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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.43 n.1 São Paulo mar. 2009

 

INTERCÂMBIO

 

The stupid lady1

 

The stupid lady

 

The stupid lady

 

 

Jorge Canestri,2 Roma

Associação Psicanalítica Internacional

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

O presente documento diz respeito a uma experiência clínica de shuttle, análise realizada em uma língua que não é nem a língua materna do paciente nem a do analista. É uma oferta interessante dois pontos para reflexão sobre os problemas do idioma na prática clínica e sobre os problemas específicos de análise de formação em áreas sem sociedades componentes de formação regulares.

Palavras-chave: Idioma; Língua materna; Formação; Análise shuttle.


Resumen

El presente documento se refiere a una experiencia clínica de análisis realizado en un idioma que no era ni la lengua materna del paciente ni del analista. Es una oferta interesante dos puntos para pensar sobre los problemas del idioma en la practica clínica y sobre los problemas específicos del análisis de formación en áreas sin sociedades componentes de formación regulares.

Palabras clave: Idioma; Lengua materna; La formación; El análisis shuttle.


Abstract

This paper concerns a clinical experience of ‘shuttle’ analysis carried out in a language that was neither the mother tongue of the patient nor of the analyst. It an offer interesting points for reflection both on the problems of language in clinical practice and on the specific problems of analytical training in areas without Component Societies for regular training.

Keywords: Language; Mother-tongue; Training; Shuttle analysis.


 

 

Perguntei-me, muitas vezes, que orientação poderia dar para a minha participação neste seminário. Depois de ter escrito no decorrer dos anos diversos trabalhos ligados à língua, tanto na cura analítica como fora dela, tenho me interessado, nos últimos tempos, pela neurolinguística e pelas hipóteses ligadas à aquisição da linguagem. Mas pareceu-me que estes temas eram por demais teóricos e difíceis de resumir no tempo de que dispomos. Por este motivo, procurarei transmitir, brevemente, o sentido de uma experiência analítica em andamento; uma experiência que tem me levado à indagação de muitas questões.

Trata-se da análise de uma pessoa que vem do estrangeiro e cuja língua materna me é totalmente inacessível. Conheço, em grandes tópicos, as características gerais, gramaticais, sintáticas e fonéticas dessa língua, pois as tenho estudado do ponto de vista linguístico; no entanto, é com dificuldade que consigo reconhecer o sentido de alguns termos. O inglês é a única língua que temos em comum, e o inglês que a analisanda fala – à qual chamarei Emily – é muito deficitário. Ela possui um vocabulário bastante rico e um bom conhecimento das regras dessa língua, mas sua pronúncia requer, de minha parte, um grande esforço de compreensão.

A paciente tem quarenta anos, é estabelecida em seu meio profissional e provém de uma família modesta, mas de bom nível cultural. Seu lugar de origem é muito pequeno, e viveu ali, com a família, até a puberdade. Depois, todos emigraram para uma cidade maior. Quando Emily quis fazer seus estudos universitários, foi morar sozinha na capital de seu país, onde ainda vive, lugar em que exerce sua profissão; está casada e tem filhos.

Esta sequência de emigrações internas trouxe mudanças linguísticas. Como veremos no fragmento de material clínico que trarei, a língua falada pela família era considerada, quer seja pelos termos empregados ou pela pronúncia, a língua canônica utilizada pelas classes cultas.

Apesar disso, era a língua do povoado de origem que Emily usava nas brincadeiras e com os amigos de sua idade. Traços dessas emigrações conservam-se nas inflexões com as quais a paciente fala, em sua língua materna, em função de certas ocasiões e de regressões temporais e formais que acontecem no decorrer da análise. Ela conta essas variações na narração de seus sonhos e de suas associações, mesmo quando minha possibilidade de segui-la, eficientemente, está limitada pela minha ignorância. Emily começou sua análise há pouco mais de um ano. Trata-se do que temos chamado, sem dúvida com certa ironia involuntária, de shuttle analysis – “análise trator”,3 e exige dos pacientes um esforço incrível, tanto econômico como de tempo e pelas limitações da vida familiar. Traz, além disso, uma frequente sensação de desconcerto, em função de estar em contato com uma cultura, modos de vida e de relações completamente diferentes dos próprios.

Em nossas primeiras sessões, Emily começou a falar de sua família e, desde as primeiras frases, colocou-me em dificuldade. Ela disse: my father, she was… and my mother he was… – “meu pai, ela era… e minha mãe, ele era…”. É difícil, para um analista, não sentir a tentação de apontar o que, à primeira vista, pode parecer um lapso, ou de não sentir impulso de pedir esclarecimentos a respeito. Este foi meu primeiro impulso e tive dificuldades para me conter, já que isso se repetiu várias vezes. Uma vaga recordação linguística sugeriu-me, contudo, que o fato poderia estar ligado às características da língua materna da paciente o que me absteve das perguntas. Depois, relendo alguns textos, recordei que em sua língua, de fato, não há diferenças de gênero nem sequer para os pronomes, ao contrário do inglês que não faz distinção de gênero para os substantivos e os artigos, mas distingue o gênero dos pronomes. Em sua língua, as diferenças de gênero não existem, a não ser para os nomes próprios; mas, como vocês podem imaginar, isto não me ajudava em nada, já que os nomes eram, para mim, quase incompreensíveis e muito difíceis de lembrar. Fui obrigado a pedir a Emily que me escrevesse os nomes que surgiam com mais frequência em seu relato, para que eu os pudesse identificar. Isto foi muito útil. Ficava pendente, e ainda fica, a questão do saber por que, em certas ocasiões, as atribuições de gênero eram corretas, e em outras incorretas. N ão era sempre possível dar ao erro uma razão linguística e nem falar sempre de lapso. O que é facilmente discriminável, em nossa própria língua, pode se transformar em uma grande confusão, numa língua que nos é fortemente “estrangeira”.

Nosso colega, Federico Flegenheimer, escreveu que, na realidade, mesmo entre analista e paciente que compartem a mesma língua, constantemente acontecem operações de “tradução” entre eles. Este é um aspecto evidente da experiência analítica. Analista e paciente falam e não falam, simultaneamente, a mesma língua; as experiências não são codivididas, mesmo quando a língua é a mesma. Difere a significação que cada um dá às mesmas palavras, às emoções que estão ligadas a elas, à história que essas palavras trazem consigo. Mesmo no idêntico, rapidamente se manifestam diferenças significativas. Cada experiência de análise é, definitivamente, uma experiência na qual o analista deve aprender o idiolectoidioleto – de seu paciente e, sem dúvida, o paciente aprender o de seu analista.

Creio que é fácil compreender como esse trabalho de tradução-construção de uma linguagem, enquanto possibilidade de “entrar no mundo” idiossincrático do outro, é complexo e trabalhoso para ser compartilhado, sobretudo quando se luta com diferenças tão radicais.

Nos primeiros meses desta análise eu terminava as sessões literalmente esgotado. Compreendi, rapidamente, que uma das razões era a impossibilidade de trabalhar em condições de “atenção livremente flutuante” ou, numa tradução mais fiel, numa “atenção uniformemente distribuída”. Ou, se quisermos retomar o termo de Bion, num estado adequado de rêverie.

A pronúncia do inglês de Emily, junto às singularidades linguísticas que mencionei, obrigavam-me a colocar uma atenção febril à escuta; uma atenção dirigida apenas a compreender o conteúdo do discurso, mais do que a escutar o que o inconsciente da paciente e o meu tinham para dizer, para além do conteúdo.

Buscando compartilhar com algum colega esta dificuldade específica, falei com Yolanda Gampel. Para além da amizade, a escolha foi motivada pelo fato de que eu sabia, tendo falado com vários colegas da Sociedade de Israel, que alguns deles tinham, em hebraico, pacientes provenientes de países longínquos, de línguas inacessíveis para os analistas israelenses; ou seja, pacientes que tinham um conhecimento muito precário do hebraico.

Yolanda Gampel tinha uma experiência semelhante à minha, com um judeu etíope e disse-me que tudo tinha sido, de verdade, muito difícil durante certo tempo. N o entanto depois que certo umbral foi ultrapassado, um outro nível de compreensão abriu-se. Um processo difícil de definir, mas no qual, muito além das diferenças linguísticas persistentes, a comunicação, como um rio que encontrou um obstáculo em seu caminho, ramificou-se em milhares de arroios aleatórios para chegar ao destino, movido pela necessidade de encontrar uma desembocadura (o que nós poderíamos nomear como necessidade de inverter na representação).

Algo semelhante começou a se manifestar em nosso trabalho. Lutamos, os dois, para nos fazer compreender, reprovando-nos nossas recíprocas incapacidades; mas, o nível no qual podíamos trabalhar havia mudado.

O que posso deduzir desta passagem de nível, além de compreender que Emily sente, muito fortemente, a necessidade de uma análise e de que luta pela consegui-la, mesmo em condições desfavoráveis?

Interrogando-me, em termos linguísticos, lembrei do trabalho do linguista Wilhelm Von Humboldt (1836): “Sobre a origem das formas gramaticais e sobre sua influência no desenvolvimento das ideias”. Nele, esse “intelectual bizarro” (Lepschy) desenvolve sua ideia, muito discutível e enigmática para alguns, da linguagem como atividade (energeia) e não como puro produto (ergon) – forma formans e não forma formata: “A linguagem, em si, não é uma obra (ergon), mas sim uma atividade (energeia)”. A linguagem é um ser vivente; sua produção é mais importante que seu produto, que é um devir ininterrupto.

Nas palavras de T. Todorov (1977), trata-se de uma mudança de perspectiva: “… colocar em evidência o processo de expressão, às expensas do processo de imitação, ou, mais amplamente, do processo de representação e de designação, assim como do processo de ação de um sobre outro, ou para usar um termo simétrico, de impressão. As palavras não são a imagem das coisas, mas sim daquilo que fala; a forma expressiva predomina sobre a função representativa”.

A divisão proposta por N ovalis entre o emprego utilitário da língua e seu emprego intransitivo, que privilegia a expressão, é semelhante de Todorov. O emprego intransitivo é aquele que, paradoxalmente, faz-se de modo tal que as expressões, que não expressam senão a si mesmas, possuem, simultaneamente, o sentido mais profundo. N o seu desenvolvimento histórico, cada língua vive o dualismo entre a necessidade objetiva e a liberdade subjetiva e, segundo o conceito de Humboldt, a linguagem está ligada, de maneira indissolúvel, a uma visão de mundo (Weltansicht).

Nesta concepção, a linguagem não é apenas um instrumento de comunicação, mas também, e essencialmente, uma expressão da individualidade subjacente ao processo criativo. Jean-Jacques Rousseau (1781/1969), como sabemos, sustentava que as paixões estavam na origem da invenção das palavras:

Il est donc à croire que les besoins dictérent les prémiers gestes et que les passions arrachérent les premières voix […] c’e n’est ni la faim ni la soif, mais l’amour la haine la pitié la colére qui leur ont arraché les prémiéres voix.

Pode-se, então, acreditar que as necessidades ditaram os primeiros gestos e que as paixões fizeram vir as primeiras vozes […] Quer dizer que nem a fome e nem a sede, mas o amor, a raiva, a pena, a cólera é que lhes arrancaram as primeiras vozes.

No exercício laborioso do trabalho analítico numa língua que não é a língua materna de nenhum dos dois, tivemos que privilegiar alguns dos aspectos que Von Humboldt colocou em evidência, a saber: a expressão e a impressão mais que a representação, ou, segundo os termos de N ovalis, o emprego intransitivo mais que o emprego utilitário. O salto de qualidade na comunicação está relacionado à confiança que cada um de nós pode dar à sua própria criatividade (e, certamente, a seu próprio inconsciente); uma criatividade que deveria superar a insuficiência linguística.

Alguns signos desse trabalho interior, muito complexo, afloram no sonho que lhes apresento. Pertence ao quarto mês de análise:

Estamos perto do mar. Um dilúvio. Algumas crianças querem brincar e eu digo, angustiada que não, que temos que ir, que é perigoso! Alguém acrescenta que vai acontecer um desastre. Uma onda de água azul escuro quebra e corre, como uma torrente, sobre a rua. Quando o sonho termina, vejo uma very stupid lady – “senhora muito burra”.

Sua primeira associação é: “Eu sou ‘a senhora burra’, pois não posso expressar bem meus pensamentos, em inglês, para dizê-los a você”. Segue associando, e traz um sonho do passado, em que também há uma situação ameaçadora que inclui crianças. Faz ainda associações com esse sonho. Há alguns detalhes geográficos, em ambos os sonhos, que omito por razões de confiabilidade.

As pessoas do sonho, e ela mesma, falam um dialeto especial, com um acento muito característico de um grupo étnico de certa zona de seu país. Esse acento e esse dialeto são considerados cheap – pobres, se comparados com a língua e o acento oficiais. No seu povoado de origem, que é diferente do que aparece no sonho, não se fala com o acento e nem com o vocabulário da língua oficial. E é verdade que, quando ela começou a frequentar a escola, reprovaram sua fala e disseram que ela falava como as pessoas incultas: you cannot accept to speak like that – “você não pode aceitar falar desse jeito”.

Emily aprendeu a falar a linguagem culta, com o acento oficial, mas disse: “Perdi meu acento, minhas palavras e meus amigos. Perdi minha gente e me separei de minha infância”.

Não é muito difícil encontrar, no sonho, representações bastante familiares do perigo imaginário, constituído pelos conteúdos que podem emergir de maneira incontrolada, em função do começo da análise, do enfrentamento com situações traumáticas vinculadas às emigrações internas e às mudanças de língua, de cultura, de afetos, além de outras vicissitudes que o processo analítico nos permitirá, talvez, enfrentar num futuro próximo.

A paciente e o analista são uma stupid lady e um stupid lord que, juntos, têm dificuldade de dizer ao outro seus pensamentos numa língua estrangeira. A esperança é que as crianças do sonho cheguem a brincar, no futuro, em condições de maior bem-estar e sem o peso das ameaças iminentes.

 

Referências

Canestri, J. (1983). Nota su due saggi di G. C. Lepschy. Due argomenti nell’intersezione tra linguistica e psicoanalisi. Rivista di Psicoanalisi. XXIX, n. 3. Roma: Il Pensiero Scientifico.

_____ (1983). Lo scacco della parola. In: Linguaggio e comunicazione in Psicoterapia. Torino: Massazza e Sinchetto Ed.

_____ (1984). Trascrizioni e trasformazioni. Il Piccolo Hans. n. 43/44. Bari: Dedalo.

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_____ (1990). La Babele dell’Inconscio. Lingua madre e lingue straniere nella dimensione psicoanalitica, (co-autores Jacqueline Amati Mehler y Simona Argentieri) Milano: Raffaele Cortina. (Traduzido em inglês, francês, espanhol, português e alemão)

_____ (1990). The Babel of the Unconscious (con Jacqueline Amati Mehler y Simona Argentieri). International Journal of Psycho-Analysis, 71, 4, p. 569-583.

_____ (1991). La passione della lingua originaria nella letteratura e nella psicoanalisi. Il Piccolo Hans n. 69. Milano: Media Press.

_____ (1993). Il soggetto polilogico. In: Ri-scritture. Roma: Centro Romano di Semiotica, Eurelle Edizioni.

_____ (1994). Transformations. International Journal of Psychoanalysis, v. 75, parts 5 & 6. Também no Libro Anual de Psicoanálisis, X.

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_____ (2000). N otes on psychoanalysis and linguistic activity. In: Changing Ideas In A Changing World. London: Karnac Books.

_____ (2001). Ferenczi e l’attività linguistica nell’analisi. In: La catastrofe e i suoi simboli. Torino: UTET.

_____ (2005). On the contribution of the most recent research on language applied to psychoanalytic practice, with regard to regional differences. In: Psychoanalysis as an Empirical, Interdisciplinary Science, Wien, Verlag, Der Oesterrichischen Akademie Der Wissenschaften.

_____ (2005). Commentary to Psychoanalysis and linguistics: is dialogue possible, Susana Fischbein. In: Truth, Reality, and the Psychoanalyst. London: International Psychoanalysis Library.

Humboldt, W. Von (1836). Über die Verschiedenheit des Menschlichen Sprachbaues und ihren Einfluss auf die geistige Entwickelung des Menshengeslechts, traducción inglesa: 1999 On Language. On the Diversity of Human Language Construction and its Influence on the Mental Development of the Human Species. Ed. Michael Losonsky, Cambridge: Cambridge University Press.

Rousseau, J.-J. (1969). Essai sur l’origine des langues. Bordeaux: Guy Ducross. (Original publicado em 1781) Todorov, T. (1977). Théories du symbole. Paris: Seuil.

 

 

Endereço para correspondência
Jorge Canestri [Associação Italiana de Psicanálise AIPsi]
Via Sesto Rufo 23
00136 Roma, Itália.
E-mail: canestri@mclink.it

Recebido em 2.10.2008
Aceito em 14.10.2008

 

 

1 Tradução de Maria Teresa Moreira Rodrigues, membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.
2 MD, psiquiatra, psicanalista. Formação e supervisão para analista pela Associação Italiana de Psicanálise AIPsi e Associação Psicanalítica Argentina APA. Membro pleno da Associação Psicanalítica Internacional IPA.
3 N .T.: Shuttle: trem, automóvel ou outro veículo que faz pequenas e repetidas viagens de ida e volta.

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