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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.43 no.1 São Paulo Mar. 2009

 

RESENHAS

 

Resenha: Talya Candi,1 São Paulo

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

 

 

Idées directrices pour une psychanalyse contemporaine: méconnaissance et reconnaissance de l’inconscient

Autor: André Green

Tradução: Parceria do departamento de publicações da SBPSP com a Editora Imago, organizada pelo dr. Paulo Cesar Sandler, com o título: Orientações para uma psicanálise comtemporânea (2008)

Editora: Presses Universitaires de France, Paris, 2002

O psiquiatra e psicanalista francês André Green é uma das mais importantes figuras da psicanálise contemporânea. Membro da Sociedade Psicanalítica de Paris, antigo presidente desta última e antigo vice-presidente da IPA, esse eminente psicanalista tornou-se, pela contundência de suas posições críticas em relação à teoria e à pratica, uma importante referência no movimento psicanalítico. Suas ideias, que foram amplamente desenvolvidas nos últimos cinquenta anos, podem ser definidas como uma procura incansável que tem como objetivo superar alguns dos principais impasses do freudismo e do pós-freudismo.

Aluno de Lacan no começo dos anos 1960, Green teve o mérito de liberar, pela originalidade de sua reflexão, a psicanálise francesa do poder intelectual exercido pela forte personalidade do mestre. Sua reflexão sobre a problemática do afeto na constituição psíquica2 nasce em contraposição à visão lacaniana, sem contudo perder de vista a crítica de Lacan à psicanálise instituída. Assim, ele aceitou a necessidade de “um retorno a Freud”, mas recusou a forma e o conteúdo que Lacan dava a esse retorno. Consequentemente, surgiu a necessidade de reinterrogar a obra de Freud reconstruindo os parâmetros metapsicológicos básicos, selecionando e organizando o conjunto das teses fundamentais de um modo particular, que fizesse sentido num contexto contemporâneo e permitisse refletir sobre os impasses da clínica. Sua obra pode ser vista como a elaboração de um modelo original que articula uma reconceitualização dos fundamentos da psicanálise contemporânea e abre a possibilidade de uma renovação do método clínico.

No livro Idées directrices pour une psychanalyse contemporaine: méconnaissance et reconnaissance de l’inconscient (2002), Green se coloca frente a uma tarefa sem dúvida ambiciosa: atualizar, neste começo de milênio, o Esboço de psicanálise, escrito em 1938 por Freud e que permaneceu inacabado devido sua morte, texto que segundo Lacan pode ser considerado o testamento do fundador da psicanálise.

Na apresentação do livro, Green justifica a necessidade dessa ambiciosa empreitada fazendo referência ao que hoje é conhecido como “a crise na psicanálise”: “Não sendo profeta”, diz ele, “não me aventurarei em predizer o futuro. Contentar-me-ei em dizer que, qualquer que seja a sorte que o destino reserve para a psicanálise, nossa tarefa presente é a de combater para sua sobrevivência nos dias de hoje e sua vitória no porvir. Um dos fatores menos contestáveis do relativo descrédito no qual a psicanálise recaiu é o da fragmentação de seu saber, sua dispersão – mais além do tolerável, porque ela questiona sua unidade e portanto sua identidade, e faz aparecer a ausência de consenso entre os psicanalistas” (p. 20). Assim, a retomada teórico-clínica na qual André Green tem se empenhado vigorosamente objetiva resgatar as diretrizes suscetíveis de abrir uma renovação da clínica, que se impõe para ele como uma questão ligada à própria sobrevivência da psicanálise, mergulhada numa ampla crise de identidade devida à dispersão de seu saber e de suas práticas e à degradação das suas instituições de ensino. A crise atual na psicanálise exige por parte da comunidade psicanalítica um trabalho de reformulação das aquisições da sua prática, a partir de um movimento de diálogo que deve reunir e integrar num conjunto coerente a metapsicologia freudiana e pós-freudiana, possibilitando unificar os conceitos básicos e viabilizar um possível entendimento entre os psicanalistas das diferentes escolas.

No entanto, o que um leitor familiarizado com a obra de Green encontrará neste livro é um resumo sintético das suas conceitualizações desenvolvidas ao longo dos anos. Nessa perspectiva, a recente tradução para o português, realizada pela parceria entre o departamento de publicações da SBPSP e a Editora Imago e organizada pelo dr. Paulo Cesar Sandler, deve se tornar um instrumento de trabalho muito útil para qualquer estudante que deseja entrar em contato com as ideias desse importante autor e aprofundar-se no estudo da psicanálise.

O livro é constituído por dois prolegômenos, duas partes principais e um adendo. No segundo prolegômeno, intitulado “Breve história subjetiva da psicanálise desde a Segunda Guerra Mundial”, encontramos uma recapitulação dos mais importantes acontecimentos na psicanálise após a morte de Freud. A. Green, contudo, nos adverte: “Não espere encontrar um capítulo de um historiador, e sim um simples recenseamento, um passeio pela história da psicanálise, que terá certamente as marcas de uma visão subjetiva” (p. 20). O importante na aproximação greeniana à história da psicanálise é possibilitar a cada analista ordenar as concepções das diferentes escolas e se debruçar a partir de um olhar retrospectivo sobre as teorias que foram interiorizadas no seu percurso de formação. O objetivo dessa maneira de construir teoria consiste em, ao apropriar-se subjetivamente do conhecimento, ultrapassar o dogmatismo e o reducionismo para o qual a psicanálise tende naturalmente a deslizar, por conta das fortes lealdades transferenciais. É a possibilidade de se apropriar subjetivamente do saber que vai possibilitar a cada psicanalista recriar, no exercício efetivo da sua clínica, a psicanálise em sua singularidade, preservando assim a vitalidade do instrumento psicanalítico. Após esta breve recapitulação subjetiva da história da psicanálise, que tem como objetivo mapear as referências teóricas do autor, entramos no corpo propriamente dito do livro.

As duas partes que constituem o corpo do livro dialogam entre si e se complementam. Elas decorrem de uma ampla pesquisa teórico-clínica iniciada por Green nos anos 1970 sobre os limites da psicanálise e constituem uma dupla tentativa de ampliar os conceitos metapsicológicos já conhecidos para lidar com os impasses do tratamento clássico e utilizar a potência do instrumento psicanalítico em atendimentos psicoterapêuticos. Essa reflexão mostrou a necessidade de formalizar uma teoria sobre o enquadre analítico e se aprofundar sobre as condições que possibilitam a analisabilidade.

Cabe dizer ao leitor que os conceitos e conclusões apresentados, sistematica e quase dogmaticamente nesse livro, decorrem de um modo muito particular de criar conhecimento que A. Green denominou, em 2000, de “pensamento clínico”3. Esta maneira de criar conhecimento (uma epistemologia particular) surge de um modo específico e original da elaboração teórica produzida pelo contato vivo com a experiência analítica. Esta racionalidade particular da clínica permite a perlaboração da atividade fantasmática do analista relativa à transformação dos movimentos afetivos que surgem na sua escuta clínica. Assim, os conceitos apresentados sistematicamente nesse livro não podem se tornar definições científicas, mas devem ser considerados simples hipóteses teóricas que possuem valor heurístico por permitir o desenvolvimento de um processo psicanalítico. Ao configurar-se no movimento de uma escrita, o pensamento clínico é caracterizado, segundo Green, por sua capacidade de acordar o afeto do leitor, convocar o processo associativo e evocar neste uma experiência afetiva referente a um momento da análise ou autoanálise. Cabe acrescentar ainda que essa forma de pensamento nasce forçosamente a partir dos desenvolvimentos, transferências e contratransferências da situação clínica e que, portanto, os tempos de angústia na contratransferência apresentam-se como os momentos privilegiados para promover tal trabalho psíquico, que implica tanto uma elaboração afetiva como um esforço imaginativo intenso. A articulação do trabalho dos afetos e da criatividade imaginativa permitirá engendrar o que pode ser chamado de teoria viva. São as situações analíticas ditas difíceis, as que se recusam a “jogar o jogo” clássico proposto pelo analista, ou as que mesmo aceitando “as regras do jogo” produzem impasses no processo analítico, que mais frequentemente mobilizam um tal investimento por parte dos analistas. A noção de paciente- limite nasce nos anos 1970 na obra de André Green a partir desta procura: trabalhar no limite do analisável. “Pensar os limites”4 significa confrontar-se com desafios e impasses procurando instrumentos metapsicológicos que possam ampliar o exercício do trabalho do psicanalista nos seus diferentes campos de ação. Posteriormente, nos anos 1990, a categoria “limite” transforma-se numa categoria nosográfica mais ampla denominada “não-neurose”. Esta nova categoria psicopatológica (na qual estão incluídos os pacientes borderline, os pacientes psicossomáticos e com falhas narcísicas, as depressões e as psicopatias, entre outros) surge ligada a uma marcada dificuldade do paciente de se adaptar ao dispositivo constitutivo do enquadre psicanalítico. Toda a aproximação greeniana à psicanálise se desenvolve a partir de uma reflexão que questiona os seus limites e procura superar os impasses encontrados cada vez mais frequentemente na clínica contemporânea.

Na primeira parte do livro, os conceitos clínicos ligados à prática são redefinidos a partir da experiência com as não-neuroses, possibilitando apresentar critérios que permitem pensar nas indicações e contraindicações terapêuticas. A originalidade e a riqueza da visão greeniana vincula a indicação terapêutica a uma avaliação hipotética preditiva, que considera a possibilidade da utilização criativa por parte do paciente dos diferentes elementos que constituem a prática psicanalítica clássica (a não-visibilidade do objeto, a capacidade de suportar a atitude de retraimento e de espera do analista, a interpretação da resistência e da transferência, a duração limitada das sessões, a tolerância às separações). Para Green, não se trata de uma avaliação puramente empírica, mas de saber se o paciente possui “a capacidade de estar só na presença do analista” (Winnicott) e se, a partir dessa solidão artificial, ele poderá colocar à disposição do trabalho analítico um funcionamento mental próximo daquele que se observa no sonho, possibilitando a associação livre. Sendo assim, na avaliação preditiva os critérios nosográficos são forjados a partir das qualidades do funcionamento mental do paciente (frequência da compulsão à repetição, tendência à atuação, carências elaborativas marcadas por frustrações excessivas, estrutura masoquista do ego, importância das posições destrutivas, tenacidade das fixações e regressões). Estes aspectos, que deverão ser avaliados ao longo das entrevistas iniciais, poderão determinar a indicação de análise ou de psicoterapia e o ritmo desejável e possível do trabalho, que dependerá também da estrutura do paciente, de sua resistência, de sua demanda e de sua transferência consciente ou inconsciente. Este esforço de repensar a indicação da análise será complementado por uma clara apresentação dos elementos que constituem a prática do analista. N o terceiro capítulo da primeira parte do livro são redefinidos, de maneira surpreendentemente simples, os conceitos de transferência e contratransferência, de enquadre e de processo psicanalítico. N o quinto capítulo da primeira parte, Green procura descrever as categorias psíquicas que organizam a psicopatologia psicanalítica, tais como as noções de sexualidade, Ego, superego e destrutividade, Id e fantasia.

A segunda parte do livro diz respeito às questões propriamente teóricas. Essa parte é uma síntese muito condensada das pesquisas metapsicológicas greenianas realizadas ao longo dos anos e que permitiram chegar às conclusões que foram apresentadas na primeira parte.

André Green reabilita num primeiro momento o conjunto da obra freudiana, dando ênfase ao processo evolutivo do pensamento e aos fatores que impulsionaram o percurso de mudança realizado por Freud. Sua hipótese é a de que o percurso realizado por Freud constitui por si só uma síntese do percurso da psicanálise como um todo. Esta aproximação permite ver a lógica que rege o percurso freudiano, apontar para o que Green nomeia de cortes epistemológicos, marcar as contribuições decisivas da segunda tópica freudiana e identificar as carências na teoria freudiana, particularmente em relação ao trabalho do objeto externo, cuja resposta à demanda do sujeito aparece como condição absolutamente necessária para a constituição do psiquismo. Tendo localizado as carências do percurso freudiano, Green procura na psicanálise pós-freudiana (particularmente nas contribuições de Melanie Klein, D. Winnicott, W. Bion e J. Lacan) os elementos que possibilitam uma renovação da teoria. Para ampliar os recursos metapsicológicos, Green propõe inscrever o conceito de Sujeito pulsional e o conceito de Objeto na psicanálise em duas linhagens diferentes, independentes uma da outra, mas interligadas dialeticamente. Tratar o objeto e a pulsão como duas correntes distintas, duas polaridades opostas e complementares em torno das quais a vida psíquica será reagrupada, permite sustentar a complexidade do psiquismo e ampliar a reflexão sobre as diferentes configurações encontradas na clínica não-neurótica. Seria impossível, no âmbito desta resenha, apresentar todas as conceitualizações do autor encontradas na segunda parte do livro. Elas constituem um resumo dos grandes temas da sua obra. Cabe dizer que encontraremos aqui conceitos que de alguma forma foram incorporados ao jargão do nosso dia-a-dia psicanalítico contemporâneo, tais como: o trabalho do negativo, o narcisismo de morte, a alucinação negativa, a terceiridade, o objeto analítico, a função objetalizante e o conceito de limite.

O livro se encerra com um adendo no qual o ator faz uma recapitulação dos conhecimentos científicos e filosóficos que influenciaram o desenvolvimento do saber psicanalítico. “Este adendo”, diz Green, “é uma tentativa de circunscrever o meio cultural no qual a psicanálise está inserida. Ele apresenta as relações de proximidade que diferentes disciplinas contíguas entretêm com o pensamento psicanalítico e que se mostram frequentemente mais inamistosas do que amistosas. N a minha opinião, elas atestam para o fato de que, contrariamente ao que se pretende cem anos após a sua criação, a psicanálise não perdeu seu poder subversivo” (p. 312). Aqui, vemos o interesse de André Green pelas múltiplas formas de pensamento. A abertura que ele conseguiu implantar na Sociedade Psicanalítica de Paris tornou-se uma marca registrada da sua gestão como presidente desta última.

As ideias encontradas neste livro reúnem o pensamento de um autor que é conhecido até os dias hoje por seu caráter audaz e combativo. Suas contribuições, tanto intelectuais como pessoais, não parecem de fato ter perdido a força com o passar dos anos; ao contrário, permanecem profundamente inovadoras e revolucionárias. Elas refletem o profundo engajamento do autor com a psicanálise, tanto no seu caráter subversivo como no seu caráter terapêutico, que por vezes se manifesta como uma vontade inexorável de aliviar a dor psíquica.

 

Referências

Green, A. (2002). Idées Directrices Pour une Psychanalyse Contemporaine. Paris: PUF.        [ Links ]

 

 

1 Doutora em psicologia clínica pela PUC-SP, membro filiado ao Instituto de Psicanálise “Durval Marcondes” da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.
2 Estou me referindo ao livro O discurso vivo (1973), no qual Green faz uma longa pesquisa sobre a questão do afeto na constituição psíquica, tema que, segundo ele, Lacan havia desdenhado.
3 Remeto o leitor interessado no tema de pensamento clínico ao texto: “Pour introduire la pensée clinique”. In: André Green: La Pensée Clinique. Paris: Odile Jacob , 2002.
4 Em relação a esse tipo de pensamento, remeto o leitor aos escritos reunidos sob a direção de Cesar Botella em homenagem do aniversário de André Green, sob o título Penser les limites (Paris: Delachaux et Niestlé, 2002).

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