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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.43 n.1 São Paulo mar. 2009

 

DIÁLOGO

 

Comentário à entrevista de Boris Schnaiderman

 

Comentario a la entrevista de Boris Schnaiderman

 

Comment to the interview of Boris Schnaiderman

 

 

Luis Tenório de Oliveira Lima,1

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

O comentário procurou destacar, na entrevista de Boris Schnaiderman, alguns aspectos importantes relacionados com a psicanálise e com o problema da tradução. A relação entre sua língua de origem, o russo, e a língua portuguesa que se tornará sua língua literária. Comenta-se também a relação entre Freud e Dostoievski a respeito de seu ensaio Dostoievski e o parricídio. Alude-se ainda à vinda de Roman Jakobson ao Brasil e à colaboração com os poetas concretos na tradução dos poetas russos de vanguarda.

Palavras-chave: Tradução; Hospitalidade; Linguagem consciente e linguagem inconsciente; Linguística e psicanálise.


Resumen

El análisis textual intentó destacar, en la entrevista con Boris Schneiderman, algunos aspectos importantes relacionados con el psicoanálisis y el apuro con la traducción. La relación entre su lengua materna, ruso, y portugués que hace su lengua literaria. Analiza más lejos la relación entre Freud y Dostoievski con respecto su ensayo Dostoievski y a parricida. Él aludes a la visita de Jakobson romano al Brasil y a la colaboración con los poetas concretos en la traducción de los poetas rusos de la vanguardia.

Palabras clave: Traducción; Hospitalidad; Lengua consciente y lengua inconsciente; Linguística y psicoanálisis.


Abstract

The textual analysis attempted to highlight, in the interview with Boris Schneiderman, some important aspects related to psychoanalysis and the trouble with translation.The relationship between his mother tongue, Russian, and Portuguese which becomes his literary language. It further analyzes the relationship between Freud and Dostoievski regarding his essay Dostoievski and parricide. It aludes to Roman Jakobson’s visit to Brazil and the collaboration with the concrete poets in the translation of the Russian Vanguard poets.

Keywords: Translation; Hospitality; Conscious language and unconscious language; Linguistics and psychoanalysis.


 

 

Nessa entrevista de Boris, a primeira coisa que destaco como significativa é justamente sua relação com as duas línguas e a história dessa relação. Em primeiro lugar, a questão da língua russa. Ele mesmo, numa passagem da entrevista, declara que, embora tivesse oito anos quando chegou ao Brasil, fazia questão de preservar a língua russa. Ele e seus pais falavam sempre russo. Preserva a língua russa como língua materna. Adota a língua portuguesa progressivamente e de modo penoso, como segunda língua. Depois ela se tornará sua língua principal. Ele a chama de “minha língua literária”. Há dois aspectos importantes a serem comentados do ponto de vista psicanalítico. A importância da língua-mãe, amorosamente preservada, e a língua portuguesa, que adota como língua que o hospeda. Acho, então, importante comentar o aspecto interessantíssimo que é o da hospitalidade oferecida pelo lugar ao qual ele chegou. N ão apenas como país ou território; a língua passou a ser um lugar onde se sentiu hospedado e ele se torna um escritor de língua portuguesa e preserva, com muito empenho, a língua russa originária. (Achei interessante destacar esses dois aspectos para o leitor. O número da revista é sobre a língua portuguesa). Ele vai se tornar um tradutor. Inicialmente com alguma dificuldade. Essa tradução significa também uma tradução interna. Algo que traduz o universo originário, como judeu, segundo diz, assimilado, que nasce num momento marcante, 1917, e chega ao Brasil em 1924.

Nas primeiras traduções não tinha ainda experiência. É como se ele passasse por uma prova. N a verdade, queria ter uma carreira literária, tinha amor pela literatura, pelos livros, pela filosofia. Mas os pais preferiam uma carreira mais técnica. Como aconteceu, de certo modo, com Freud. Poucos sabem que até os 18 anos, a mesma idade de Boris, a vocação de Freud era para ciências humanas, talvez Direito. Definiu-se pela Medicina, como ele mesmo relatou em sua autobiografia e sua correspondência também mostrou isso. Mas o pai queria que ele seguisse uma carreira de comércio, de negócios. Chegou a pensar nessa possibilidade e na possibilidade de morar em Londres com o meio-irmão mais velho. Mas foi estudar medicina e inventou uma disciplina que procurou conciliar as ciências biológicas com as ciências humanas.

Outra questão que ressalto é a tradução, propriamente dita, e suas dificuldades iniciais. Boris relata algo que nos interessa muito, do ponto de vista psicanalítico. Como se faz uma tradução? Como se pode traduzir, de uma língua para outra, ou de um universo para outro? Isso ocorre também na clínica psicanalítica com as associações e com os comportamentos gestuais do paciente, seus sonhos. De que modo isso pode ser transformado ou traduzido numa outra linguagem, entre analista e analisando, que permita uma expansão e uma mudança entre duas línguas, da linguagem do inconsciente para a linguagem que está ligada à nossa atividade verbal consciente?

No início Boris diz que ficava muito preso à literalidade e depois passou a um modo de traduzir mais natural, percebendo que a tradução é uma arte, não é transcrição mecânica. Isso é importante para pensarmos o trabalho psicanalítico como uma arte, como uma transformação, como a arte de traduzir, transformando. A analogia é grande, pois existe também a tradução no sentido mecânico, como se fosse uma mera tradução do inconsciente para o consciente, o que equivaleria ao literal. Boris repudia essas traduções dos tempos iniciais. É semelhante ao que acontece com os analistas. Durante o período inicial de nossa formação, muitos de nós tendemos a uma rigidez maior, quase literal. Progressivamente aquilo se torna muito mais natural.

Depois que a tradução se torna mais natural para ele, o português passa a ser sua língua literária e o russo uma língua secundária. Mas ele continuou interessado no russo e se tornou um tradutor específico do russo para o português de obras extraordinárias: Dostoievski, Tolstoi, e os poetas russos de vanguarda. Recentemente traduziu A morte de Ivan Ilitch, uma tradução espantosa.

Retornando ao ponto que mencionei anteriormente sobre a passagem da língua materna para a língua que o hospeda, a noção de hospitalidade, o sentir-se hospedado, albergado, por uma nova língua vai torná-lo capaz de escrever nessa segunda língua e torná-lo escritor nessa segunda língua. A primeira experiência dele foi com um livro que é meio ficção meio autobiografia, Guerra em Surdina, que é o relato da sua participação na Segunda Guerra Mundial como pracinha, pelo Brasil. Seu interesse era adotar a nova pátria e seu caminho, de moto próprio, foi adotar a língua portuguesa como língua literária.

Ao falar em Freud, diz ser interessante comentar a relação entre Freud e Dostoievski. Faz um comentário, ao mesmo tempo, crítico e generoso (toda a entrevista é de grande generosidade. Diz, e nós sabemos, que o ensaio de Freud sobre Dostoievski vem sendo há algum tempo muito criticado porque Freud se baseou em dados da vida pessoal de Dostoievski que, de fato, não existiram, foram modificados. Boris cita a biografia de Joseph Frank2, que é monumental. A entrevistadora lhe pergunta: “Como o senhor vê o texto de Freud sobre Dostoievski?” Ele responde: “Não conheço Freud com profundidade, mas tenho grande admiração pelo livro A interpretação dos sonhos. O ensaio de Freud sobre 2 Dostoievski (2008). As sementes da revolta 1821-1849, Joseph Frank, EDUSP.Dostoievski, porém, não é muito feliz. No primeiro volume da biografia de Dostoievski feito por Joseph Frank, hoje um clássico, o texto de Freud é citado e ele demonstra claramente que Freud não conhecia importantes pormenores da sua vida; nem poderia conhecer, naquela época.”

Há algo interessante aqui para comentar, do ponto de vista psicanalítico. O modelo que Freud utiliza – o da biografia pessoal – para interpretar a obra, já vem sendo, há algum tempo, criticado. Isso não quer dizer que Freud não tenha tido uma ousadia muito grande em usar, como usou Hamlet para interpretar Shakespeare. Do ponto de vista psicanalítico o ensaio sobre Dostoievski ilustra profundamente, com a ficção dostoievskiana, as questões relacionadas à ambivalência entre a hostilidade, ódio e o amor na situação familiar dos filhos com o pai. Isto ocorre principalmente com os Irmãos Karamazov. Nesse sentido, se o ensaio freudiano não for tomado como crítica literária torna-se um clássico, que é o que ele reconhece ser, sem dúvida alguma.

Algo a ser notado é que Boris teve responsabilidade na vinda do linguista Roman Jakobson ao Brasil. Naquele momento, 1968, Jakobson tinha, não por acaso, uma importância muito grande, não só nos estudos linguísticos, mas na Psicanálise. O ensaio de Jakobson, Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia, havia sido publicado em 1954. Lacan irá utilizá-lo e não só; irá transformá-lo na pedra de toque de sua teoria do inconsciente: a relação entre a linguagem e o inconsciente, as ideias de condensação e deslocamento (paradigma e sintagma), metáfora e metonímia, que correspondem às duas formas de afasia estudadas nesse ensaio. O artigo de Lacan, que se refere a essa questão, é de 1957. Chama-se A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. Isso está na origem de uma corrente psicanalítica que se difundiu na Psicanálise, 10 anos mais tarde, que corresponde ao ensino de Lacan e a escola francesa. Logo após a vinda de Jakobson foi publicado pela Editora Cultrix, em 1969, Linguística e Comunicação, tradução de Isidoro Blikstein, professor da USP. A chegada de Jakobson teve uma importância muito grande, embora não no meio psicanalítico. Este foi um momento muito importante e um privilégio para o Brasil em 1968. Vale a pena destacar esse ponto.

Alguns anos depois, em meados dos anos 70, essa influência tornou-se notória com a vinda dos argentinos, com o curso de Regina Schnaiderman no Sedes Sapientiae, no qual esses aspectos passaram a ser ressaltados. O que correspondeu à influência da linguística e do estruturalismo, mais especificamente das ciências humanas, no ensino da Psicanálise no nosso meio.

Ainda na entrevista, outro ponto importante é a questão da língua portuguesa e sua comparação com as línguas românicas ou com o inglês e o alemão, do tronco anglogermânico, e o russo. Ele faz uma comparação interessante entre o português e o francês principalmente, e também o alemão e inglês, para a expressão de pensamentos. São línguas muito capacitadas para isso, enquanto o português – que tem tradição poética, trovadoresca, lírica – seria uma língua mais habilitada para a expressão dos sentimentos. O inglês e o alemão são línguas que se prestam mais à filosofia. Isso é um aspecto importante na Psicanálise.

Às vezes temos alguma dificuldade na relação entre a linguagem de nossas teorias e a relação coloquial com os pacientes, porque, embora falemos português, usamos uma sintaxe que é, conforme a escola, afrancesada, quando somos atraídos por Lacan, ou anglicizada, se somos ligados às escolas britânicas. Percebe-se que muitas vezes o português é escrito como se fosse francês, ou como se fosse inglês. Isso acontece embora tenhamos as melhores condições – como dizia Boris e eu concordo – de usar o português especificamente para a tradução de certas situações clínicas mais emocionais. N a canção Língua, de Caetano Veloso, há um verso em que ele, parafraseando Fernando Pessoa, diz “eu não tenho pátria, tenho mátria; minha pátria é a língua portuguesa” [A língua é minha pátria/E eu não tenho pátria/Tenho mátria/E quero frátria]. Diz também: “Está provado que só se pode filosofar em alemão”; esse é um comentário de Heidegger que diz que o alemão é a língua específica para a filosofia. Como se só eles é que pudessem fazer filosofia e nós não. Caetano faz referência a essa passagem e esse aspecto é tocado de forma muito rica por Boris na entrevista.

Há ainda a questão da tradução e o procedimento psicanalítico. Aqui há aquela frase: “para vocês analistas a tradução não é análoga ao procedimento analítico” É a ideia de trabalhar com duas línguas. Embora possamos ter a ilusão de que, por estar falando em português, estamos falando a mesma língua, psicanaliticamente isso não é verdade. Há uma frase interessante de Bion sobre a diferença de linguagem entre paciente e analista. Ele cita Bernard Shaw, acho, que disse que “americanos e ingleses têm tudo em comum, menos a língua”. N ós e os pacientes temos tudo em comum menos a língua, embora falemos português.

O último aspecto que me chamou a atenção, diz respeito à importância de Boris ao responder sobre seu contato com os poetas concretos, Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Décio Pignatari, e ele responde de forma modesta. N a realidade ele teve um papel importante, pois foi através dele que esse grupo de poetas entrou em contato de forma direta e genuína com a vanguarda russa. N ão é pouca coisa. Boris participou com eles da tradução do poeta Maiakovski e de uma série de outros poetas da vanguarda russa desse período. Teve uma importância extraordinária. Trata-se de uma intervenção enriquecedora no plano da nossa cultura em língua portuguesa. Esse movimento da tradução torna a língua portuguesa mais rica e mais culta. Do mesmo modo que penso que, do ponto de vista analítico, o foco principal da análise é tornar a mente do analisando mais rica, mais capaz de usar os próprios recursos. N ão que o analista o enriqueça, mas o processo de tradução enriquece.

 

 

Endereço para correspondência
Luiz Tenório de Oliveira Lima [Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP]
Rua Dona Maria Carolina, 51, Jardim Paulistano
01445-000 São Paulo, SP
E-mail: tenorlima@uol.com.br

Recebido em 18.3.2009
Aceito em 28.3.2009

 

 

1 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.
2 Dostoievski (2008). As sementes da revolta 1821-1849, Joseph Frank, EDUSP. Dostoievski (2008). Os anos de provação 1850-1859, Joseph Frank, EDUSP. Dostoievski (2002). Os efeitos da libertação 1860-1865, Joseph Frank, EDUSP. Dostoievski (2003). Os anos milagrosos 1865-1871, Joseph Frank, EDUSP. Dostoievski (2008). O manto do profeta 1871-1881, Joseph Frank EDUSP.

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