos alheios, ou que projetam a função “filho” em suas tarefas profissionais, ou nas amizades, ou no marido. Denominei “maternidade social” (Alizade, 1999, p. 183) ao exercício sublimado da maternidade no âmbito da sociedade e da cultura. A função materna se manifesta e atos solidários de cuidado e preocupação pelo semelhante. Pode ser exercida tanto por mulheres como por homens e implica o estabelecimento de movimentos narcísicos de transcendência e transformação (Narcisismo terciário, Alizade, 1995, cap. 5).

A desfusão de correntes psíquicas (feminina por um lado, e materna por outro), observável na prática clínica, atenua substancialmente a atribuição automática de patologia na mulher à fala de expectativa de ter filhos. Ambas as correntes, a materna e a nãomaterna participam indistintamente na formação de sintomas psiconeuróticos e somente se desenvolvem ludicamente no campo da saúde.

O espaço psíquico não-mãe e o espaço solo constroem áreas em que a solidão com autocompanhia e a feminilidade formam um tronco comum. São zonas estreitamente relacionadas. Na capacidade pós-edípica de estar só se produz a abertura em direção ao estado de “aberto”.

A feminilidade estrutural implica o cessar ou a atenuação das equações duplicativas mulher-mãe, mãe-filho, criança-pênis, que acabam por desembocar na infantilização psíquica e na patologia objetal compulsiva.

O percurso da feminilidade primária para a feminilidade estrutural é o desenlace saudável do percurso psicossexual das mulheres. Ficam questões e elucidações em aberto e que serão objeto de futuras investigações teórico-clínicas.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Ortiz de Ocampo 2561 - 13A
1425 Buenos Aires
Argentina

Recebido em: 24.11.2008
Aceito em: 5.1.2009

 

 

1 Tradução de Nilde J. Parada Franch, membro efetivo da SBPSP. Revisão de Ana Balkanyi Hoffman, membro associado da SBPSP.
2 Médica psicanalista, membro titular da Associação Psicanalítica Argentina APA. Autora, entre outros livros, de La sensualidad femenina (Amorrortu, 1992), La mujer sola: ensayo sobre la dama andante en Occidente (Lumen, 1998), Adiós a la Sangre: reflexiones psicoanalíticas sobre la menopausia (Lumen, 2005) e La pareja rota: ensayo sobre el divorcio (Lumen, 2008). Ex- presidente da Cowap (2001-2005) Comitê de Mulheres e Psicanálise da IPA (Associação Psicanalítica Internacional). Coordenadora do capítulo sobre ¨Sexo, gênero e Psicanálisise da Associação Psicanalítica Argentina.
3 N . T. Freud (1924): “...o complexo de Édipo tem que cair porque chegou o tempo de sua dissolução, assim como caem os dentes de leite quando saem os definitivos”. In: O sepultamento do complexo de Édipo.
4 N . T. em espanhol: El guante se da la vuelta”.

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