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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.43 no.2 São Paulo June 2009

 

DIÁLOGO

 

Com os olhos abertos: comentário à entrevista

 

Con los ojos abiertos: comentario a la entrevista

 

With open eyes: commentary interview

 

 

Gley Pacheco Costa*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor, a partir de uma referência histórica e de fragmentos da entrevista com o físico José Goldemberg à Revista Brasileira de Psicanálise, tece alguns comentários a propósito da teoria pulsional de Freud, com ênfase nas pulsões de ver e saber, concluindo com uma observação a respeito do trabalho de preservação da vida desenvolvido pelo entrevistado.

Palavras-chave: Pulsões; Pulsão de saber; Pulsão de ver; Guerra nuclear; Sobrevivência.


RESUMEN

El autor, a partir de una referencia histórica y de fragmentos de la entrevista con el físico José Goldemberg a la Revista Brasilera de Psicoanálisis, teje algunos comentarios a propósito de la teoría pulsional de Freud, con énfasis en las pulsiones de ver y saber, concluyendo con una observación al respecto del trabajo de preservación de la vida desarrollada por el entrevistado.

Palabras clave: Pulsiones; Pulsion de saber; Pulsión de ver; Guerra nuclear; Sobrevivencia.


ABSTRACT

The author, based on a historical reference and fragments of the interview given by physicist Jose Goldemberg to the Revista Brasileira de Psicanalise, makes several commentaries about Freud’s pulsional theory, with an emphasis on the pulsions of seeing and knowing, concluding with an observation of the work of life preservation developed by the intervewed.

Keywords: Pulsion; Knowing pulsion; Seeing pulsion; Nuclear war; Survival.


 

 

É essencial que não só os governos como também os povos do mundo reconheçam e compreendam os perigos da atual situação… Afastar a ameaça de uma guerra mundial – uma guerra nuclear – é a tarefa mais urgente e mais instante dos nossos dias. A humanidade está confrontada com uma alternativa: é preciso parar a corrida às armas e caminhar para o desarmamento ou fazer face à aniquilação.
Assembleia Geral das Nações Unidas
30 de junho de 1978

A primeira pergunta formulada pela RBP ao físico José Goldemberg foi sobre a onda de calor que vivemos hoje. Essa preocupação com os efeitos das ações danosas do ser humano contra o ambiente fez com que me lembrasse de outro momento de “aquecimento global” que a humanidade experimentou no passado, o qual, ironicamente, recebeu o nome Guerra Fria. Iniciada no final da Segunda Guerra Mundial, ela alcançou, ao longo dos anos 1970, um patamar de grande ameaça frente à possibilidade de utilização de armas nucleares pelas nações envolvidas. Mobilizado por esse receio que atingiu humanistas do mundo inteiro, ingressei na década de 1980 procurando me engajar nos movimentos de prevenção à guerra nuclear, como o International Physicians for the Prevention of Nuclear War e o International Psycho-Analysts Against Nuclear Weapons, nos quais tive como interlocutores Bernard Lown (Prêmio Nobel da Paz, 1985) e Hanna Segal.

Com a colaboração de ambos e de outros psicanalistas igualmente temerosos de uma guerra de tamanha proporção, como Arnaldo Rascovsky, Donald Kaplan, Bryce Boyer e Martin Wangh, publiquei em 1988 o livro Guerra e morte, no qual adverte Hanna Segal: “Quando olhamos sobriamente, por mais difícil que seja fazê-lo no momento, a corrida armamentista e a ameaça de guerra nuclear, observamos um fenômeno que se assemelha mais a um cenário surrealista, um pesadelo insuportável ou uma psicose do que a um mundo são” (p. 204).

Antes disso, em 1985, havia coordenado o Simpósio Multidisciplinar de Estudos Sobre a Violência, durante o qual dialoguei com o Prof. Goldemberg, que fora convidado a participar de um painel sobre a guerra nuclear. Quando, em 1989, caiu o Muro de Berlim, tive a impressão de que os esforços despendidos pela humanidade em favor da sua sobrevivência não haviam sido em vão, crescendo em mim a esperança na capacidade do ser humano de neutralizar, com a força do amor, sua própria agressividade.

Com esse histórico, reunindo cenas do passado e do presente, estou colocado diante do entrevistado e surge-me um dos temas centrais da teoria psicanalítica freudiana: as pulsões. Em particular, a pulsão de saber, a curiosidade, que Goldemberg, denominando-a de “necessidade de entender as coisas”, acredita nascer com o indivíduo, mas cujo desenvolvimento é estimulado na criança pelo ambiente, como adverte em sua última resposta.

Na verdade, a pulsão de saber é uma forma sublimada da pulsão de dominação, unida à pulsão de ver, diretamente relacionada à cena primária e, a ela vinculada, a curiosidade sobre como nascem os bebês. Abraham (1913), a propósito, relata o caso de um paciente que tinha marcado anseio de conhecimento científico, destacando que, na química, o que mais lhe interessava era o status nascendi, ou seja, o exato momento em que se formava uma substância, ou que duas substâncias se uniam para formar uma terceira. Nosso entrevistado, falando sobre a sua experiência escolar, descreve esse anelo com as seguintes palavras: “Ele era ótimo professor, chamava a atenção para o fato de que o que precisamos fazer é buscar explicação para as coisas, e isso me conquistou inteiramente, me atraiu para a física. O que eu queria saber, à época, era como a matéria é constituída”.

A pulsão de dominação não é autônoma; ela resulta da mescla da pulsão sexual com a pulsão de morte, expressando-se como uma força que se faz no sentido de possuir, de apropriar-se e incorporar o objeto, podendo destruí-lo. Serve de modelo à identificação. Nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, Freud (1905) refere que a pulsão de dominação encontra-se a serviço da fome e da sexualidade e diz dela derivar o sadismo. Não obstante, uma diferença entre ambos deve ser considerada. Pelas suas características, a pulsão de dominação surge na etapa oral e se mantém na etapa anal, quando, então, serve para atenuar a angústia de perder o objeto, que começa a ser reconhecido como fonte principal do prazer. Na etapa fálico-uretral, aparece na luta com o rival pela posse do objeto e, na etapa fálico-genital, passa a integrar a pulsão sexual como um todo, mas persiste como pulsão parcial nos ciúmes. Também participa da criação artística e do jogo infantil, os quais correspondem a uma dominação simbólica da realidade. Na vida adulta, a sublimação da pulsão de dominação dá origem à necessidade de conhecimento, particularmente o científico. Mesclada à pulsão de ver, a pulsão de dominação, como dito acima, formará a pulsão de saber, base da curiosidade da criança, a partir da qual ela desenvolve suas primeiras teorias sexuais.

Por outro lado, a pulsão de ver implica tanto o prazer de olhar quanto o de ser olhado, portanto mostrar-se, exibir-se. Ambos se expressam livremente na infância, mas se tornam mais tarde objeto de repressão e, em condições favoráveis, em boa medida, também de sublimação. Assim, a ânsia de conhecimento, o espírito investigativo, o interesse pelos fenômenos da natureza, o prazer de viajar e a inclinação a dar um tratamento artístico ou poético ao que é percebido pelo olhar constituem alguns dos importantes fenômenos psicológicos que devem sua origem, em grande parte, à sublimação da pulsão de ver. Disse Freud (1910), em homenagem a um amigo oftalmologista: “Os olhos não veem apenas as modificações do mundo exterior importantes para a conservação da vida, mas também as propriedades dos objetos por meio das quais são elevados à condição de objetos da eleição amorosa: seus encantos” (p. 213).

O trabalho desenvolvido pelo prof. José Goldemberg ao longo de sua existência, nos últimos anos dedicados à preservação ambiental, revela um grande amor pela vida, expresso em sua preocupação com o equilíbrio necessário para garantir a sobrevivência do planeta, salientando que “a estabilidade que existe no mundo é apenas aparente; se você mexer naquele equilíbrio, pode explodir tudo”. Contudo, como alertou Freud (1930[1929]), “Nossos contemporâneos chegaram a tal ponto no domínio das forças da natureza que, com a sua ajuda, lhes seria fácil exterminarem-se mutuamente até o último homem. Decorre deste conhecimento grande parte de sua presente agitação, de sua infelicidade e de sua angústia. Agora só nos resta esperar que o outro dos dois ‘Poderes Celestes’, o eterno Eros, desdobre suas forças para se afirmar na luta contra seu inimigo igualmente imortal. Mas quem pode prever o desenlace?” (p. 140). O prof. José Goldemberg parece ser um homem com os olhos abertos para essa realidade.

 

Referências

Abraham, K. (1913). Restricciones y transformaciones de la escopofilia en los psiconeuróticos; con observaciones acerca de fenómenos análogos en la psicología de los pueblos. In _____ (1924). Psicoanálisis clínico. Buenos Aires: Hormé, 1959.        [ Links ]

Costa, G. et al. (1988). Guerra e morte. Rio de Janeiro: Imago.        [ Links ]

Freud, S. (1988). Tres ensayos de teoria sexual, v. 7. In Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu. (trabalho original publicado em 1905)        [ Links ]

_____ (1988). La perturbación psicógena de la visión según el psicoanálisis, v. 11. In Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu. (trabalho original publicado em 1910)        [ Links ]

_____ (1988). El malestar en la cultura, v. 21. In Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu. (trabalho original publicado em 1930[1929])        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Gley Pacheco Costa
Rua Mariante, 288 /1308
90430-180 Porto Alegre, RS
E-mail: gley@terra.com.br

Recebido em: 10.06.2009
Aceito em: 25.06.2009

 

 

* Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre – SBPdePA.

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