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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.43 n.1 São Paulo mar. 2009

 

ARTIGOS

 

A psicanálise na fronteira dos estados autísticos

 

El psicoanálisis en la frontera de los estados autísticos

 

Psychoanalysis and borderline autistic states

 

 

Vera Regina J. R. M. Fonseca,1 São Paulo

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

A partir do caso de uma criança de dois anos e meio o presente texto discute como o trabalho psicanalítico se desenrola na fronteira dos estados autísticos, caracterizados pela precariedade da estrutura dialógica e da dialética self/outro que a define. Não havendo negociações que discriminem e permitam a co-existência de self e outro, objeto e sujeito não se constituem, levando a uma experiência contratransferencial de não estar de fato com alguém.
Sendo possível apenas operar na base de programas menos psicológicos que biológicos, a analista teve que se valer do escrutínio de uma rêverie quase “corporal” para identificar a necessidade da criança de ter experiências de agência (“eu tenho o poder de agir”) e contingência (“eu tenho o poder de determinar respostas aos meus atos”) que privilegiam o senso de self, para depois aceitar experiências de alteridade. Tal mapeamento propiciou a reconstrução da estrutura dialógica, delineando-se um sujeito e um objeto. Ainda que sujeitos a flutuações, os processos de simbolização foram postos em marcha, permitindo a identificação das fantasias (penetração, posse, aniquilação etc) como produto da transformação das experiências instintuais.

Palavras-chave: Transtornos autísticos; Psicopatologia do desenvolvimento; Psicanálise de crianças; Estrutura dialógica


Resumen

Partiendo de un caso de un niño de dos años y medio el presente texto discute como el trabajo psicoanalítico se desarrolla en la frontera de los estados autísticos, caracterizados por la precariedad de la estructura dialógica y de la dialéctica selfotro que la define. No habiendo negociaciones que discriminen y permitan la coexistencia de self y otro, objeto y sujeto no se constituyen, llevando a una experiencia contra transferencial de no estar de hecho con alguien.
Siendo posible apenas operar en la base de programas menos psicológicos que biológicos, el analista que se valga del escrutinio de una reverie casi “corporal” para identificar la necesidad del niño de tener experiencias de hacer (“yo tengo el poder de hacer”) y contingencia (“yo tengo el poder de determinar respuestas a mis actos”) que privilegian el sentido del self, para después aceptar experiencias de alteridad. Tal mapea miento permitió la reconstrucción de la estructura dialógica, delineándose un sujeto y un objeto. Aunque sujetos a variaciones, los procesos de simbolización fueron colocados en marcha, permitiendo la identificación de las fantasías (penetración, pose, aniquilación etc) como producto de la transformación de las experiencias instintivas.

Palabras clave: Trastornos autísticos; Psicopatología del desarrollo; Psicoanálisis de niños; Estructura dialógica.


Abstract

This paper aims to discuss the psychoanalytic work in the boundary of autistic states. The case of a 36-month old child is presented, highlighting the deficits both in the dialogical structure and in the dialectics self/other; the failure of negotiation between the two instances prevents the constitution of the pair self/other, leading to a peculiar counter-transference of not actually being with someone. In the beginning, the analyst has been pressed to operate according to biological instead of psychological programs. From this state, which could be described as an almost bodily rêverie, she has been able to pinpoint the child’s primitive needs. Meeting such needs allowed the building up of a dialogical structure, defining a self and an object. The symbolization processes have been put into action, revealing fantasies of penetration, possessiveness and annihilation as a by-product of instinctual experiences.

Keywords: Autistics disorders; Psychopathology of development; Child psychoanalysis; Dialogical structure.


 

 

A psicopatologia do desenvolvimento pode iluminar várias questões polêmicas ou obscuras das teorias psicanalíticas clássicas. Tratar certos pacientes que provêm deste tipo de clínica representa um desafio, demandando uma posição dinâmica, caracterizada por oscilações entre o descentramento e a volta ao conjunto das noções psicanalíticas essenciais.

Em tais pacientes a linguagem não está estabelecida e nem mesmo as representações de objeto. Sua história não pode ser de fato narrada, ou seja, não existe ainda um self subjetivo constituído, um self verbal. Por outro lado, todos os mecanismos básicos instintuais e biológicos estão supostamente presentes: o medo, a angústia, manobras defensivas etc.

Por mais que haja, dentro do corpo de psicanalistas, resistências a este tipo de trabalho, ele é ao mesmo tempo extremamente instigante e perigoso para o analista que nele se aventura. Instigante porque demanda, como já foi dito, um estado de suspensão teórica e de busca de outros ângulos de observação. Perigosa porque nem sempre achamos o caminho de volta e nos arriscamos a lidar com o paciente só como um ser biológico, mas o que nos levaria a tal desvio? Não teremos sempre um outro pensante em nossa mente, ainda que esse outro virtual seja alimentado pelo outro real? Não existe sempre uma disposição para encontrar significados no comportamento do outro? Será então que nos arriscamos a perder nossa própria capacidade simbólica quando em contato com tais crianças, passando a operar como um sistema desmentalizado?

Estas questões podem ser exploradas a partir do escrutínio cuidadoso de nossa relação (terapêutica) com crianças com transtornos no desenvolvimento. Elas podem nos expor a um brainstorm, em que conceitos kleinianos, freudianos, winnicottianos e outros ainda têm que ser revisitados.

 

Introdução

O objetivo deste trabalho é discutir uma das várias formas de estados mentais primitivos, caracterizada por um atraso e distorção no desenvolvimento tais que a experiência vivida pela analista na sessão não era de estar com alguém com uma mente propriamente dita, mas sim com um rudimento de psiquismo operando em registros muito primitivos de rastreamento de contingência (do tipo: “o que eu faço determina no ambiente alguma resposta!”) e busca de agência (do tipo: “eu sou o agente de minhas ações”).2 A identificação desta configuração pôde ser feita pela analista por meio do escrutínio de sua rêverie (Bion, 1962) aqui considerada também na dimensão de programa específico da espécie humana para regular a interação entre um adulto e um bebê pequeno. A partir do reconhecimento e preenchimento de tais necessidades da criança, uma mente discriminada vai se delineando e se evidencia o processamento das experiências instintuais sob forma de fantasia, ao mesmo tempo em que se estabelece uma estrutura dialógica. Tal conceito se refere a um modelo hipotético de estrutura mental formada por uma estrutura interacional contida num espaço dialógico. Tentarei em seguida esclarecer melhor este ponto.

Os dispositivos relacionais inatos que são postos em ação a partir do nascimento implicam uma relação entre “self e outro” sob forma de uma constante negociação entre estas duas instâncias. Tronick e Weinberg (1997) descreveram como, em parte do tempo de uma relação face a face, a mãe poupa o bebê de perceber que ela é diferente dele, espelhando-o e acompanhando suas expectativas de modo a manter um estado de sintonia tal que traz a ilusão de serem idênticos, mas há momentos em que ela rompe tal “ilusão”, e se mostra como “outra”, como estranha (quando, por exemplo, não consegue traduzir as mensagens do bebê ou apresenta algo diferente da expectativa que ele tem). Entretanto, a maior parte do tempo se desenrola entre estes dois extremos, numa busca de recuperação da sintonia. O produto de tais transações foi chamado por Beebe (1997) de estrutura interacional, ou seja, um conjunto de expectativas e um conhecimento relacional que já seria detectado em bebês de quatro meses. Conjeturando que tal estrutura se desenvolve em um espaço virtual, que depois se transforma em espaço mental, chamei-o de “dialógico”, por ser resultado de uma modalidade relacional caracterizada pelo fluxo de trocas em turnos entre os componentes da díade, permitindo e salientando a discriminação self/outro. A estrutura dialógica, então, se estabeleceria como uma espécie de processador de experiências relacionais na modalidade dialógica, sendo resultado da história relacional precoce da díade. Com o termo “estrutura” sinalizo seu caráter tanto de relativa estabilidade, quanto de lente interpretadora da realidade. Explorei as vicissitudes desta modalidade em outros trabalhos (Fonseca, 2005; Fonseca & Bussab, 2005; Fonseca & Bussab, 2006). Podemos acrescentar que, no que diz respeito ao papel da mãe, tal conceito guarda certa analogia com o de mãeambiente de Winnicott (1958).

Por outro lado, a experiência instintual perpassa tais negociações sob forma de fantasia inconsciente, sendo produto tanto das características individuais da criança quanto da própria relação. Contém experiências emocionais e instintuais, entre as quais saliento o medo e a possessividade, com todas suas nuances de intensidade e qualidade. Tal dimensão se correlaciona, a meu ver, com o conceito de mãe-objeto, de Winnicott (1958).

No presente trabalho pretendo abordar o interjogo entre a relação dialógica e os aspectos instintuais.

 

Caso clínico – Tiago

Sua história

O pai de Tiago era um executivo cordato e afável e, sua mãe, uma profissional liberal de quarenta anos. Tendo um casal de filhos adolescentes, ela desejou ardentemente ter o terceiro filho. Engravidou, mas abortou aos três meses, o que a deixou bastante afetada. Conseguiu engravidar de Tiago logo depois. Ele nasceu sem problemas, mas ao final do primeiro ano notou-se um atraso no desenvolvimento. Aos dois anos fez uma avaliação neurológica, sendo encaminhado para mim. Não falava e tinha prolongados momentos de desligamento, nos quais ficava estrábico. Também se engajava em atividades repetitivas e sensoriais, como passar os dedos pelas fibras do tapete por longo tempo. Lançava e/ou chutava todos os objetos da caixa, não parecendo ter interesse ou capacidade de brincar com eles. Muitas vezes chegava dormindo, e ao acordar fazia longas birras. Usava a mãe como seu meio preferido de transporte, instando-a a se mover com pequenas sacudidas no corpo, como um cavaleiro faz com seu cavalo.

Nessa primeira fase propus atender Tiago junto com a mãe.

Era grande sua intolerância à alteridade, sendo extremamente sensível a rupturas da continuidade, que sinalizavam a separação. Assim, acordar era a marca de sua existência separada da mãe. Os desligamentos pareciam uma tentativa de voltar a esse estado de ilusão de continuidade, de apagamento da consciência de estar separado. Estando acordado, lançava objetos pela sala como a preencher o espaço do outro com partes suas, com “atos afirmativos” musculares. Podemos conjecturar que, no domínio corporal, havia uma fantasia rudimentar de invadir (confundir-se com?) minha sala-corpo, lançando partes suas pelo espaço com fortes movimentos expulsivos.

A mãe, identificada com esse bebê que evita perceber-se separado, faz a contraparte, oferecendo-se como “o cavalo grudado ao cavaleiro”. O desenvolvimento das estruturas dialógicas é comprometido pela díade que se esforça em apagar a discriminação self-outro, sendo as negociações características entre aquelas instâncias substituídas por manobras que buscam a ilusão de fusão.

 

Contingências e agência

Aos três anos, muitas mudanças eram notáveis, mas os desligamentos ainda ocorriam. Seu repertório de ações era reduzido, o que fazia com que as sessões parecessem um roteiro de poucas atividades bem estabelecidas, no qual apenas a ordem variava.

A mãe passou a não entrar na sessão.

Tiago sempre se mostrou muito sensível a contingências: se eu respondesse a qualquer ato seu de uma forma intensa e padronizada, ele, sorrindo, repetia o mesmo ato, às vezes até a exaustão. Com certeza era uma porta privilegiada de contato com ele, que eu abria, ou encontrava, sem mesmo me dar conta disto previamente. Apenas a posteriori ficava claro que eu agia movida por um “programa interno”, buscando tentativamente vias de contato. Era muito difícil imaginar com quem eu estava lidando: parecia ainda não haver um alguém, propriamente dito. Também era difícil traduzir em ideias ou imagens quais seriam as fantasias de Tiago. Parecia que estávamos ainda numa era sem figuras, sem enredos, uma era em que a moeda corrente era as expectativas, as surpresas, a intensidade (da voz, da expressão facial, do toque, a força do lançamento etc) e, mais que tudo, uma avaliação de agências e contingências (como já foi escrito acima, de ser um agente e de eliciar respostas por parte do ambiente).

O outro tem que entrar em seu campo disfarçado de self. Ou melhor, afirmando seu self, como eu fazia quando o espelhava, ou quando respondia a alguma ação sua com uma reação correspondente, mas exagerada. Traduzindo para uma interpretação verbal (que em geral acompanhava meus atos), seria assim: “– Você tem força aqui na Vera! Você faz coisas para a Vera, mas não acaba com ela!”

Se eu danço conforme sua música ele me tolera; cabe a mim agora tirar proveito desta disposição nova de Tiago para ir gradualmente me apresentando como “outra” (Fonseca, 1999).

 

Esboço de um self subjetivo

Outubro 2005

Fiquei uma semana fora. Ele chega meio dormindo no colo do motorista e se agarra a seu pescoço, chorando para não vir comigo.

Acabo carregando-o e o deito no divã. Ele chora, põe a almofada no rosto e diz: “– Tiste”. Digo que ele está triste sem a mamãe; ele volta a chorar, falando: “– Mamãe”.

Surpreendo-me com essa manifestação tão clara da existência de um self subjetivo e verbal (Stern, 1985). Já se começa a delinear alguém que reconhece seu próprio estado emocional e o comunica para mim, que reage à minha ausência aferrando-se à imagem da mãe. Ao mesmo tempo, seu recolhimento no sono mostra o quanto ainda lhe é penosa a consciência da estar separado.

Após algum tempo, ele para de chorar e se dirige à pia, onde começamos a brincar: joga-me borrifos de água, e em seguida eu, movida pela convicção de que era hora de também participar e oferecer um contraponto a seus atos, coloco em seu braço pedacinhos de espuma, ou um pouco de água, mas de modo brincalhão. No início ele grita, mas depois aceita o “jogo”, talvez pela própria suavidade da ação entremeada pela água, pelo formato previsível e pela minha expressão lúdica.

Como no exemplo da sessão anterior, ele quer fazer coisas para mim, ser o agente, e talvez tema o que eu posso fazer para ele, como se minha ação fora de seu controle fosse algo perigoso. Lembro-me do relato da mãe de que ele reage violentamente quando alguém tenta trocar sua roupa, isto é, faz com ele coisas que ele não determinou. Com a brincadeira de água e espuma este fazer bi-direcional fica mais suave (ele me joga água, eu também jogo algo nele, mas mais suavemente; ele joga água, eu jogo espuma). Assim, a arena da sensorialidade se torna palco para o “diálogo de ações e sensações”, e pode ser aproveitado como um lugar intermediário para negociações. Percebe-se também que a persecutoriedade frente à minha presença e ação é amenizada, havendo na sequência uma transformação do meu gesto, igual ao dele, mas atenuado. Ainda no domínio dos programas inconscientes, é como se eu dissesse para Tiago: “– Está bem, você quer brincar de me atacar3 e eu também ataco você, mas nada que seja muito perigoso, é só brincadeira, é isto que a gente faz quando brinca”. Acredito que na minha resposta espontânea estava envolvida a questão do medo de retaliação; neste sentido, não adiantaria eu ser apenas passiva, e receber seus “ataques”, sendo importante responder na mesma nota, mas atenuada. Minha passividade poderia aumentar a persecutoriedade, conforme a ideia kleiniana de que o medo não é mitigado pelo fato de se ignorar o ataque, ocorrendo mesmo o contrário. Este ajuste é também um dos prováveis elementos da rêverie.

Depois de um período de desligamento ele se recupera, sobe na mesa e se joga em meus braços, olhando-me e fazendo sons imitativos.

Um dos pontos importantes na discussão é: Com qual tipo de objeto Tiago se relaciona nesse momento? Acredito que com alguém cujo potencial de alteridade é fonte de ansiedade (ou repulsa), tendo assim que ser monitorado constantemente, de modo que sua ação preferencial é aquela que lhe forneça um senso de agência, assim como as ações do outro que mais o atraem são as que mantenham um alto senso de contingência na relação. Em outras palavras, um objeto que se apague, que deixe que ele tome a dianteira, e que responda de modo extremamente previsível e simétrico. Se a alteridade é sentida como perigosa, a consciência da mesma é evitada através de desligamentos sistemáticos. O objeto é aceito quando se apresenta com um grau dosado de alteridade, acompanhando-o em seu fluxo de ações.

Mas para que haja um mínimo de possibilidade de relação real, é necessário que o objeto mantenha certa medida de autonomia, de modo a poder se entediar, por exemplo, quando as repetições são excessivas, a introduzir algo minimamente novo na esteira do já conhecido4. O radar que nos dirige nesta relação é provavelmente calibrado por aquilo que foi chamado de rêverie, e cujas bases são tanto onto quanto filogenéticas.

O resultado final é uma estrutura dialógica menos frágil, na qual coexistem e negociam self e outro.

 

Primeiras brincadeiras simbólicas

Ao longo de um ano e meio de recuperação de brincadeiras face-a-face e jogos corporais, Tiago começa a aceitar pequenas modificações no roteiro, levando a negociações na “dança” interacional. Não é necessário mais negar o outro de modo sistemático.

À medida que sua atenção se concentra em mim e pequenas brincadeiras simbólicas surgem, ficam mais claras:

1. Fantasias primitivas de ocupar meu espaço, que se manifestam pela ejeção de seus conteúdos: de pé no alto do armário, olhando-me intensamente, ele simula arrancar pedacinhos da parede e lançar em mim e depois na sala; cospe-me e assopra meu rosto e depois a sala, assim como sistematicamente lança seus brinquedos. Podemos conjeturar que agora Tiago está em busca de um objeto recipiente, e suas expulsões têm um enderêço mais claro.

2. Fantasias que expressam a ansiedade básica de aniquilação: joga o boneco bebê nas paredes, depois pela janela, amarrado a um barbante, e o recupera em seguida; brinca de assustá-lo e ri muito quando, dramatizando, respondo como um bebê assustado.

Surge, portanto, um sujeito no qual fantasias incipientes podem ser inferidas, mas sempre privilegiando a experiência de ser ele quem assusta, sendo o outro assustado; ele penetra, sendo o outro o penetrado. A transformação da passividade em atividade foi bem abordada por Espasa (2002): “A manifestação fundamentalmente defensiva do Ego primitivo narcísico (Freud, 1915) tem por objetivo transformar o passivo em ativo. A identificação narcísica com aspectos persecutórios (narcisismo destrutivo) do Objeto é um mecanismo que estabelece as bases para o ‘narcisismo antiparanóide…’”5 (p. 828)

A questão da prevalência dos mecanismos de identificação projetiva no presente caso é um campo fértil para discussões; o que quero salientar aqui, entretanto, é a necessidade que Tiago tinha de transformar a experiência passiva em ativa como um meio de evitar a ansiedade persecutória frente à percepção da alteridade do objeto.

A parte vulnerável de Tiago é depositada no bebê, eliminada e recuperada em seguida. É esta possibilidade de “depósito” em um objeto externo, que, unida à prontidão maturativa, estimula o pleno desenvolvimento da capacidade simbólica. Ele projeta para simbolizar e simboliza para continuar projetando. Assim pode manter o senso de ser agente ativo, sem lançar mão da onipotência delirante ou da negação do outro. É marcante a satisfação de Tiago ao assustar o bebê tão pequeno, perto do qual ele fica muito grande. N este faz de conta sua vulnerabilidade começa a ser elaborada para ser superada e se transformar em desenvolvimento real.

 

O lobo no guarda-chuva

Novembro de 2006

Quando entramos, ele está sorrindo. Logo pega o guarda-chuva6 e o abre. Começa a usá-lo como se fosse um martelo, batendo-o na cadeira e no divã. Digo que ele se sente forte com o guarda-chuva, mas que não pode usá-lo assim, pois estraga meus móveis.

Aqui entra o elemento instintual, esta força que impele Tiago a rasgar o meu espaço.

Ele se deita no divã e me chama para deitar a seu lado, sob o guarda-chuva. Puxa com força uma das varetas, tira-a e me mostra. Eu digo que ele tem mesmo força para estragar a casa guarda-chuva, mas temos que consertá-la agora. Ele fala, sorrindo, afetando medo: “– O lobo! O lobo!”

Digo que o lobo está lá fora. “– N ós estamos dentro e podemos fechar a porta para ele não entrar”.

Tal força instintiva, desde que regulada pelo adulto, poderá ser representada pelo lobo, do qual é possível defender-se pela demarcação de limites entre o self e o mundo externo.

Então ele me mostra sua mão fazendo certa pressão na parte de fora do guarda-chuva. É como se ele visse que há uma parte de seu corpo fora e outra dentro desta casa onde estamos nós dois. Eu digo que a mão está fora mesmo, mas ele está dentro. E mostro:

“– Vera e Tiago”. Ele repete, apontando cada um de nós: “– Vera, Tiago”. Depois, trocado:

“– Eu” (apontando para mim) “– Você” (para si). E me olha intensamente. Volta a se desligar, fica estrábico e olha fixamente o cabo do guarda-chuva, fazendo sua mão deslizar por ele. Eu introduzo minha mão, que também desliza junto, mas não superposta. Ele me olha e sorri. Continuamos nessa transação.

A mão lá fora é um pedaço de seu corpo (um pedaço-lobo?), ilustrando a fantasia de estar parte fora e parte dentro de uma relação de intimidade7. A mão fora faz pressão. Ela tem força, a força instintual. Ela não é dialógica, seus circuitos são diferentes: é possível até que ela queira dissolver o diálogo, objetivando a fusão/penetração (ligada à mãe objetal8). Lá dentro há um self que se relaciona com um outro, alternando estados de discriminação, de confusão, de desligamento e de recuperação da discriminação, desde que o outro esteja alerta tanto para não se deixar confundir quanto para não abdicar da relação.

Veremos estas duas presenças o tempo todo na sessão, e como tive que manter-me atenta para responder ao nível instintual e dialógico ao mesmo tempo.

Depois fala de novo do lobo.9 Aponta-o lá fora e puxa a manta para nos cobrir. Dentro me aperta com muita força, quase me estrangula, de início afetando medo. Em seguida passa o cordão em meu pescoço, dizendo: “– O lobo!”, mas agora o lobo parece não estar fora, pois ele aponta para um pedaço da manta dentro.

Ilustrando de modo muito claro algumas das ideias kleinianas (Klein, 1930), o lobo parece expressar sua experiência instintual de querer me penetrar, me agarrar, se enfiar em mim, me possuir, enfim, de todas as formas possíveis.

Digo então que o lobo está dentro, “…Vai ver que está na sua boca, ou na minha”. Ele enfia um pedaço da manta em minha boca, depois volta a me agarrar, tentando com força enrolar minha cabeça na manta. Começa também a emitir um grito agudo que fere meus ouvidos: “– Papá, pepe!!!…”. Digo que tem medo do papai que pode querer tomar a mamãe. Então ele tenta me derrubar no chão, fazendo muita força para consegui-lo e percebo que tenho que também fazer muita força para impedi-lo, tenho que ser mãe e pai ao mesmo tempo, forte e macia. Ele volta a me convidar suavemente a pôr a cabeça a seu lado, depois ri excitado ao tentar me derrubar e me morder. Falo novamente do medo do lobo dentro de nós e ao mesmo tempo faço força e o seguro, para impedi-lo de avançar demais.

Ou seja, a proximidade desperta seus impulsos mais primitivos, experiências corporais que ainda carecem de um espaço e estrutura dialógicos mais firmes para processá-las, deixando-o à mercê da grande intensidade instintual, das consequentes ansiedades e dos desligamentos defensivos.

Penso também que os pais talvez tivessem dificuldade em enfrentar tal intensidade, funcionando como objetos frouxos, portanto ansiógenos e pouco dialógicos, deixando a porteira aberta para sua enorme possessividade.

No meio dessa tempestade relacional, digo que está na hora. Ele pega sua bola de pano e fica a chutá-la fortemente (uma posse compensatória através do chute no espaço da sala), mas ao fim lembra que no avesso da bola há um bicho10 (mais simbólico, figurativo). Puxa o bichinho para fora, mas prende seu rabo nos seus dentes e não quer largá-lo. A capacidade de simbolização é flutuante e pode entrar em colapso frente à ameaça de separação. Assim, o bichinho tem que ser concretamente agarrado e possuído quando está na hora de se despedir.

 

Conclusão

Acredito ter ficado claro o prejuízo inicial na relação dialógica (que se caracteriza, na normalidade, por constantes negociações entre o self e o outro) manifesto nas manobras de desligamento, confusão e repetitividade, e como isto interferia na capacidade da criança em processar suas experiências instintuais pela simbolização em geral e pela linguagem em particular. Em muitos momentos estas características me contaminavam e eu não conseguia mais criar hipóteses sobre os estados mentais e emocionais de Tiago. Em tais circunstâncias era como se eu mesma passasse a operar, com vantagens e desvantagens, em uma espécie de “estado primitivo de mente”. As vantagens foram representadas pela possibilidade que tal estado me propiciou de encontrar vias primitivas de contato com Tiago (como nos jogos de contingência, caracterizados por uma resposta marcante e previsível de minha parte às suas ações); as desvantagens diziam respeito a meu impedimento para lidar com ele como tendo uma mente.

A hipótese que levanto sobre a origem do transtorno de desenvolvimento de Tiago se assenta em uma provável combinação de dificuldades inatas para a interação dialógica face-a-face,11 associadas à complacência por parte dos pais frente à tendência fusional de Tiago. Daí em diante se estabelece uma espiral de perturbações no desenvolvimento: quanto menos Tiago se envolve em relações dialógicas face-a-face, menos ele desenvolve a capacidade de processar suas experiências instintuais, e quanto menos ele as processa, mais as vive como ameaças concretas e mais tem que recorrer a toda uma legião de manobras sensuais confusionais e de desligamentos para confrontá-las.

Uma vez aceita a dualidade self/outro, dá-se o início do processo de simbolização e assumem o primeiro plano as fantasias de posse e ataque, expressão da dimensão instintual inerente à relação. Se antes da estrutura dialógica imperava a tendência à confusão self-outro e/ou a negação da diferença através dos desligamentos, depois se expressam fantasias de devorar e penetrar, sem necessariamente negar a discriminação, mas sempre realimentado por ela. Devorar e penetrar são formas de possuir, mas não necessariamente de se confundir. O objeto que se discrimina é um chamariz para os instintos: ele tanto incita à posse como aterroriza.

O papel do analista aqui é de retomar (ou reconstruir) a relação dialógica, monitorando sua contratransferência para não apenas mapear as zonas de sucesso e de perigo na relação, como para permitir que esta seja permeada pelos significados simbólicos presentes no campo (Ferro, 1995).

 

Agradeço as colegas Izelinda Garcia de Barros e Marly Terra Verdi pela leitura do texto e pelas sugestões oferecidas.

 

Referências

Beebe, B., Lachmann, F. M., & Jaffe, J. (1997). Mother-infant interaction structures and presymbolic self and object representations. Psychoanalytic Dialogues, 7, 133-182.        [ Links ]

Bion, W. (1962). Learning from Experience. London: Karnac.

Espasa, F. P. (2002). Considerations on depressive conflict and its different levels of intensity: Implications for technique. International Journal of Psychoanalysis 83: 825-836.

Ferro, A. (1995). A técnica na psicanálise infantil: a criança e o analista; da relação ao campo emocional. Rio de Janeiro: Imago.

Fonseca, V. R. (1999). The phenomenon of object presenting and its implications for development. International Journal of Psychoanalysis. 80: 885-898.

_____ (2005). As relações interpessoais nos transtornos autísticos: uma abordagem interdisciplinar da psicanálise e da etologia. Tese de Doutorado. Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo.

Fonseca, V. R. & Bussab, V. S. (2005). The search for selfhood in autistic disorders: an interdisciplinary approach. Poster Abstracts Session. Journal of the American Psychoanalytic Association. Vol. 53/4: 1293-1295.

_____ (2006). self, other and dialogical space in autistic states. International Journal of Psychoanalysis, 87: 1-16.

Klein, M. (1930). A importância da formação de símbolos no desenvolvimento do ego. In: Amor, culpa e reparação e outros trabalhos: 1921-1945. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

Keller, H. (1998). Diferentes caminhos de socialização até a adolescência. Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano, 8 (1-2): 1-14.

Stern, D. (1985). The interpersonal world of the infant. New York: Basic Books.

Tronick, E. & Weinberg, M.K. (1997). Depressed mothers and infants: the failure to form dyadic states of consciousness. In: Murray & Cooper (Org.). Postpartum depression and Child Development. New York: Guilford Press, p. 54-81.

Winnicott, D. W. (1958). A capacidade de ficar só. In: O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.

 

 

Endereço para correspondência
Vera Regina J. R. M. Fonseca [Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP]
Av. Portugal, 1629/63, Brooklin Paulista
04559-003 São Paulo, SP
Tel: 11 5543-9093
E-mail: veraregina.fonseca@gmail.com.

Recebido em 3.9.2008
Aceito em 11.3.2009

 

 

1 Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.
2 Contingência é um termo bastante usado em psicologia do desenvolvimento para designar o caráter de dependência entre dois eventos. O bebê humano seria um rastreador inato de contingências, privilegiando as experiências que determinem no outro uma resposta imediata ao seu ato. Senso de agência se refere à experiência de ser o agente ativo de um ato.
3 A fronteira entre brincar e atacar era tênue, pois naquela época Tiago ainda não conseguia modular bem suas ações.
4 Alvarez, A. (2003). Comunicação pessoal.
5 Tradução livre e grifo da autora.
6 Trata-se de um guarda-chuva infantil que fica guardado no armário e é de uso comum.
7 Também fica evidente a carência de integração somato-mental.
8 Mãe objetal é o termo usado por Winnicott (1958) para designar a experiência instintual do bebê com a mãe, diferenciando-a da mãe ambiente, que diria respeito às condições do holding.
9 Sempre que se refere ao lobo usa uma expressão brincalhona.
10 Trata-se de uma bolinha de pano fechada por um zíper. Quando se abre o mesmo, pode-se puxar de seu interior um bicho de pano, por sua vez fechado por um zíper na sua extremidade inferior.
11 Alguns exemplos de tais possíveis dificuldades: hiper ou hipossensibilidade, um descompasso entre o que ele esperava e o que o ambiente oferecia, quebra do equilíbrio entre oferta de experiências de ruptura e de sintonia etc.

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