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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.43 n.1 São Paulo mar. 2009

 

INTERCÂMBIO

 

Tem a linguagem uma origem?1

 

¿La lenguage tiene un origen?

 

Does language have an origin?

 

 

François Rastier, França

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

O autor desenvolve a tese de que a história da linguagem se confunde e se faz inseparável da filogênese da cultura humana. N ão aparece após o surgimento do homem, mas encontra-se na sua própria origem. Ambas permitem à humanidade passar de uma evolução contínua a uma evolução descontínua e cumulativa. O meio ambiente humano, ao mesmo tempo natural e cultural, se compõe de um meio físico e de um entorno semiótico e presentacional. Portanto, entende que a questão da origem da linguagem não é pertinente e, sustenta que seria mais profícuo explorar as condições da emergência da semiótica e da constituição do sujeito humano, nas quais a linguagem ocupa lugar central. A sua criação liberta o homem do cerco das coisas, oferecendo acesso à função simbólica; permite uma experiência para além do eterno aqui-agora, introduzindo a noção de temporalidade; é habitada pela experiência da alteridade, instaurando o contrato social, a Lei.

Palavras-chave: Linguagem; Origem da linguagem; Cultura; Semiótica; Ausência do cerco das coisas; Função simbólica; Temporalidade; Alteridade; Lei.


Resumen

El autor desenvuelve la tesis de que la historia del lenguaje se confunde y se hace inseparable de la filogénesis de la cultura humana. No aparece después del surgimiento del hombre, mas se encuentra en su propio origen. Ambas permiten a la humanidad pasar de una evolución continua a una evolución discontinua y cumulativa. El medio ambiente humano, al mismo tiempo natural y cultural, se compone de un medio físico y de un entorno semiótico y presencial. Por lo tanto, entiende que la cuestión del origen del lenguaje no es pertinente y, sustenta que sería más proficuo explorar las condiciones de emergencia de la semiótica y de la constitución del sujeto humano, en las cuales el lenguaje ocupa lugar central. Su creación liberta el hombre del cerco de las cosas, ofreciendo acceso a la función simbólica, permite una experiencia para más allá del eterno aquí-ahora, introduciendo la noción de temporalidad; es habitada por la experiencia de la alteridad, instaurando el contrato social, la Ley.

Palabras clave: Lenguaje; Origen del lenguaje; Cultura; Semiótica; Ausencia del cerco de las cosas; Función simbólica; Temporalidad; Alteridad; Ley.


Abstract

The author develops a thesis in which the history of the language is linked and inseparable of human nature’s phylogenesis. It did not appear after mankind, but it is part of its origin. Both allow mankind to move from a continuous evolution to a cumulative and disrupted one. Mankind’s environment, both naturally and culturally, is made of a physical aspect as well as a semiotic and presentational entourage. Therefore, it states that the question regarding language’s origin is not relevant and it affirms that it would be more useful to explore the condition in which semiotics emerged as well as human subject’s creation, where language plays a central role. Its creation frees mankind from being under the siege by things, granting access to the symbolic function; it allows an experience beyond the eternal here-and-now, introduced by a notion of temporality.

Keywords: Language; Origin of the language; Culture; Semiotics; Absence of the siege of the things; Symbolic function; Temporality; Alteridad; Law.


 

 

A origem está de volta

Atualmente a questão da origem da linguagem tornou-se objeto de importantes programas de pesquisa, tanto no plano nacional quanto no plano internacional. Na segunda metade do século XX, a descoberta de novos fósseis de hominídeos e o desenvolvimento da genética coincidiram com um novo avanço das linguísticas universais: os programas de naturalização basearam-se nelas e a questão da origem da linguagem tornou-se um ponto central para a análise neodarwiniana das culturas. A descoberta do DNA alimentou um grande número de especulações sobre o “código genético” e sua própria designação, por uma metáfora exagerada, convidava a compará-lo à linguagem, no caso de reduzirmos a linguagem a um código. Uma vez que o genoma tomou o lugar da Providência como poder explicativo, essa analogia entre dois “códigos” inverte a determinação mística, que fazia da estrutura da linguagem divina o modelo de tudo.

A linguagem é uma faculdade? Explicar uma ação por uma suposta faculdade continua sendo uma facilidade recorrente: explica-se o relato pela faculdade narrativa, como no passado explicava-se o mito pela faculdade mito-poética. Por querer encontrar explicações causais, o pensamento escolástico explicava sistematicamente o ato pela potência: por exemplo, o pensamento encontrava sua causa na inteligência definida como faculdade de pensar. Somente no século XVIII é que a unidade da mente começa a ser colocada em dúvida: ao fazê-la voltar aos princípios da natureza, transpõem-se as faculdades psíquicas em funções orgânicas. Ora, desde que a função cria o órgão, as funções mentais devem estar relacionadas a localizações cerebrais. É esse o princípio da Teoria de Gall, fundador da frenologia. Com os programas cognitivos de naturalização da mente, essas teorias voltaram a ganhar força. Jerry Fodor, recentemente, ao iniciar sua obra The Modularity of Mind2 tecendo elogios a Gall, descrevia uma mente dividida em módulos correspondentes a outros tantos dispositivos (devices) anatômicos.

A linguagem tem uma função? Alguns animais não têm linguagem inata: é o caso, por exemplo, do homem e do papagaio cinza do Gabão, duas espécies muito sociáveis, que não param de falar e cuja presença de espírito é admirada. O fato de o homem não ter linguagem inata não é suficiente para desmentir a hipótese de um órgão da linguagem: os defensores dessa concepção supõem simplesmente que esse órgão serve para aprender (Language acquisition device, ou LAD)3. Para justificar esse substrato orgânico, postulam que a função cria o órgão ou, em termos neodarwinianos, que ela decorre de uma vantagem adaptativa. É preciso, portanto, saber para que serve a linguagem. Rousseau tinha uma resposta galante e sensível, pois considerava as paixões o motor da história humana. Os neodarwinianos de hoje transpuseram essa tese para o plano da reprodução: uma função biológica contribui, por definição, ao sucesso reprodutivo do organismo que é provido dessa função (cf. Sperber e Origgi, 2005, p. 285). As paixões tornaram-se instintos, porém a legitimação funcional permanece: a linguagem serviria para garantir a paz no interior das hordas assassinas ancestrais (Victorri), ou ainda para falar mal dos ausentes, favorecendo a unidade do grupo (grooming and gossip hypothesis, de Robin Dunbar), para assegurar um prestígio social (Jean Louis Dessales) etc. Quando se conhece um pouco seus autores, percebe-se que esses apólogos divertidos são excelentes testes projetivos e concretizam hipóteses cuja vantagem, em resumo inestimável, é de não poderem ser nem desmentidas nem confirmadas.

Examinemos os argumentos que fundamentam essa via de naturalização da linguagem. A demonstração toma três direções:

1) A busca de um gene da linguagem que estaria alterado nas famílias que sofrem de afasia;

2) a busca do órgão da linguagem;

3) a reconstituição de uma protolíngua de Homo Erectus (Bickerton) concretizando a Gramática universal.

O gene da linguagem. Se partirmos do princípio de que a linguagem é uma função biológica, pode-se buscar seu substrato anatômico em um órgão e, mais além, nos genes que comandam o desenvolvimento desse órgão. Vimos assim o gene da linguagem em FOXP2, situado no cromossomo sete, supostamente responsável pela afasia hereditária que atinge várias pessoas de uma família inglesa. Trata-se de um gene de transcrição que comanda a formação de uma proteína composta de 751 aminoácidos. Ora, o gene FOXP2 foi associado ao canto do pato mandarim e do canário; poderia haver simplesmente uma incidência sobre a motricidade vocal: assim sendo, mutações provocadas desse gene afetam as performances vocais dos filhotes de rato. Deve-se, portanto, procurar alhures.

O órgão da linguagem. De acordo com o postulado de que toda função se baseia em uma faculdade e, portanto, em um órgão, o problema da origem da linguagem torna-se o da origem do órgão da linguagem. Por que seria preciso que, apesar de tudo, os órgãos fossem dedicados a funções pré-definidas? É falso para o cérebro, assim como para a mão.A linguagem humana poderia ter se originado do encontro contingente de um aparelho fonador (bastante comum entre os primatas), de um córtex pré-frontal excepcionalmente desenvolvido e capaz de imaginar objetos na ausência deles, enfim de interações sociais complexas. Além disso, se a faculdade da linguagem é uma faculdade de aprender línguas (language acquisition), seu exercício pressupõe a existência das línguas; nesse caso, a natureza humana pressupõe a cultura, o que se opõe à hipótese inicial de naturalização.

A protolíngua. Enquanto Haeckel achava que o pitecantropo era mudo, o Homo Erectus, seu moderno sucessor, torna-se falante quando Bickerton (1990/1996) lhe atribui uma protolíngua essencialmente composta de palavras ostensivas. Na hipótese de um determinismo genético, a linguagem no Sapiens deveria ter origem em uma mutação do Erectus. Inúmeros autores fazem assim as línguas derivarem de uma protolíngua centrada na comunicação pragmática ligada à situação (o “aqui” e “agora”)4. Mas essa linguagem não teria fundamentalmente nada de diferente da linguagem animal: aliás, Bickerton baseia-se explicitamente na “língua” de Kanzi, bonobo incansavelmente condicionado que conseguiu responder questões de sua mãe adotiva humana, Sue Savage-Rumbaugh, batendo em ícones num teclado. Essa linguagem teria sido composta por um léxico progressivamente enriquecido, mas desprovida de sintaxe; encontramos aqui a teoria da língua adâmica, feita somente de termos. A sintaxe, na escola chomskiana, vem depois, pois ela coroa a história da hominização.

O aparecimento da linguagem a partir da protolíngua seria acessível de três maneiras, observando:

1) O desenvolvimento da criança;

2) a elaboração da linguagem dos sinais por pequenas comunidades de surdos isolados, cuja linguagem gestual espontânea seria testemunha do caráter natural da gramática universal;

3) a evolução das línguas crioulas a partir dos pidgins.

O desenvolvimento da criança. Segundo Haeckel, a ontogênese recapitulava a filogênese. Essa tese simplista foi abandonada há um século pelas ciências da vida, mas conserva, no entanto, toda sua sedução mítica: a pré-história não é a infância da humanidade? Também quando as crianças justapõem suas duas primeiras palavras, recriariam a protolíngua. Essa hipótese é gratuita: Erectus não estava na situação de quase não falar ou de ainda não controlar a linguagem do Sapiens.

Os surdos. O fato de a linguagem humana ser derivada de uma linguagem gestual é um tema que é encontrado frequentemente no século XVIII , de Condillac a Destutt de Tracy; essa hipótese ainda era defendida por Marr, e retorna atualmente com Corballis. Considera-se, sobretudo, que a comunicação gestual dos surdos revela a passagem da protolíngua para a língua. Assim sendo, a partir de 1977, surdos agrupados em uma escola de Manágua são estudados por cognitivistas norte-americanos que estudam a evolução de sua linguagem, em condições de isolamento. Concluíram que as produções da primeira “geração” eram uma protolíngua, desenvolvida em língua nas “gerações” seguintes.

As línguas crioulas. Segundo Bickerton, determinados contatos entre populações de línguas diferentes recriam espontaneamente a protolíngua nos pidgins, que evoluem em línguas nos crioulos. Como ele atribui a protolíngua ao Homo Erectus, predecessor do Sapiens, não seria essa uma retomada, de forma indireta, da tese do arcaísmo dos “negros”? Pelo menos, inexplicavelmente, somente leva em consideração as línguas crioulas das comunidades rurais e não as outras.

Com as crianças isoladas, os surdos, e os crioulos, encontramos implicitamente as três maiores referências da antropologia positivista do século XIX: a criança, o deficiente e o selvagem.

Estigmatiza-se facilmente a “curiosa censura” do regulamento interno da Sociedade Linguística de Paris que excluía as comunicações sobre a origem da linguagem. Vamos reler o artigo 2 dos estatutos: “A sociedade não admite nenhuma comunicação referente à origem da linguagem ou à criação de uma língua universal” (1866; revisado em 1876). Esses dois aspectos estão ligados, pois a língua original é de fato universal, como será universal a língua perfeita do futuro. Esse artigo demonstra uma reflexão epistemológica indubitável: a linguística é uma ciência descritiva e histórica, que não se propõe a imaginar línguas, as dos primeiros ou dos últimos homens. Uma ciência define seu objeto recusando os falsos problemas dos quais ela se priva e essa privação básica distingue-a decisivamente da metafísica. Como o futuro, a origem escapa da história que, confundindo-se com o mundo humano, não tem começo e nem fim. Tanto as teorias da origem como as do fim da história são igualmente metafísicas, pois adotam necessariamente um ponto de vista externo ao mundo humano. Esse ponto de vista transcendental não pode ser científico, a não ser que considerarmos que as línguas não são formações históricas e devolvermos o tempo humano da história ao tempo biológico da evolução.

A linguística tem como objeto as línguas em sua diversidade, enquanto a linguagem permaneceu uma abstração filosófica. Por que a linguagem suplantaria as línguas na reflexão dos linguistas? N a época da globalização, não é impossível que as línguas, em sua imensa diversidade, sejam abandonadas. A protolíngua, única para toda a humanidade, e a língua universal do futuro refletem à sua maneira essa evolução e procedem sem dúvida do mesmo imaginário simplificador.

 

Hipóteses

Línguas sem origem? Se a linguagem é um momento de evolução, as línguas nada mais são que criações históricas. A emergência da linguagem resulta talvez do misterioso encontro de um órgão da linguagem (até agora não encontrado) e de uma pressão evolutiva, porém, com mais certeza, da criação social e da transmissão de sistemas de signos vocais. Essa criação, por um lado, liberta os homens das pressões do meio ambiente natural; ela institui e reforça as do entorno cultural, fazendo-o passar do tempo “darwiniano” da evolução ao tempo “lamarckiano” da história. Também achamos que as línguas escapam de uma “explicação” de tipo darwiniano.

A questão da origem da linguagem não se coloca se admitirmos que a linguagem é uma criação cultural: sua história não é senão a das línguas e se confunde com a das sociedades humanas. Se a faculdade de linguagem é natural no sentido de que ela tem evidentemente substratos orgânicos, esses substratos não são causas e essa faculdade só se exerce na vida social das línguas particulares, “o indivíduo realizando sua faculdade por meio da convenção social que é a língua” (Saussure, 1972, p. 419, n. 63). Se as línguas humanas são formações culturais – em resumo, obras – transmitidas com as outras formações culturais como as técnicas ou as regras de aliança, a questão da emergência da linguagem se torna inseparável da filogênese da cultura, ou melhor, das culturas em sua diversidade.

A linguagem como meio. Mais do que um instrumento, a linguagem é uma parte proeminente do meio em que vivemos: diríamos que o ar é um instrumento dos pássaros? A criança nasce cercada pela língua que ela já ouviu no útero e à qual ela já reage de forma seletiva – ao mamar com mais energia que é medida com uma mamadeira dotada de sensores. Progressivamente ela se adaptará a ela pela aprendizagem e dela fará uso para se adaptar ao mundo socializado que a cerca. Correlativamente a linguagem não tem origem, pois ela está na origem, se não de tudo, pelo menos dos mitos de origem, mesmo que sejam neodarwinianos. A linguagem é um meio e não uma simples faculdade: é por isso que, na filogênese, por mais longe que possamos ir, ela não aparece após o homem.

Nem interna e nem externa, a língua é um lugar do acoplamento entre o indivíduo e o seu meio ambiente, porque os significantes são externos (ainda que reconstruídos na percepção) e os significados internos (ainda que construídos a partir de uma doxa externa). Como a linguagem faz parte do meio em que agimos, é em práticas diversificadas, das quais os discursos e os gêneros são testemunhos, que nos ligamos ao nosso meio ambiente. Mas ela também é povoada por “coisas” ausentes. E, na experiência da alteridade, do passado, do estrangeiro, a culturalização da criança ocorre – não menos, senão mais que – na expressão de uma experiência individual limitada ao hic et nunc.

 

Condições de emergência do semiótico

Mais do que a origem da linguagem, parece-nos útil, portanto, explorar as condições de emergência do semiótico e da constituição própria do entorno humano em que a linguagem ocupa evidentemente um lugar proeminente, mas não exclusivo.

Acoplamento (couplage) e rupturas de categoria. O acoplamento do ser vivo e de seu meio ambiente é a condição universal da evolução biológica. Desejamos ao mesmo tempo relativizar e especificar a oposição entre Umwelt et Welt, conceitos definidos por Uexkull, de modo a caracterizar a especificidade semiótica do meio humano. Os “estados interiores” dos sujeitos humanos são apresentações – não representações, pois aparecem em acoplamentos específicos entre o indivíduo e seu entorno, mas não representam, por isso, esse entorno ou esse acoplamento. O nível semiótico do entorno humano caracteriza-se por quatro rupturas de uma grande generalidade que parecem estar atestadas de diversas formas em todas as línguas descritas, tanto que podemos lhes conferir, por hipótese, um alcance antropológico.

1) A ruptura pessoal opõe ao par de interlocução EU/TU – empregamos as maiúsculas para resumir as diversas maneiras de designar os protagonistas da interlocução representada – uma terceira pessoa que se define por sua ausência da interlocução (esteja ela presente ou não, fisicamente): ELE, ISSO.

2) A ruptura local opõe o par AQUI/ALI a um terceiro termo, LÁ ou ACOLÁ que tem a mesma propriedade definitória de estar ausente do hic et nunc.

3) A ruptura temporal opõe o AGORA, o RECENTEMENTE e o FUTURO PRÓXIMO ao PAS - SADO e ao FUTURO. Convém, sem dúvida, distinguir a zona circunstancial do presente da enunciação representada, marcada por futuros e passados próximos, do passado distante, conhecido indiretamente e frequentemente lendário, e do futuro distante de qualquer forma conjetural.

4) Finalmente, a ruptura modal opõe o CERTO e o PROVÁVEL ao POSSÍVEL e ao IRREAL. Poder-se-á, evidentemente, opor, no interior dessas categorias, o condicional ao irreal etc.; mas aqui, só nos importa o ponto em que as línguas articulam essas categorias. As rupturas de categoria são geralmente gramaticalizadas e são, portanto, objeto de escolhas incessantes e obrigatórias de locutores, devendo todo enunciado estar situado em pelo menos uma das zonas que elas delimitam.

As zonas antrópicas. Podemos notar que as posições homólogas nos eixos da pessoa, do tempo, do espaço e do modo são frequentemente combinados ou confundidos: em francês, por exemplo, os empregos modais do futuro e do imperfeito são muitos, o futuro anterior tem igualmente um valor modal etc. As homologias entre essas rupturas permitem a distinção de três zonas: uma de coincidência, a zona identitária; uma de adjacência, a zona proximal; uma de estranheza, a zona distal. A principal ruptura separa as duas primeiras da terceira. Em outros termos, a oposição entre zona identitária e zona proximal é dominada pela oposição que separa essas duas zonas que estão juntas na zona distal. Assim se distinguem um mundo óbvio (formado pelas zonas identitária e proximal) e um mundo ausente (estabelecido pela zona distal).

Em relação às linguagens dos animais, a particularidade das línguas reside, sem dúvida, na possibilidade de falar do que não está ali: a zona distal. No eixo da pessoa, isso permite falar dos ausentes. A homologação do distanciamento situa-os de preferência num outro tempo (ancestrais, posteridade, enviados por vir), em outros lugares e em outros mundos (heróis, deuses, espíritos). N o eixo do tempo, isso abre as áreas da tradição e do futuro; nos eixos do espaço e do modo, a da utopia.

A relação entre o indivíduo e a sociedade é uma das formas que assume, para a humanidade, o acoplamento biológico do organismo com o meio ambiente. Mas a zona proximal em que, por exemplo, os congêneres são reconhecidos como tais, pertence de fato ao entorno dos outros mamíferos, sem ter o mesmo estatuto por causa da zona distal. Com efeito, a zona distal permanece específica do entorno humano, provavelmente porque é estabelecida pelas línguas5.

O fato de o entorno humano conter espaços distintos do hic et nunc pode ser posto em conexão com a teogonia e a cosmogonia, duas atividades próprias da nossa espécie, e às quais devemos às ciências, bem como às religiões. O cosmo e os universos divinos são apresentações da zona distal, sem substrato perceptivo imediato. Esses dois tipos de criação incessantemente continuadas baseiam-se, sobretudo, nos distanciamentos de pessoa, de tempo, de espaço e de modo.

O conteúdo das zonas varia evidentemente com as culturas e a fortiori, com as práticas sociais. A zona identitária não é necessariamente a de um Ego, e pode ser solicitada por um grupo, um ancestral totêmico, uma nação etc.; correlativamente, o Ego pode, às vezes, ocupar a zona proximal (“Eu é um outro”, escreve Rimbaud), e até a zona distal (em alguns místicos).

A fronteira empírica está marcada, na gramática das línguas, por aquilo que os gramáticos chamam de zona inalienável: ela é povoada por “objetos” que exigem ou permitem construções pensadas ou dativos éticos. É o caso evidentemente das partes do corpo, mas também das roupas, dos adereços, e mesmo dos animais domésticos ou veículos habituais6.

As duas mediações. Em um modelo da prática que leva em consideração performances semióticas, deve-se distinguir a mediação semiótica que especifica o papel dos signos na cognição humana (mediação entre fenofísica e apresentações) e a mediação simbólica que dá conta das relações entre as três zonas antrópicas.

Os problemas constitutivos do cognitivismo podem então ser reformulados em função das relações entre os três níveis da prática fenofísica, semiótica e presentacional: eles definem o eixo da cognição que transforma a percepção do mundo físico em (re)presentações mentais e reciprocamente. A cognição humana caracteriza-se então pela mediação semiótica entre o nível fenofísico e o nível (re)presentacional. Mantendo a autonomia relativa do nível semiótico, a mediação semiótica permite a mediação simbólica que articula as zonas antrópicas. Mas ela não a determina, e cada cultura representa a mediação semiótica em função de suas crenças; daí, por exemplo, a eficácia da magia, crença que depende da zona distal, mas que determina a relação entre o nível presentacional e o nível fenofísico, por intermédio de práticas semióticas.

Enquanto a filosofia da linguagem se preocupa com as relações entre o mundo fenofísico e as representações, a semiótica e a linguística têm que tratar da relação dinâmica entre as três zonas do entorno, isto é, da mediação simbólica. Os percursos de enunciação e de compreensão consistem em passagens constantes de uma zona à outra. Essas passagens são orientadas por valores (estéticos, éticos, tímicos – eufóricos ou disfóricos). A atividade de avaliação depende sobretudo da zona do entorno que está valorizada no momento da produção ou da interpretação.

 

Condições do acoplamento (couplage) semiótico

Acoplamento (couplage) e tipos de signos. A concepção do acoplamento que acaba de ser exposta leva a reconsiderar o próprio princípio das tipologias dos signos habituais em semiótica. Especialistas europeus da comunicação animal notaram que falta aos macacos – e, talvez, a determinados primatólogos cognitivistas – a noção de signo saussuriano (cf. Vauclair e Fagot, 1993). Sabemos que a tradição filosófica anglo-saxônica privilegia dois tipos de signos, o índex (cf. os indicadores do positivismo lógico) e o índice, signo indiciário de tradição agostiniana. Embora um seja canônico por sua referência e o outro se baseie na inferência, nenhum desses dois signos tem ligação necessária com as línguas. O índex e o índice se satisfazem com a mediação semiótica: o índex emparelha uma apresentação de objeto e um signo; o índice, duas representações de objetos das quais uma, a antecedente, é promovida à categoria de signo “natural”. Em contrapartida, o símbolo – eu entendo assim o signo saussuriano – supõe uma mediação simbólica pelo princípio da língua que prescreve relações contextuais e exclui os outros termos do mesmo paradigma.

Kanzi nunca vai nos contar uma história: só podemos construir uma narrativa com símbolos e não com índices ou índex. Além disso, as convenções sistemáticas que os símbolos concretizam permitem a autonomia relativa das performances linguísticas em relação às situações e, portanto, a instituição de novas situações. Essas convenções são necessárias à instituição da Lei, que não só é indissolúvel de seu enunciado, mas permanece independente de todas as situações, governando a lembrança e o futuro delas.

Tipologia das condições de acoplamento. Podemos distinguir três tipos de condições de acoplamento: as condições de identificação que objetivam os estímulos endógenos ou exógenos em objetos avaliados; as condições de socialidade associadas à zona proximal; as condições de delimitação que abrem o entorno para além do hic et nunc e estão, portanto, associadas à zona distal.

Condições de identificação e conquista da identidade. A permanência do objeto oculto, estudado por Piaget, coincide com o acesso da criança à função simbólica. Podem-se distinguir três fases desse acesso: o sentido se define por uma relação dos signos com os objetos presentes; depois, com os objetos ausentes (que são a fortiori artefatos semióticos), finalmente, com os objetos inexistentes ou “abstratos”. Pode-se ligar à permanência do objeto oculto a permanência ou, pelo menos, a objetivação recorrente do Ego; assim sendo, o reconhecimento da imagem especular é adquirida pela criança dos dezenove aos vinte meses, com o acesso à função simbólica.

Condições de socialização.

1) A exposição aos signos ocorre primeiramente no útero: trabalhos de Jacques Mehler e seus colaboradores mostraram recentemente que o recém-nascido, já habituado à língua materna, reage por sucções acentuadas às frases formuladas nesse idioma.

2) Há muito tempo descrita por Vygotsky, a triangulação designativa liga a criança, o objeto que ela designa ostensivamente e o adulto que ela consulta com o olhar. Cyrulnik (1995) vê aí, por sua vez, o nascimento do sentido: em resumo, alguma coisa só existe para mim à medida que existe para alguém. Mostrar a alguém alguma coisa é desenvolver simultaneamente as duas dimensões da ostentação e da habilidade; isso sugere que as representações, longe de se limitarem a uma esfera privada, permanecem indissociáveis à troca.

3) A triangulação contratual aparece na regra do jogo: o jogo é uma condição de socialização e, para a criança, os jogos de linguagem codificados permitem sair dos gêneros idiossincráticos e, dessa maneira, aprender a língua por meio de seus usos comuns. Enquanto regras dos jogos de linguagem, os gêneros testemunham, no próprio uso linguístico, a normatividade fundamental do social (todo texto, toda fala parte de um gênero). Por repetições incansáveis do uso, essa normatividade “objetiva-se” em Língua ou em Lei.

Se a regra é contratual – todo contrato, matrimonial ou econômico, e, de forma mais geral, toda promessa recíproca que se baseia numa dimensão fiduciária –, supõe uma terceira parte, representada ou não por uma pessoa e agindo de acordo com uma prescrição e/ou uma interdição. A terceira parte é uma potência distal: por exemplo, numa troca monetária, a efígie garante a boa qualidade; na troca matrimonial, um oficial ou oficiante qualquer, presente ou invocado, assegura o respeito às prescrições e proibições sempre operantes, mesmo quando elas variam de acordo com os locais e as épocas. No contrato, a dimensão da habilidade é um acoplamento entre identitário e proximal, mas o ostensivo passa para o regime do distal: o objeto do contrato é comumente separado no tempo e no modo, já que o contrato prevê uma troca futura.

Condições de delimitação. Três fatores favorecem a saída do hic et nunc e a instituição de uma zona distal: a elaboração de imagens mentais e a evocação de estímulos ausentes; o sonho e os estados de consciência alterada (alucinações); por fim, a ficção, que descreve setores inacessíveis à experiência imediata e assim os institui. A existência de uma zona distal é, sem dúvida, uma condição de socialidade que ultrapassa o simples agrupamento proximal da horda: a eficácia que lhe atribuímos, pelo medo e a invocação, transforma a horda animal em grupo humano. A Lei parece geralmente concebida como uma potência distal, o que testemunha a transcendência do social.

A humanidade redobrou, em suas hierarquias sociais, as hierarquias dos primatas, de modo que a potência física se alegoriza em poder simbólico. Com efeito, o contrato social exige uma triangulação: ele se baseia e se legitima sempre por meio de uma força distal, os poderosos utilizam seu totem, sua linhagem divina ou heróica, e empregam, para cantar suas glórias, bardos, griôs e xerpas presidenciais. Abstração e desenvolvimento da triangulação contratual, a triangulação ritual põe em relação, dessa maneira, o sujeito ou o grupo com objetos distais, sob a direção de uma potência distal. Tanto o ostensivo quanto a habilidade são então simbolizados, como se vê nos rituais.

A primeira triangulação pode ser descrita como a instauração e a confirmação da fronteira empírica. A segunda estrutura o espaço proximal da sociedade, consignando ao indivíduo, direitos e deveres. Finalmente, a terceira traça a fronteira transcendente. N ão pretendemos que a primeira triangulação esteja na filogênese que dá origem às outras duas, ainda que o uso dos termos de filiação para designar os deuses seja muito geral (da Mãe dos Animais xamanista à Deusa Mãe anatoliana e até ao N ome-do-Pai lacaniano). Em contrapartida, sua sucessão na ontogênese parece verossímil e a passagem da primeira triangulação à última pode ser descrita como uma “conquista” progressiva da ausência.

Todas as condições de acoplamento (identificação, socialização e delimitação) baseiam- se no uso de signos linguísticos, em três de suas maiores propriedades:

1) Como o uso de signos saussurianos é indiferente à presença do que chamamos seus referentes, eles autorizam a mostra não ostensiva de objetos, escondidos ou ausentes, possível porque os significados suscitam imagens mentais; daí a tese do seu valor representacional.

2) Parecem combináveis em predicações modalizadas e, portanto, em formas de prescrição ou de interdição descontextualizadas, pois válidas em qualquer contexto.

3) Estão organizados em textos7 que permitem passar do proximal ao distal.

O substrato neuronal do simbólico e a zona distal. A competência simbólica não é de forma alguma conectada em zonas específicas: ela encontra seus substratos anatômicos no decurso da socialização humana; em caso de lesão, notam-se recuperações pela utilização de outros substratos: as competências simbólicas das pessoas que ficaram cegas, surdas ou mudas são testemunhas disso.

O substrato fisiológico distal parece ligado ao desenvolvimento excepcional, no homem, do córtex pré-frontal, onde precisamente se localiza a percepção dos objetos ausentes. O tálamo assegura a conexão entre o sistema límbico, sede da memória e das emoções, e o córtex pré-frontal, onde se produzem as antecipações. Essa conexão aparece nos mamíferos, torna-se mais precisa nos primatas não humanos e assume um lugar importante no homem. Ela permite a ligação da memória e da antecipação e participa, portanto, da constituição do tempo humano. A medida temporal, a remanência do passado e a antecipação do futuro são evidentemente necessárias à inteligência narrativa; assim sendo, o tempo seria, se não o primeiro dos objetos ausentes, pelo menos o seu local. Quer se trate de planificar ações ou de compreender histórias, de agir ou interpretar, são mobilizadas as mesmas zonas cerebrais: elas concorrem à percepção dos objetos ausentes.

Conhecemos a oposição formulada por Saussure entre as relações linguísticas in praesentia fundamentadas na compatibilidade e as relações in absentia fundamentadas na incompatibilidade. Por exemplo, em um dado lugar da cadeia sintagmática, só podemos ter refazer ou desfazer. Assim sendo, a ausência entendida como presença negada (em termos lógicos) ou inibida (em termos neuropsicológicos) fica na base da atividade da linguagem, pois toda enunciação supõe, a cada escolha de um signo, a exclusão dos signos do mesmo paradigma que poderiam ocupar o mesmo lugar. N isso a negação precede a afirmação ou, em termos mais precisos, a inibição global acompanha a ativação local8.

Na teoria das zonas antrópicas, a zona distal, sem substrato perceptivo imediato, é estabelecida e configurada pela atividade semiótica. A enunciação consiste, então, em passar do distal ausente, ao signo proximal presente, por uma inibição que se denomina comumente como atualização. Em outras palavras, a escolha de um signo, descrito como uma ativação, é acompanhada da inibição de seu antônimo e dos outros signos que pertencem à mesma classe. Esse processo fundamental de seleção paradigmática é característico das línguas humanas, por oposição às linguagens dos animais. Está ligado à conquista da ausência por nossa espécie – em resumo, ao que se poderia chamar de filogênese da zona distal.

Quanto ao signo, a seleção paradigmática esclarece um fenômeno mais geral relacionado à percepção semântica (cf. Rastier, 1991, cap. 8). Essa percepção hierarquiza três tipos de dados: formas, fundos, e o que está por trás das formas e dos fundos, isto é, os paradigmas das outras formas e fundos concorrentes, que ligam a percepção presente ao corpus das experiências linguísticas passadas. Assim, diferentemente da percepção animal, a percepção humana, culturalizada, deixa um grande espaço para os processos descendentes. Em resumo, ela age sob o modo da obsessão que é, sem dúvida, uma das características do homem.

 

A conquista do distal: da hominização à humanização.

A formação das línguas foi concebida em geral como a emergência progressiva de uma classe de funções, diversamente nomeadas: simbólica (na tradição sociológica de Durkheim e de Mauss), mítica, narrativa. Sempre apresentada sob a pressão do neodarwinismo, a explicação funcional nos parece um engodo, pois a própria vantagem adaptativa é frequentemente invocada, sem ser problematizada. De que a evocação e a criação de objetos ausentes servem para se adaptar ao meio ambiente? Por exemplo, um mito não é menos mortífero que salvador, e Cassirer pôde assim descrever o nazismo como a irrupção de um mito na história.

Na hipótese da emergência da linguagem ser acompanhada por uma conquista da ausência, essa conquista fica sem função. A evocação ou constituição da ausência pode evidentemente encontrar toda sorte de utilidades. Por exemplo, em economias de horda em que se estabelece uma divisão do trabalho entre as idades e os sexos, as mulheres e as crianças praticando a colheita e os homens, a caça, pode-se evocar a especialização de práticas, a formação de léxicos especializados, a descrição de itinerários para se afastar do campo e voltar. Por outro lado, a elaboração das técnicas e sua transmissão supõem o uso da linguagem como muitas vezes lembrou Leroi-Gourhan. Mas essas utilizações bem-vindas não são necessariamente causas – aliás, o objetivo das ciências da cultura não é explicar de um ponto de vista causal, mas reconstituir condições.

Se a linguagem permite um controle da ausência através da sua autonomia em relação à situação, isso não faz com que nossos antepassados se tenham simplesmente emancipado do hic et nunc. A criação da zona distal não é uma simples extensão: ela remaneja estruturalmente o acoplamento com a situação, à medida que a relação entre o identitário e o proximal está sob a regência do distal. Em outros termos, as relações no interior do mundo óbvio são determinadas pelas relações entre o mundo óbvio e o mundo ausente. Em todo caso, essa ausência é de fato povoada de signos bem presentes. O nível semiótico é constituído de performances complexas: danças, ornamentos, narrativas, canções etc. Em ação em todas as práticas socializadas, ele é determinante em alguns: jogos, festas, ritos etc., cujas manifestações criam novas coordenadas espaço-temporais, as das áreas de jogos, dos espaços sagrados etc. As performances complexas supõem uma planificação da ação e, portanto, o desenvolvimento da imaginação, responsável pelas intenções e pelos desejos a médio e longo prazo – pois Eros deve muito a Logos. Ora, o suporte das imagens mentais, scripts e roteiros incitados pela imaginação é, precisamente, o córtex pré-frontal que “trata” dos objetos ausentes.

As performances semióticas têm como característica seu caráter teleológico, permitido pela clara demarcação de seu começo e seu fim e, sem dúvida, ligado a sua estilização. As capacidades de planejar a ação e as capacidades de produzir e interpretar narrativas baseiam- se em mediações semióticas comuns. A singularidade de um texto ou de uma outra performance semiótica reside no fato de que é, ao mesmo tempo, ação enunciativa e ação enunciada, narração e relato, história e res gestea. Ultrapassando a simples tensão narrativa em direção a um objetivo distante que permite o desenvolvimento de cadeias de ação semióticas, o relato pode se desligar da situação e passar do evento ao mito. De fato, as relações entre contexto e situação caminham em proporção inversa (Rastier, 1998) e, à medida que ela é uma extensão da contextualidade, a textualidade assume toda sua dimensão quando se torna autônoma em relação à situação e/ou suscita novas situações.

A relação entre o desenvolvimento do distal e o da textualidade nos incita a voltar à tese do fundamento mítico das culturas. Essa tese de Vico, especulativa em sua época, poderia encontrar prolongamentos hoje. Por exemplo, Jacques Cauvin (1994) estabelece que a sedentarização vem após e não antes da “revolução simbólica” que, no Oriente Médio, se traduziu, entre 10.000 e 9.500 anos antes da nossa era, pela aparição das primeiras representações femininas. Ela chega bem rapidamente às representações da Deusa Mãe e do Deus Touro, isso antes do surgimento da agricultura. Em resumo, a criação da Deusa Mãe não é um reflexo da agricultura, mas uma condição do seu desenvolvimento.

A filogênese das culturas conduz a uma semiotização geral do meio ambiente. N o caso do espaço, destaca-se uma interpretação mítica das singularidades naturais: fontes, rochedos, montanhas etc., que mapeiam mitos – basta ler um mapa de Peloponeso para lembrar essa evidência. Os territórios, as áreas de caça e de colheita, as fronteiras determinam as zonas avaliadas sutilmente hierarquizadas.

No campo temporal, passa-se do tempo darwiniano da evolução, lento e de descontinuidades exógenas, ao tempo lamarckiano da cultura, rápido, avaliado, com descontinuidades endógenas, assumindo diversas formas: genealógica, do livro de registros e histórica. Como a do espaço, a culturalização do tempo se traduz pela criação de zonas avaliadas; daí a teoria das idades da humanidade e a dos estágios históricos etc.

A conquista do distal se afirma completamente pelo estatuto mediador dos signos. Por exemplo, a hipótese xamanista, retomada hoje por pré-historiadores como Jean Clottes, considera que as paredes das grutas são separações em relação ao além, e as mãos desenhadas a tinta, vestígios de “passagem”. Mas, sobretudo, a arte parietal, diferentemente da arte mobiliária e da vestimenta, é testemunha de uma autonomização dos signos em relação ao hic et nunc. As grutas decoradas não são comumente locais de habitação, mas na verdade são santuários. A obra pintada se destaca no espaço como no tempo. Por oposição aos fetiches que, como as vestimentas, permanecem associados àqueles que os criam e que os vestem, ela se afirma como um ídolo9.

Com a escrita, entra-se na história, a dos historiadores. De uma forma mais profunda do que parece, a escrita introduz um novo tipo de temporalidade. Permite definir intervalos, medidas, inventários. O surgimento de documentos (e não mais só de monumentos) abre uma dimensão crítica: o leitor pode fazer cortes no tempo e no espaço e o próprio escrito torna-se um testemunho do distal (como testemunham as religiões do Livro). A objetivação dos documentos, além disso, permite os debates e conjeturas, o desenvolvimento da reflexividade que faz com que saberes e técnicas tornem-se ciências. Finalmente, a gramaticalização permite um controle social e político das línguas. Traçamos em outro trabalho as etapas da “revolução simbólica” contínua, que conduzem da escrita à imprensa, depois à numerização (cf. 2001b, cap. 2). N ão esqueçamos que o mundo “virtual” é, sem dúvida, um desenvolvimento último e gigantesco da inscrição parietal, mas que se tornou familiar e povoado de fetiches: os demiurgos são muito numerosos, no crepúsculo dos ídolos.

Em resumo, as culturas, em primeiro lugar as línguas, permitem à humanidade passar de uma evolução contínua a uma evolução descontínua e cumulativa. Supondo que as condições ambientais tivessem tido alguma vez a posição de causas determinantes, elas a perdem e a humanidade pôde adaptar-se a quase todos os meios – chegando a adaptá-los perigosamente a ela. Mais exatamente, ela modificou, para o seu uso, a própria noção de meio, pois o meio ambiente humano, ao mesmo tempo natural e cultural, se compõe de um meio físico e de um entorno semiótico e presentacional. Essa conquista da liberdade, evidentemente ligada à autonomia da semiótica, faz da história o fator determinante da evolução. De forma concordante, a transmissão do patrimônio semiótico, sobretudo pelas regras de aliança, determina ou pelo menos restringe fortemente a transmissão do patrimônio genético.

 

Referências

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_____ (1996). Language and Human Behavior. Londres: University College London Press.

Cauvin, J. (1994), Naissance des divinités, naissance de l’agriculture. Paris: Ed. du CNRS.

Clottes, J. (1998). La détermination des figures animales et humaines dans l’art paléolithique européen, Voyage en préhistoire. Paris: La Maison des Roches, p. 153-188.

Cyrulnik, B. (1995). La naissance du sens. Paris: Hachette.

Houdé, O. (1997). Rationalité, développement et inhibition. Paris: PUF.

Sperber, D. e Origggi, G. (2005). Pourquoi parler, comment comprendre? In J.-M. Hombert (org.), p. 236-254.

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Rastier, F. (1991). Sémantique et recherche cognitives. Paris: PUF.

_____ (2001a). L’action et le sens. Pour une sémiothique des cultures. Journal des anthropologues, p. 85-86, 183-219.

_____ (2001b). Arts et sciences du texte. Paris: PUF; com Bouquet S. (org.) (2002), Une introduction aux sciences de la culture, Paris: PUF.

Saussure, F. de (1972 [1916]). Cours de linguistique générale. Paris: Payot.

_____ (2002). Écrits de linguistique générale. Paris: Gallimard.

Savage-Rumbaugh, E. S. & Rumbaugh D. M. (1993). The emergence of language. In: K. R. Gibson, T. Ingold (org.), Tools, Language and Cognition in Human Evolution. Cambridge, Cambridge University Press, p. 86-108.

Vauclair, J. & Fagot, J. (1993). Can a Saussurian ape be endowed with episodic memory? Behavioural and Brain Sciences, 16, p. 772-773.

 

 

Endereço para correspondência
François Rastier
57, rue de Paris
94340 Joinville-le Pont - France
E-mail: lpe2@ext.jussieu.fr

Recebido em 10.3.2009
Aceito em 2.4.2009

 

 

1 Tradução de Daisy Guttmann (Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP) e Regina Campo Salgado (Prof.ª Dra. do Departamento de Letras Modernas da USP). Revisão de Regina Campo Salgado (Prof.ª Dra. do Departamento de Letras Modernas da USP).
2 Tradução francesa La modularité de l’esprit. Paris: Minuit, 1986.
3 Device é um termo mecânico que significa aparelho ou mecanismo. O uso desse termo introduz uma teleologia mecânica na teleonomia do vivo.
4 O macaco, a criança e o “selvagem” estão próximos ainda estranhamente, como no tempo das antropologias filosóficas do Iluminismo.
5 A zona distal é em suma a fonte de apresentações sem substrato perceptivo imediato. Nos termos familiares da filosofia, a zona proximal é a zona do empírico, e a zona distal é a do transcendente.
6 Em francês podemos dizer: j’ai les mains rougies, j’ai les chaussettes tirées, j’ai une soupape grillée (estou com as mãos vermelhas, estou com as meias esticadas, estou com uma válvula queimada).
7 De fato a imagem dos signos que se combinariam em textos continua sendo uma simplificação gramatical: o signo linguístico não tem existência empírica, ele nada mais é que uma passagem de um texto oral ou escrito.
8 Se a ação enunciativa, como as outras formas de ação, pode ser definida por uma falta temporária de inibição, em lógica apofântica, a afirmação poderá ser concebida como resultado de uma somatória de negações. Em outros termos, a presença poderia ser definida como uma somatória de ausências recusadas.
9 Sobre a distinção entre os fetiches, que povoam a fronteira empírica, e os ídolos que, ocupam a fronteira transcendente, cf. Rastier, 2001b.

© Gentilmente cedido por Revista Francesa de Psicanálise e PUF

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